STJ: Na comunhão parcial, cônjuge não tem direito sobre os bens particulares

RECURSO ESPECIAL Nº 1.377.084 – MG (2013/0083914-0)
RECORRENTE : GERALDO SEBASTIÃO DA SILVA – ESPÓLIO
REPR. POR : APARECIDA JOANA DA SILVA PAIVA – INVENTARIANTE
ADVOGADOS : PAULO EDUARDO ALMEIDA DE MELLO E OUTRO(S)
PAULO FERNANDO CINTRA DE ALMEIDA
JULIANA FOSCARINI DE ALMEIDA
INTERES. : MARIA APARECIDA DA SILVA E OUTROS
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):
Cuida-se de recurso especial interposto por GERALDO SEBASTIÃO DA SILVA – ESPÓLIO, representado por Aparecida Joana da Silva Paiva – inventariante, fundamentado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.
Ação: inventário de Geraldo Sebastião da Silva, falecido em 12/01/2006, em cujo rol de herdeiros constam cinco filhos do primeiro casamento, mais três filhos do matrimônio contraído com Maria Aparecida da Silva, pelo regime da comunhão parcial de bens.
Decisão: o Juízo de primeiro grau, considerando a renúncia à herança dos três filhos frutos do segundo matrimônio do falecido, e que o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes dele quanto aos bens particulares, determinou a correção da partilha judicial “para atribuir à viúva a fração ideal equivalente a 1/9 dos bens particulares do de cujus e a sua meação naqueles bens comuns havidos na constância do casamento, ou seja, 5/10”. Atribuiu, ainda, “a cada um dos herdeiros não renunciantes, 8/45 nos bens particulares, e 1/10 nos bens comuns” (fl. 264, e-STJ).
Sentença: julgou a partilha dos bens, como lavrada às fls. 295/310, e-STJ.
Acórdão: o TJ/MG negou provimento à apelação interposta pelo espólio, em acórdão assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL – INVENTÁRIO – REGIME DE BENS – COMUNHÃO PARCIAL – PATRIMÔNIO PARTICULAR – CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES – ART. 1829, I DO CPC.
Consoante dispõe o art. 1829, I do CC, o cônjuge supérstite casado sob o regime da comunhão parcial de bens integra o rol dos herdeiros necessários do de cujus, quando este deixa patrimônio particular, em concorrência com os descendentes.
Recurso especial: interposto por Geraldo Sebastião da Silva – espólio, sob a alegação de ofensa aos arts. 1.658, 1.659, 1.661 e 1.829, I, do CC/02, e de dissídio jurisprudencial.
Sustenta, em suas razões, que o cônjuge supérstite não concorre com os descendentes, na hipótese de o falecido ter deixado apenas bens particulares, como na espécie, razão pela qual pleiteiam a exclusão da viúva Maria Aparecida da Silva da respectiva partilha.
Juízo prévio de admissibilidade: o recurso especial foi admitido pelo Tribunal de origem.
Parecer do MPF: da lavra do Subprocurador-Geral da República João Pedro de Saboia Bandeira de Mello Filho, pelo parcial provimento do recurso (fls. 412/415, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR):
Cinge-se a controvérsia a definir se o cônjuge supérstite, casado com o falecido pelo regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes dele na partilha dos bens particulares.
1. Do prequestionamento
01. Houve o devido prequestionamento da matéria jurídica versada nas razões do recurso especial, o que permite, em sua plenitude, o exame das teses desenvolvidas pelo recorrente.
2. Da interpretação do art. 1.829, I, do CC/02
02. Como a morte põe fim aos vínculos que unem alguém aos seus bens, assim também dissolve o casamento e a união estável, a lei estabelece a imediata transferência da propriedade dos bens do falecido aos seus herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02), a fim de preservar o patrimônio no domínio do mesmo grupo familiar, ou no de quem com aquele, ao menos em tese, nutre laços de afetividade.
03. Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, que confere ao cônjuge a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal, ficando excluído o consorte da concorrência à herança.
04 A partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02, e segundo o qual se comunicam os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, consideradas as exceções legais previstas no art. 1.659 do CC/02 (art. 1.658 do CC/02).
05. Essa mudança do regime legal, no entanto, fez surgir uma preocupação, externada na Exposição de Motivos do Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do CC/02, prof. Miguel Reale, de que “especial atenção devia ser dada aos direitos do cônjuge supérstite em matéria sucessória” (informação extraída da página eletrônica do Senado Federal: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70319/743415.pdf?sequence=2, p. 57), evidenciando, com isso, a influência que a autonomia da vontade exercida com a escolha do regime de bens exerce sobre o direito de herança.
Afirmou, então, o jurista:
Seria, com efeito, injustificado passar do regime da comunhão universal, que importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, para o regime da comunhão parcial, sem se atribuir ao cônjuge supérstite o direito de concorrer com descendentes e ascendentes. Para tal fim, passou o cônjuge a ser considerado herdeiro necessário, com todas as cautelas e limitações compreensíveis em questão tão delicada e relevante, a qual comporta diversas hipóteses que exigiram tratamento legal distinto.
06. De fato, se o espírito dessa mudança foi evitar que um consorte fique ao desamparo com a morte do outro, essa celeuma não se resolve simplesmente atribuindo-lhe concorrência na partilha apenas dos bens particulares, quando houver, porque podem eles ser insignificantes, se comparados aos bens comuns existentes e amealhados durante toda a vida conjugal.
07. Nesse contexto, mais justo e consentâneo com aquela preocupação é permitir que o sobrevivente herde, em concorrência com os descendentes, a parte do patrimônio que ele próprio construiu com o falecido, porque é com a respectiva metade desses bens comuns que ele pode contar na falta do outro, assim na morte como no divórcio.
08. Não lhe devem tocar, pois, os bens particulares; justamente aqueloutros que, no exercício da autonomia da vontade, os nubentes optaram – seja por não terem elegido regime diverso do legal, seja pela celebração do pacto antenupcial – por manter incomunicáveis, excluindo-os expressamente da comunhão, como preveem os arts. 1.659 e 1.661 do CC/02 para o regime da comunhão parcial de bens.
09. Se esses bens exclusivos de um cônjuge não são partilhados com o outro no divórcio, pela mesma razão, não o devem ser após a sua morte, sob pena de infringir o que ficou acordado entre eles no momento em que decidiram se unir em matrimônio.
10. Ademais, a partilha dos bens particulares entre os descendentes e o consorte pode gerar a indesejável transferência desse patrimônio – de que era titular apenas o falecido, frise-se – a terceiros que em nada contribuíram para sua formação ou que nenhuma relação de parentesco ou afetividade tinham com o de cujus. Vale dizer, acaso o cônjuge sobrevivente, com filhos, venha a se casar novamente – o que não é incomum –, abre-se a possibilidade, em se adotando o regime legal de bens, de o novo consorte vir a ser proprietário de fração do patrimônio particular herdado do falecido do primeiro casamento, em detrimento, inclusive, dos próprios filhos deste.
11. Então, se a vontade for a de compartilhar todo o seu patrimônio, a partir do casamento, assim devem instituir os nubentes em pacto antenupcial, o que não exclui, evidentemente, a possibilidade de qualquer dos dois dispor, por testamento, de seus bens particulares, desde que respeitada a legítima, reservando-os ou parte deles ao consorte sobrevivente. Assim, mantém seu patrimônio exclusivo, em caso de divórcio, mas resguarda o cônjuge supérstite, acaso venha a antes dele falecer.
12. Outrossim, a permanecer a interpretação conferida por parte da doutrina, de que o cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial herda em concorrência com os descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, teremos no Direito das Sucessões, em verdade, a transmutação do regime escolhido em vida – comunhão parcial de bens – nos moldes do Direito Patrimonial de Família, para o da comunhão universal, somente possível de ser celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. A adoção desse entendimento viola a essência do próprio regime estipulado.
13. Logo, essa não é a melhor interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, porque, além do mais, conflita com os princípios que regem o atual diploma – citem-se, a propósito, dignidade da pessoa humana, autonomia privada, autorresponsabilidade, confiança legítima, boa fé, eticidade – bem assim com as finalidades por ele perseguidas e com os dispositivos que tratam do regime legal de bens.
14. A melhor interpretação, portanto, é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis, estes, unicamente entre os descendentes.
15. Convém ressaltar, a propósito, que afastar o cônjuge da concorrência hereditária com os descendentes, no que toca aos bens comuns, simplesmente porque já é meeiro, é igualar dois institutos que tem naturezas absolutamente distintas: a meação nada mais visa que resguardar o patrimônio do cônjuge supérstite, que já lhe é próprio em virtude da dissolução do casamento pela morte; a herança, por sua vez, é composta apenas dos bens do falecido, esses sim distribuídos aos seus sucessores, dentre os quais se inclui o consorte sobrevivente.
16. A meação, portanto, preserva com o meeiro aquilo que já era – e sempre foi – seu por direito próprio, e não pode, por isso, ser critério interpretativo do correspondente direito de sucessão, porque com este não se confunde.
17. De igual modo, não se pode afirmar que essa concorrência põe o cônjuge em situação de vantagem quanto aos descendentes; ao contrário, se a tendência natural da vida é os ascendentes morrerem antes dos descendentes, o mais provável é que venham estes a herdar o que aquele recebeu por herança do primeiro falecido.
18. Assim, se o CC/02 erigiu o cônjuge sobrevivente a herdeiro necessário, não pode ser ele excluído da sucessão, em concorrência com os descendentes, apenas porque o falecido deixou – ou não deixou, a depender da corrente interpretativa do art. 1.829, I, do CC/02 – bens particulares.
19. Nesse sentido, concluiu a 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.117.563/SP (minha relatoria, DJe de 06/04/2010):
Direito das sucessões. Recurso especial. Inventário. De cujus que, após o falecimento de sua esposa, com quem tivera uma filha, vivia, em união estável, há mais de trinta anos, com sua companheira, sem contrair matrimônio. Incidência, quanto à vocação hereditária, da regra do art. 1.790 do CC/02. Alegação, pela filha, de que a regra é mais favorável para a convivente que a norma do art. 1829, I, do CC/02, que incidiria caso o falecido e sua companheira tivessem se casado pelo regime da comunhão parcial. Afirmação de que a Lei não pode privilegiar a união estável, em detrimento do casamento.
– O art. 1.790 do CC/02, que regula a sucessão do ‘de cujus’ que vivia em comunhão parcial com sua companheira, estabelece que esta concorre com os filhos daquele na herança, calculada sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência.
– A regra do art. 1.829, I, do CC/02, que seria aplicável caso a companheira tivesse se casado com o ‘de cujus’ pelo regime da comunhão parcial de bens, tem interpretação muito controvertida na doutrina, identificando-se três correntes de pensamento sobre a matéria: (i) a primeira, baseada no Enunciado 270 das Jornadas de Direito Civil, estabelece que a sucessão do cônjuge, pela comunhão parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens; (ii) a segunda, capitaneada por parte da doutrina, defende que a sucessão na comunhão parcial também ocorre apenas se o ‘de cujus’ tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção; (iii) a terceira defende que a sucessão do cônjuge, na comunhão parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares.
– Não é possível dizer, aprioristicamente e com as vistas voltadas apenas para as regras de sucessão, que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil.
– É possível encontrar, paralelamente às três linhas de interpretação do art. 1.829, I, do CC/02 defendidas pela doutrina, um quarta linha de interpretação, que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias.
– Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia privada e da consequente auto responsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.
– Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.
– Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes.
Recurso especial improvido.
2.a. Da aplicação do direito à espécie (violação dos arts. 1.658, 1.659, 1.661 e 1.829, I, todos do CC/02)
20. No particular, o TJ/MG confirmou a partilha que atribuiu à viúva, Maria Aparecida da Silva, a fração ideal de 1/9 dos bens particulares relacionados, garantida a meação de um veículo (fls. 299/300, e-STJ), em contrariedade, pois, à interpretação a ser dada ao art. 1.829, I, do CC/02, e ao disposto nos arts. 1.658, 1.659 e 1.661 do mesmo diploma legal.
21. Deve, pois, ser corrigida a partilha para excluir do quinhão de Maria Aparecida da Silva – e acrescer ao dos demais herdeiros – a fração incidente sobre os bens particulares do de cujus e, ao mesmo tempo, a par da meação da viúva, incluir em seu quinhão a fração correspondente ao bem comum, observada a concorrência com os filhos não renunciantes.
3. Da divergência jurisprudencial
22. Entre os acórdãos trazidos à colação, não há o necessário cotejo analítico nem a comprovação da similitude fática, elementos indispensáveis à demonstração da divergência. Assim, a análise da existência do dissídio é inviável, porque foram descumpridos os arts. 541, parágrafo único, do CPC, e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ.
Forte nessas razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e, nessa parte, DOU-LHE PARCIAL PROVIMENTO.