CSM|SP: Registro de Imóveis – Mandado judicial – Usucapião especial urbano (artigo 183 da CF de 1988) – Modo originário de aquisição da propriedade – Direito à moradia – Função social do direito de propriedade – Comprovação do recolhimento do IBTI – Exigência descabida – Gratuidade comprovada – § 2.° do artigo 12 do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001) – Incidência – Emolumentos – Inexigibilidade – Desqualificação registral insubsistente – Dúvida improcedente – Recurso provido.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Proc. n.° 0000424-82.2011.8.26.0543

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0000424-82.2011.8.26.0543, da Comarca de SANTA ISABEL, em que é apelante ENAIDE NERES DOS SANTOS e apelado o OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da referida Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em dar provimento ao recurso de apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do mandado judicial, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento os Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, WALTER DE ALMEIDA GUILHERME, Decano em exercício, SAMUEL ALVES DE MELO JÚNIOR, ANTÔNIO JOSÉ SILVEIRA PAULILO e ANTÔNIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 07 de fevereiro de 2013.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 0000424-82.2011.8.26.0543

Apelante: ENAIDE NERES DOS SANTOS

Apelada: OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE SANTA ISABEL

VOTO N° 21.200

REGISTRO DE IMÓVEIS – Mandado judicial – Usucapião especial urbano (artigo 183 da CF de 1988) – Modo originário de aquisição da propriedade – Direito à moradia – Função social do direito de propriedade – Comprovação do recolhimento do IBTI – Exigência descabida – Gratuidade comprovada – § 2.° do artigo 12 do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001) – Incidência – Emolumentos – Inexigibilidade – Desqualificação registral insubsistente – Dúvida improcedente – Recurso provido.

O oficial de registro, ao suscitar dúvida e justificar a desqualificação do título judicial, afirmou: o registro do mandado judicial depende da demonstração do recolhimento do ITBI, exigido pela legislação municipal mesmo nas hipóteses de usucapião, e da comprovação da gratuidade de justiça deferida no processo judicial (fls. 02/11).

Depois da manifestação do Ministério Público (fls. 103/104), seguida de novo pronunciamento do registrador (fls. 123/126), a dúvida foi julgada procedente (fls. 139/140), motivo pelo qual a interessada interpôs apelação, quando argumentou que a usucapião, modo originário de aquisição da propriedade, não é hipótese de incidência de ITBI, exigido com base em lei municipal inconstitucional, e que a gratuidade decorre de expressa previsão no § 2.° do artigo 12 da Lei n.° 10.257/2001 (fls. 150/153).

Com o recebimento do recurso no duplo efeito (fls. 155, item 2), os autos foram encaminhados ao Colendo Conselho Superior da Magistratura e a Douta Procuradoria Geral de Justiça, aberta-lhe vista, propôs o desprovimento da apelação (tis. 175/178).

É o relatório.

A usucapião, em quaisquer de suas modalidades (extraordinária, ordinária, pro labore ou pro moradia), é modo originário de aquisição da propriedade¹. A sentença, na usucapião, é meramente declaratória de um direito de propriedade preexistente. O seu registro não é constitutivo do direito real.

Ambos, sentença e registro, malgrado úteis, visam, particularmente, à regularização e à publicidade de uma situação consolidada, revelada pela posse qualificada prolongada no tempo, à qual se somam outros requisitos, próprios de cada uma de suas espécies.

Dentro desse contexto, o ITBI não é condição para o registro do mandado judicial de usucapião apresentado ao oficial: ao pressupor transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis ou de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, ou cessão de direitos a sua aquisição (artigo 156, II, da CF de 1988), não incide nos casos de aquisição decorrente de usucapião: ora, não há transmissão alguma, e muito menos onerosa.

Logo, esta modalidade de aquisição da propriedade imobiliária está, seguramente, fora do âmbito de tal tributo municipal. Aliás, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já teve oportunidade de posicionar-se sobre o tema, quando assinalou, sempre, a inexigibilidade do ITBI, diante da inocorrência de fato gerador apto a escorar a imposição tributária.²

Destarte, porque não se trata de imposto devido por força do registro do mandado judicial, a exigência atinente à comprovação do recolhimento do ITBI, sem respaldo nos artigos 289, da Lei n.° 6.015/1973, e 30, XI, da Lei n.° 8.935/1994, é impertinente.

Não se pretende, aqui, seara inadequada, agitar a inconstitucionalidade da Lei Complementar n.° 7, de 28 de setembro de 2007, do Município de Arujá: não se desconhece os precedentes administrativos deste Conselho Superior da Magistratura, então desautorizando declaração em tal sentido, até em situações equiparadas à agora focalizada.³

Apenas, porém, admite-se. in concreto, o registro do mandado judicial independente da comprovação do recolhimento do ITBI.

Dispensa-se, exclusivamente, o cumprimento da exigência, pois, Ictu oculi, porque manifesto, a usucapião não é hipótese de incidência de ITBI. Assimila-se, com isso, a orientação jurisdicional deste Egrégio Tribunal de Justiça, de modo a prestigiar a segurança jurídica e a função instrumental dos serviços de registro.

Ao invés de sujeitar a interessada a um processo contencioso voltado à declaração da inconstitucionalidade do inciso IV do § 1.° do artigo 270 da Lei Complementar n.° 7/2007 do Município de Arujá, e comprometer a regularização de seu direito de propriedade, a publicidade de seu direito, estabilidade das relações jurídicas e a confiabilidade do sistema registral, transfere-se o ônus ao Município, a quem caberá, na via judicial, afirmar a constitucionalidade e buscar o recebimento do tributo.

Sob outro prisma, constou, do mandado judicial, a condição da interessada de beneficiária da justiça gratuita (fls. 28). Ao lado disso – subsumindo-se a situação por ela trazida à hipótese legal de usucapião especial de imóvel urbano, usucapião constitucional pro moradia, pro casa, pro habitatio, previsto no artigo 183 da CF/1988 –, aplica-se a regra do § 2.° do artigo 12 do Estatuto da Cidade, in verbis:

Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:

(…)

§ 2.º O autor terá os benefícios da justiça gratuita e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis, (grifei)

Por conseguinte, os emolumentos são inexigíveis.

Quero dizer: também a outra exigência questionada pela interessada, a única agora remanescente, é injustificável. A propósito, a abordagem de tal assunto, com enfoque na espécie de usucapião tratada neste procedimento de dúvida, dá outro fundamento para afastar a exigência relativa ao ITBI, ofensiva – pois com ela incompatível –, à ratio inspiradora da norma constitucional, dirigida à tutela da moradia e à realização da função social da propriedade.

Pelo lodo exposto, dou provimento ao recurso de apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do mandado judicial.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

¹Não se desconhece a posição de Caio Mário da Silva Pereira, que considera originária a aquisição apenas “quando o indivíduo, num dado momento, torna-se dono de uma coisa que jamais esteve sob o senhorio de outrem “, de modo a sustentar, assim, que a usucapião é modo derivado de aquisição da propriedade, pois “pressupõe a perda do domínio por outrem, em beneficio do usucapiente, mas com a ressalva, oportuna, de faltar-lhe, “sem a menor dúvida, a circunstância da transmissão voluntária, ordinariamente presente na aquisição derivada ” (Instituições de Direito; direitos reais, 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2009. p. 118. v. IV.). De qualquer forma, alinha-se, aqui, no ponto sob exame, com o entendimento de outros doutrinadores, que, enquadrando, na moldura das aquisições derivadas, somente situações onde existente uma relação pessoal entre o adquirente e o precedente titular do direito real, compreende a usucapião como modalidade de aquisição originária, porque ausente um nexo causal entre o passado, o estado jurídico anterior, e a situação atual (Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil: direito das coisas. 27ª ed. São Paulo: Saraiva. 1989. p. 124: Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2007. p. 247: Marco Aurélio S. Viana. Comentários ao novo Código Civil: dos direitos reais. Sálvio de figueiredo Teixeira (coord.). Rio de Janeiro: forense. 2009. p. 72. v. XVI: Gustavo Tepedino: Heloísa Helena Barboza; Maria Celina Bodin de Moraes. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: direito de empresa e direito das coisas. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 519; Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil brasileiro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 233: Durval Ferreira. Posse e usucapião, 2ª ed. Coimbra: Almedina. 2003. p. 462: Francisco Eduardo Loureiro. Código Civil comentado. Ministro Cesar Peluso (coord.). 2ª ed. São Paulo: Manole. 2008. p. 1.161).

²Apelação n.° 1.005.586-6, julgada em 29.08.2002, relator Desembargador Plínio Tadeu do Amaral Malheiros: Apelação Cível com Revisão n.° 613.383-4/6-00, julgada em 11.03.2009, relator Silverio Ribeiro: Agravo de Instrumento n.° 674.945-4/8-00, julgado em 03.11.2009. relator Grava Brazil: Agravo de Instrumento n.° 0071009-08.2012.8.26.0000, julgado em 19.06.2012, relator Desembargador Carlos Albe Garbi.

³Apelação Cível n.° 43.694-0/0, julgada em 06.02.1998, relator Desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição: Apelação Cível n.° 85-6/9, julgada em 23.10.2003, relator Desembargador Luiz Tâmbara. (D.J.E. de 21.03.2013 – SP)