Entrevista: Paulo Roberto Gaiger Ferreira, tabelião

Por Lilian Matsuura

Quem procura segurança, costuma trancar as portas e fechar as janelas antes sair de casa. A providência é necessária para evitar dissabores como ter a casa invadida ou roubada. Quando esses cuidados são deixados de lado, os riscos de se tornar vítima de um delito aumenta. O mesmo raciocínio é usado pelo titular do 26º Tabelionato de Notas de São Paulo, Paulo Roberto Gaiger Ferreira, para justificar a existência dos cartórios.

O reconhecimento de firma e a autenticação de cópias dificultam a possibilidade de uma das partes negar a assinatura ou a validade do documento. O princípio de Nemeth explica a necessidade dos serviços notariais: “a segurança é o inverso da conveniência”. Outra justificativa para os incômodos da burocracia é a lentidão do Judiciário. “No Brasil, um incidente de falsidade demora meses para ser julgado”, afirma Ferreira em entrevista à Consultor Jurídico.

Nos anos 80, tentou-se no Brasil colocar limites a exigências burocráticas lavradas em cartório, como o reconhecimento de firma ou a autenticação de cópias. Foi criado então o Ministério da Desburocratização. Hélio Beltrão, o ministro da nova pasta, dizia então que a burocracia cartorial se sustenta na presunção de que todo cidadão é desonesto até prova em contrário. E que por culpa de uma minoria de possíveis falsários, os milhões de cidadãos honestos do país têm de gastar tempo e dinheiro para provar que sua própria assinatura não é falsa. Beltrão perdeu a guerra contra a burocracia, seu ministério foi extinto e a produção de papéis, selos e carimbos nos cartórios está mais florescente do que nunca.

O tabelião admite que o sistema de reconhecimento de firmas e autenticação de cópias só é útil para os credores. Por experiência própria, afirma que muitas pessoas vão até o cartório para pedir esse tipo de serviço, mas não têm a menor idéia para que serve. “O cidadão é obrigado a ir até o cartório para garantir a segurança do credor”, diz. E complementa com a informação de que, na maior parte das vezes, a exigência do credor não está prevista em lei.

Cartórios, no entanto, lembra o tabelião, têm serviços muito mais úteis e muito menos usadas pelos cidadãos e advogados do que atestar a veracidade de uma assinatura ou de um documento. Um deles é a ata notarial.

De acordo com Ferreira, a ata é um prova quase inquestionável num processo judicial. Ele conta que 75% dos pedidos de ata são feitos para comprovar ilicitudes cometidas na internet, como uso de imagens sem autorização. Nesse caso, por meio da sua fé pública, escreve um documento em que atesta que de fato a imagem estava publicada no site. “Até agora não tive notícia de nenhuma causa perdida com o uso de atas notariais.”

No Brasil existem 6,5 mil cartórios. Mas o país que mais presta serviços notariais são os Estados Unidos. Lá, existem 13 mil. A grande diferença é que aqui os cartorários precisam ler o que estão autenticando. “Não se pode reconhecer um contrato de escravidão”, diz. Os norte-americanos reconhecem a assinatura e pronto.

Paulo Roberto Gaiger Ferreira, 45 anos, é formado em Jornalismo e Direito. Decidiu se tornar tabelião por influência de seu pai. Há sete anos é titular do 26º Tabelionato de Notas. É secretário do Colégio Notarial do Brasil e um dos membros brasileiros da Comissão de Informática e Segurança Jurídica da União Internacional do Notariado. Participaram da entrevista os jornalistas Gláucia Milício e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual é a situação dos cartórios no Brasil?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Por força da Constituição Federal, os cartórios prestam serviços delegados pelo Poder Público. O Estado prefere que um profissional do Direito, concursado, preste essa atividade pública em caráter privado. Hoje são aproximadamente 6,5 mil serviços notariais no Brasil, divididos entre tabeliães de notas e tabeliães de protesto e títulos. Estes últimos têm atribuição específica para protestar títulos, documentos de dívidas. Os tabeliães de nota trabalham com aquela coisa conhecida como burocracia: autenticação, reconhecimento de firma e escrituras. Ou seja, com a formalização dos negócios jurídicos de qualquer espécie.

ConJur — As escrituras imobiliárias são os serviços mais procurados? Só os cartórios podem fazer isso?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — O Código Civil prevê que só os cartórios podem lavrar escrituras imobiliárias. No entanto, esse “monopólio” já não existe mais, porque foram abertas diversas exceções. A prática do mercado é a de não usar escritura pública. O usual é trabalhar com contratos particulares. Só se lavra uma escritura pública quando a lei não deixa outra opção.

ConJur — Mas não há a obrigatoriedade de lavrar escritura pública quando se compra um imóvel?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Não. Se fizer um financiamento no sistema financeiro imobiliário, o contrato do banco tem força de escritura pública. Se o financiamento for feito por qualquer construtora que tenha alienação fiduciária, a escritura pública também não é necessária. Quando falamos em cartório, pensamos em monopólio. Os cartórios de registro imobiliário, via de regra, têm exclusividade dentro de determinada região geográfica. Os cartórios de notas não. Concorrem entre si, além de disputar o mercado com os contratos particulares, por exemplo.

ConJur — Como lidar com a questão da concorrência quando se presta um serviço com fé pública? O juiz tem fé pública, mas não precisa pensar na questão econômica, não concorre com seu colega do gabinete ao lado…

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — A nova classe, a de tabeliães concursados, começa a aprender a lidar com isso. É preciso agir de forma diferente dos tabeliães do antigo sistema, em que os cartórios eram passados de pai para filho. Antes do sistema de aprovação por concurso, os cartórios eram negociados pelos governadores como moeda do poder. Por conta disso, o notário podia fazer o que quisesse. Ninguém perdia cartório. Hoje, por falhas na execução do serviço, as pessoas têm perdido cartórios. Além da responsabilidade administrativa, tem a responsabilidade civil. São freqüentes as ações de indenização por falhas na prestação de serviço notarial e registral. Essa é a realidade do empreendedor notário.

ConJur — O marco divisor do sistema de provimento de cartórios é a Constituição de 1988?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — O marco divisor é a Constituição de 1946, mas no Brasil até a Constituição às vezes não pega. Lá já estava previsto o concurso público para cartórios. No entanto, poucos concursos foram feitos entre 46 e 88. Hoje, o concurso é aberto a toda população. É verdadeiramente público. Os requisitos para participar são: ser brasileiro, acima de 18 anos e ser bacharel em Direito.

ConJur — Entre as carreiras do Direito, essa é uma das mais bem remuneradas?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Temos que fugir daquele mito de que todos os tabeliães são milionários. A maioria dos cartórios não dá muito dinheiro. O Colégio Notarial do Brasil organizou um congresso para discutir a nova lei que permite separações, divórcios, partilhas e inventários em cartório. A principal reclamação dos participantes era o preço: R$ 160. Acharam caro. De fato, para os cartórios do interior é caro. É preciso ter espírito empreendedor, senão o cartório quebra. Mesmo em São Paulo há cartórios com penhora na boca do caixa. Ou seja, o que entra é usado para pagar dívidas. Essa é uma situação decorrente da falta de concursos. Isso porque, quando um cartório está sem tabelião, o Estado nomeia um interino. Muitas vezes, ele não se preocupa com a qualidade do serviço nem com investimentos na atividade.

ConJur — A pessoa que passou no concurso para ser tabelião fica até quando no cartório? Quando se abrem vagas?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Em tese, o provimento é vitalício. No entanto, o Supremo Tribunal Federal entendeu, em alguns casos, que é aplicável a aposentadoria compulsória. A questão ainda não está fechada. Muitos tabeliães estão trabalhando com base em decisões liminares.

ConJur — Qual a sua posição?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Não há base legal para a aposentadoria compulsória. A Lei 8.935/94 prevê as formas de extinção da delegação e só dispõe sobre aposentadoria facultativa. Particularmente, sou favorável à aposentadoria compulsória, mas ela poderia vir aos 80 anos.

ConJur — Dos 6,5 mil tabeliães brasileiros, quantos são concursados?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — A maioria não é. Cerca de mil tabeliães são concursados. Dois terços das vagas abertas são para ingresso [novos tabeliães]e um terço para remoção [para tabeliães concursados que queiram comandar outro cartório]. Nos últimos três concursos feitos em São Paulo sobraram cartórios. Não por falta de candidatos. Os aprovados não quiseram pegar cartórios que não dão muito lucro.

ConJur — Cartório é sinônimo de burocracia. Ninguém gosta de pegar fila pra reconhecer firma. Como explicar a necessidade dos serviços cartorários?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Cartório é burocracia. Mas o que é a burocracia? Saímos de um período em que havia uma monarquia e uma corte. O equivalente a burocracia na Idade Moderna era a corte do Rei. Atualmente, a burocracia são os serviços que dão amparo ao Estado e que também o organizam de uma forma geral. A questão é se a burocracia é útil ou não.

ConJur — Mas o reconhecimento de firma e a autenticação não são pedidos em excesso no Brasil?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Há atos inúteis, mas a maioria é útil. No Brasil, um incidente de falsidade demora meses para ser julgado. Por isso, a burocracia. O reconhecimento de firma e a autenticação de cópias impedem que a outra parte negue a assinatura ou o documento. Essa é a segurança que o cartório dá. O princípio de Nemeth explica bem a necessidade dos serviços notariais.

ConJur — O que diz esse princípio?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — “A segurança é o inverso da conveniência.” Ele foi criado pela americana Evi Nemeth, que não é muito conhecida nos Estados Unidos. Ela diz: se você vai sair de casa e quer ter segurança, vai fechar e verificar todas as janelas. Se não quiser ter todo esse trabalho, a segurança estará falha. Então, temos de tratar segurança com padrões racionais e adequados. Não é costume comprar um carro e entregar a chave sem fazer a transferência da documentação. O Detran exige esse documento porque há muita falsidade.

ConJur — Para transferir o veículo de proprietário é preciso, inclusive, a presença das partes.

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Sim. O Detran exige reconhecimento autêntico, aquele que pede a presença das pessoas. É uma providência salutar.

ConJur — No caso de imóveis, a presença das partes é necessária?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Não existe nenhuma exigência legal, mas os credores exigem. Os bancos, por exemplo, fazem contrato particular com força de escritura pública e ainda pedem para a outra parte reconhecer firma. Isso porque, se a outra parte resolve contestar o contrato, a primeira coisa que vai dizer é que não assinou o documento.

ConJur — Isso acontece com freqüência?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Com muito mais freqüência do que se imagina. Todos os contratos de locação são feitos com firma reconhecida porque há muito problema. As pessoas falsificam a própria assinatura ou pedem para um terceiro assinar. Sem contar os “laranjas” que são usados como fiadores. Se a vida fosse perfeita, os cartórios não seriam necessários.

ConJur — Ou seja, cartórios existem porque sempre existe um que quer passar a perna no outro.

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Os tabeliães surgiram na antiguidade, como escribas. O rei decidia dar uma fazenda ao fulano que foi bem na guerra. O tabelião era chamado para documentar a transação, porque ninguém escrevia. Ele certificava, com a sua fé-pública, que o rei deu o terreno e a pessoa aceitou. A evolução da atividade ao longo da Idade Moderna e da Idade Contemporânea é no sentido de fornecer segurança jurídica e proteção aos direitos do consumidor. Hoje, todo mundo sabe escrever, mas nem todo mundo sabe sobre Direito. O tabelião tem esse dever. Ele vai zelar para que as escrituras não tenham cláusulas ilícitas, por exemplo.

ConJur — Há cartórios em todo o mundo?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Sim. Mas nos países de Direito anglo-saxão eles funcionam de forma diferente do Brasil. Setenta e cinco países fazem parte da União Internacional do Notariado, inclusive a China. O tabelionato de Xangai tem 50 sócios. São 18 milhões de atos por ano. Os números são impressionantes. Nos Estados Unidos, o sistema notarial é pró-consumidor. Os cartórios cuidam de toda a burocracia. As pessoas só vão até lá para assinar. O notariado brasileiro está tentando mudar.

ConJur — Mas os pedidos de reconhecimento de firma e autenticação de cópia são tão freqüentes quanto no Brasil?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — O número é muito menor, assim como os pedidos de protesto de títulos. No Uruguai, leva-se uma semana para executar uma dívida. Como no Brasil a execução demora muito, o protesto de título assume uma função de coerção.

ConJur — E qual é a diferença entre o trabalho de um cartório no Brasil e nos Estados Unidos?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — No Brasil, o cartorário tem de ler o contrato. Não se pode reconhecer um contrato de escravidão, por exemplo. Nos Estados Unidos, o tabelião só reconhece a assinatura, mesmo sem saber do que se trata. Aliás, os Estados Unidos são o país que tem mais notários no mundo. Ao todo, são 13 mil inscritos no Notary National Association. Uma vez, fui contratado por uma senhora em São Paulo para ser notário dela em uma audiência que ia acontecer em Miami. A presença dela seria por vídeo-conferência. Os juízes exigiam que ela tivesse um notário ao lado simplesmente para dizer: “sim, esta senhora é fulana de tal”. Esse foi o meu papel. Por isso o número de notários naquele país é tão grande.

ConJur — Como comprovar a legitimidade de um documento num litígio entre países diferentes, com sistemas notariais diferentes?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — A globalização está impondo regras comuns. Na comunidade européia há uma grande discussão sobre como obter a segurança em documentos e investimentos. Na Espanha, 60% do mercado imobiliário é baseado em títulos. Quando a pessoa quer comprar uma casa, investe em um título lastreado no imóvel. A discussão é: esse título precisa ser reconhecido por um tabelião? No Reino Unido, que é regido pelo Direito romano-germânico, não precisa. Para todos os outros países da Europa, precisa. Por enquanto, eles estão fazendo acordos.

ConJur — Há três semanas entrou em vigor a Lei 11.441, que permite que divórcios e partilhas consensuais sejam feitos em cartório. Como se faz um divórcio em um cartório?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Para concretizar uma separação ou um divórcio, as partes precisam levar ao cartório: carteira de identidade, número do CPF, certidão de casamento e o advogado. Os dois decidem sobre a mudança do nome, sobre a pensão e o que mais quiserem decidir. Com esses dados, o tabelião resolve o caso. Uma das condições é que as partes não tenham filhos menores. Nesses casos, o conflito deve necessariamente ser resolvido no Judiciário.

ConJur — Qual é a expectativa de aumento na demanda?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — O Ministério da Justiça estima que 200 mil processos devem sair do Judiciário e passar para o sistema notarial em função dessa lei. Não é muito, mas as varas especializadas em Famílias e Sucessões serão otimizadas. Elas poderão tratar com muito mais atenção de casos em que haja interesse de menores, em que haja litígio.

ConJur — E no caso de inventário e partilha?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Para inventários e partilhas também é necessária a presença do advogado. Além disso, todos os herdeiros têm de ser maiores e capazes. Se houver um menor, a partilha tem de ser judicial. É necessária a mesma documentação requerida para uma separação, mais documentos comprobatórios da propriedade imobiliária, dos bens móveis de valor relevante e certidões também. Aí vem a burocracia: apresentação de uma certidão conjunta da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Essa é uma cautela indispensável, para comprovar que os bens não estavam envolvidos em ações de execução, por exemplo. A boa notícia é que a maior parte dessas certidões pode ser tirada pela internet. Na minha opinião, o tabelião deve prover o serviço de despachante imobiliário. Ir atrás de toda a documentação necessária, claro, cobrando as despesas necessárias para a obtenção das certidões.

ConJur — Quanto custa para fazer um divórcio em cartório?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Os preços dos serviços são estaduais. Em São Paulo, o preço de uma separação ou de um divórcio é de R$ 218. Isso se não tiver bens compartilhados. Mas há uma discrepância absurda nos preços desses serviços. Defendo uma tabela federal, para evitar desvios nos custos dos cartórios.

ConJur — Pessoas de baixa renda podem obter esse serviço de forma gratuita?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Sim. A legislação prevê gratuidade para a pessoa que se declara pobre. Não há mais a necessidade de apresentar atestado de pobreza. Isso é um problema. É um serviço público exercido em caráter privado e, portanto, com custos. Se tudo for gratuito…

ConJur — Não há subsídios? Os notários arcam com a gratuidade?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Não tem subsídio nenhum. Nós arcamos com os custos. Essa questão preocupa a classe. Talvez seja necessária uma forma de compensação. Um cartório que fica na Praça João Mendes, em São Paulo, não tem problemas. Mas aqueles que ficam na periferia só vão fazer separações gratuitas. Ou ele arca com todo o custou ou simplesmente diz que não vai fazer. Nesse caso, a população deixa de ser atendida. O Colégio Notarial do Brasil trabalha para resgatar o papel social do tabelião. Não se deve negar o serviço gratuito quando ele deva ser. Temos de ter a sensibilidade de dar gratuidade quando chega uma pessoa paupérrima no balcão. E devemos obediência à lei. Mas precisamos discutir com o Poder Público as formas de compensação da gratuidade quando elas são excessivamente onerosas. Isso é indispensável.

ConJur — Se eu tiver um processo de divórcio correndo na Justiça, posso transferir para o cartório?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Pode. No meu cartório, exijo apenas a homologação do pedido de desistência pela Justiça.

ConJur— Existe alguma questão controversa na nova lei de divórcios e partilhas?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — A questão do inventário tem percalços que ainda não têm solução. Uma pessoa herdou uma fortuna, mas não tem dinheiro para pagar o imposto de transmissão, que é de 4%. No Judiciário, o juiz libera o valor através de um alvará. O herdeiro saca o dinheiro no banco e paga a guia de transmissão. No cartório a situação é diferente, porque o tabelião não tem poder para liberar o dinheiro. Por isso, eu defendo que a Secretaria da Fazenda edite uma portaria permitindo que o herdeiro se apresente no banco com uma guia no valor do imposto, com um pedido administrativo do tabelião, e assim a guia seja quitada. Se não, o processo perde a sua celeridade.

ConJur — E por que é necessária a presença de advogado nesses procedimentos?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — A lei foi sábia em exigir a presença do advogado. Muitas vezes, as partes não conversam e é o advogado que vai transformar aquele litígio familiar em um consenso. Além disso, a Constituição Federal diz que o advogado é essencial para a administração da Justiça.

ConJur — Com a necessidade de produção de provas de atos da internet, cresceu o uso da ata notarial?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Sim. Mas as atas notariais estão previstas na Lei 8.985/84 e já eram usadas muito antes disso. Há duas atas notariais sobre o descobrimento da América. Na caravela de Pedro Álvares Cabral tinha um notário. Atualmente, estamos vendo uma redescoberta desse instrumento. É um belíssimo instrumento de prova. O tabelião é uma pessoa à parte do processo e ele tem fé pública com responsabilidade. Se declarar alguma coisa errada, responde administrativamente. O tabelião pode até perder o cartório ou responder ação de perdas e danos. A ata notarial deve descrever os fatos com isenção. Por exemplo, uma empresa foi multada em mais de R$ 100 mil por estar poluindo um rio. Ela teve direito de apresentar contraprova. A empresa me contratou para presenciar a contraprova. Eles queriam provar que o líquido que saiu do rio era o mesmo que chegou ao laboratório que faria a análise da água. Eu acompanhei a retirada do líquido e coloquei minha rubrica entre o lacre e o papel colado no tubinho. Fui até o laboratório e certifiquei que a minha assinatura não tinha sido violada. A partir dali, a responsabilidade era do laboratório.

ConJur — A multa foi mantida?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Não. O novo exame comprovou que a água não estava poluída. A ata mais valiosa que fiz foi uma que meu cliente pagou R$ 33 e recebeu uma indenização de R$ 300 milhões. À época, o preço da ata era muito baixo. Hoje, a ata custa R$ 202 a primeira folha, frente e verso. Depois, mais R$ 176 por página adicional.

ConJur — Mas, com a internet, quanto cresceu o número de solicitações de ata notarial?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Hoje, 75% das atas solicitadas são eletrônicas. Mas existem campos em que a ata notarial poderia ser usada e é mal explorada. Por exemplos, na área societária. Muitas vezes os grupos, formados por pequenas sociedades, estão em choque. O secretário da Assembléia, geralmente, vai fazer a ata de um jeito que proteja os seus próprios interesses. Um tabelião contratado para escrever uma ata notarial pode resolver uma possível desconfiança. Cada sócio pode levar o seu. Nas assembléias de condomínios também. Esse é um documento quase inquestionável. As partes, geralmente, estão de acordo com aquilo que o tabelião escreve. A ata notarial inverte o ônus da prova. Quem está com a ata notarial na mão, fica tranqüilo. Além disso, é um instrumento econômico. Custa muito menos que uma perícia, por exemplo. Um exemplo em que a ata foi usada para casos de internet foi de uma modelo que entrou com uma ação contra um site. Ela alegava que o endereço usava a sua imagem, sem autorização. Fizemos uma ata para comprovar que a imagem não estava mais sendo usada pelo site. Ela serviu para fixar o prazo do ilícito. A indenização deveria ser paga até o dia em que a ata notarial foi registrada.

ConJur — O senhor diria que a ata notarial vai emergir como o maior instrumento de prova da era da internet?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Eu não diria o maior. O maior seria a perícia. Porque o tabelião não pode verificar o tráfego de dados na internet. Verificar se o IP está sendo usado falsamente, se aquele e-mail saiu efetivamente de uma caixa postal. Na prova eletrônica, a perícia tem mais relevância. Mas há um casamento muito equilibrado da perícia com a ata notarial.

ConJur — Quando assumem o cartório, os notários assumem os passivos judiciais?

Paulo Roberto Gaiger Ferreira — Sim, em qualquer tipo de ato. A demanda mais séria em São Paulo foi de um pai que separou da mulher e levou os dois filhos para a Líbia. Até hoje, a mulher não viu os filhos. A tabeliã que reconheceu, por semelhança, a assinatura da autorização para que as crianças viajassem foi condenada a pagar R$ 1,1 milhão. Mas a lei diz que deve-se reconhecer por semelhança a assinatura, não por autenticidade, com a pessoa que assina presente. No caso das crianças levadas para a Líbia, se a parte tivesse comparecido perante o tabelião, aí sim teria sido falha do tabelião. Nesse caso, o reconhecimento foi por semelhança. A sociedade tem que perceber que a burocracia é necessária. Não se pode correr o risco de uma criança viajar para o Rio de Janeiro sem ter uma assinatura reconhecida por autenticidade. Por que para transferir um carro de proprietário é preciso o reconhecimento por autenticidade e para levar uma criança para a Disney não precisa? O que vale mais?

Lilian Matsuura é repórter da revista Consultor Jurídico.

Fonte: Conjur, domingo, dia 28 de janeiro de 2007.