CSM-SP. Jurisprudência selecionada.

Acórdão CSM

Data: 18/11/1997  Data DOE:   Fonte: 038663-0/8  Localidade: São Paulo

Relator: MÁRCIO MARTINS BONILHA

Doação modal. Prenotação – prioridade – trintídio.

EMENTA: Registro de Imóveis – Dúvida – Doação modal feita por procuração – Irrelevância da revogação do mandato em data posterior à lavratura da escritura, mas anterior ao seu registro – Escritura de doação modal, da qual consta a existência de encargo, mas não a sua especificação – Escritura em desacordo com o mandato que a ampara – Requisitos do mandato para o contrato e doação, que deve conter não apenas poderes expressos, mas especiais, designando a coisa a ser doada e o seu beneficiário – Irrelevância da juntada de escritura de declaração firmada pelos donatários, no curso do procedimento – Registro inviável – Recurso improvido.

Íntegra:

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N. 38.663-0/8, da Comarca da CAPITAL, em que são apelantes ANTÔNIO AUGUSTO DA FONSECA NADAIS e OUTROS e apelado o OFICIAL DO 2o CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS da Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso.

Cuidam os autos de dúvida suscitada a requerimento dos ora apelantes, em que se negou registro a escritura de doação, porque lavrada com base em mandato revogado em data posterior ao ato notarial, mas anterior ao registro.

Sustentaram os ora apelantes, em sede de impugnação, ser irrelevante a revogação, do mandato após a lavratura da escritura de doação, negócio jurídico perfeito e acabado.

A r. sentença atacada julgou procedente a dúvida, por óbice diverso do argüido pelo registrador, qual seja, o fato de mencionar a escritura a existência de encargo, sem, no entanto, especificá-lo de modo expresso.

Em sede recursal, alegam os apelantes, em preliminar, a nulidade da sentença, por ser extra e ultra petita, uma vez que negou o registro por motivos distintos daqueles postos pelo Oficial registrador. No mérito, sustentam que o encargo pode ser inferido do exame da procuração e fizeram juntar escritura de declaração, na qual eles, recorrentes/donatários, concordam expressamente com a assunção do ônus.

Opinou o Dr. Curador de Registros pela reforma da decisão, porque a natureza do encargo pode ser extraída do exame da procuração.

O Dr. Procurador de Justiça, por seu turno, opinou no sentido do improvimento do recurso, uma vez que a escritura de doação está em desacordo com o mandato em que se apóia.

É o relatório.

O recurso não merece provimento.

A r. sentença atacada não se ressente dos vícios de extra ou ultrapetição. Sabido que no procedimento da dúvida registrária se procede, a cada decisão, quer em primeiro, quer em segundo grau, a uma renovada e completa qualificação do título apresentado ao fólio. Daí a possibilidade de nela se reconhecer óbices diversos daqueles levantados pelo Oficial registrador (cfr. Apelação Cível 28.808-0/2, Rel. Des. Alves Braga).

O óbice originalmente levantado pelo registrador não tem consistência, como bem apanhado pela r. decisão atacada. Irrelevante o fato de ter sido revogado o mandato em data posterior à da doação, mas anterior à do registro. Isso porque, nos exatos termos do artigo 1.316 do Código Civil, extingue-se o mandato, entre outras causas, pela conclusão do negócio a que visa.

Como bem lembrado pelo Dr. Curador de Registros Públicos, invocando a lição de Washington de Barros Monteiro, ‘não há de se cogitar, porém, de revogação, quando o mandato já se acha inteiramente cumprido e concluído o negócio’ (Curso de Direito Civil, vol. 5, 26a Edição, 1.993, pág. 271).

Persistem, todavia, outros motivos impeditivos do registro.

O primeiro deles é aquele posto na sentença atacada, qual seja, a escritura pública de doação ostenta vício formal, porque refere ser a doação modal, a teor do artigo 1.180 do Código Civil, mas não revela quais são ou no que consistem os encargos.

Inviável, pois, o registro parcial do título como doação simples, ignorando a existência do encargo expressamente manifestado no ato notarial. Lembre-se que a incerteza da prestação do encargo torna-o juridicamente impossível, o que, na opinião dos doutos, acarreta a sua nulidade juntamente com a da doação (Agostinho Alvim, Da Doação, Ed. RT, 1.963, pág. 235; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições da Direito Civil, 10o Edição, Forense, vol. III, pág. 158;Ennecerus Y Lebman, Tratado de Derecho Civil, Derecho de Obligaciones, Editora Bosh, 1.966, tomo II, § 125, pág. 229).

Argumentam os recorrentes/donatários com escritura de declaração que fizeram lavrar após a doação, na qual concordam expressamente com o encargo constante do mandato outorgado ao representante do doador. Da escritura de mandato, por seu turno, consta qual o encargo a ser cumprido, o que supriria a omissão do negócio da doação.

O documento não tem o condão de reverter o óbice, quer sob o ângulo do procedimento da dúvida, quer sob o ângulo substantivo.

Tem decidido de modo tranqüilo este Colendo Conselho que o procedimento de dúvida não se presta, durante o seu curso, a satisfação das exigências formuladas (Apelações Cíveis ns. 12.689-0/6, 5.221-0, 5.841-0). Admitir tal conduta significaria estender indevidamente aos suscitantes o benefício da prenotação, conferindo-lhe prioridade enquanto buscam cumprir as exigências além do trintídio.

Sob o ângulo substantivo, não há como suprir vício insanável em negócio jurídico cuja interpretação, por imposição legal, será sempre restritiva, mediante singela escritura de declaração dos donatários. Ainda na lição do autorizado Agostinho Alvim, ‘imperfeita a doação, o doador poderá reproduzi-la. Mas será negócio novo’ (ob. cit., pág. 36).

Finalmente, ainda que se pudesse superar o óbice acima posto, outro haveria, ao se examinar com atenção os exatos poderes conferidos pelo doador na escritura de mandato que acompanha a de doação. Isso porque é o mandato expresso, mas não especial, como seria de rigor.

Como é sabido, a doação é contrato que pressupõe ânimo generoso do doador, que terá o firme propósito de fazer uma liberalidade. Por isso, diz-se ter um elemento subjetivo, chamado ‘animus donandi‘, consistente da intenção do doador de praticar espontânea gratificação. Não perde tal requisito a doação modal, diante do que dispõe o artigo 1.167 do Código Civil.

Na lição do clássico Agostinho Alvim, ‘o animus donandi é essencial; e ele só existe se for mencionado na procuração o donatário, a quem o doador quer beneficiar, não bastando o animus donandi indeterminado’ (ob. cit., pág. 31; cfr. também Eduardo Espínola, Contratos Nominados, n. 94, nota n. 38, pág. 151, e Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Ed. 1.956, vol. VIII, tomo I, pág. 289).

Assim sendo, em vista dos requisitos da doação em nosso sistema jurídico, o ato inexistirá por falta de um de seus elementos integrantes, se o mandato não disser a quem e o que se deve doar. Em termos diversos, as pessoas beneficiárias e as coisas a serem doadas devem necessariamente estar na mente do doador e não apenas na mente do mandatário, para que haja o ‘animus donandi‘ na sua correta acepção (cfr. julgados do STF in RTJ 82/956, Rel. Min. Rodrigues Alckmin; RTJ 96/806, Rel. Min. Cordeiro Guerra).

Note-se que, no caso concreto, inexistem instruções do mandante ao mandatário, de molde a suprir a lacuna do ‘animus donandi‘, acerca de quem deva ser o beneficiário da liberalidade. A vaga expressão, de que será feita a doação ‘a quem quiser’ o mandatário, é incompatível com a natureza do negócio jurídico em exame.

Como explica Serpa Lopes, ‘não é admissível, porém a nomeação do donatário ad libitum do mandatário do doador, salvo se atribuir ao mandatário apenas a faculdade de escolher o donatário entre as pessoas indicadas pelo doador’ (Curso de Direito Civil, 6a Edição, Freitas Bastos, vol. III, pág. 396).

Em razão do óbice bem levantado na decisão atacada, somado ao ora aqui posto, o registro do título é inadmissível.

Determina-se a extração de cópias deste acórdão e das certidões da escritura de doação e mandato (fls. 07 e 17), remetendo-as ao Juiz Corregedor Permanente do 23o Tabelionato da capital, para apuração de responsabilidade funcional, diante do vício formal existente no ato notarial.

Diante do exposto, negam provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores YUSSEF SAID CAHALI, Presidente do Tribunal de Justiça e DIRCEU DE MELLO, Vice – Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 31 de julho de 1.997.

(a) MÁRCIO MARTINS BONILHA, Corregedor Geral da Justiça e Relator.