CSM|SP: Registro de Imóveis – Escritura pública de venda e compra – Imóvel adquirido pela vendedora na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória de bens – Exigência de comprovação de propriedade exclusiva fundada na súmula 377 do STF – Improcedência – Presunção de esforço comum não se aplica automaticamente na separação obrigatória – Necessidade de prova efetiva – Entendimento consolidado do STJ – Qualificação registral não pode presumir comunhão nem investigar realidade extratabular – Exigência indevida – Provimento do recurso – Registro determinado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1043089-29.2024.8.26.0224, da Comarca de Guarulhos, em que é apelante SANDRA DOS SANTOS BARBOSA, é apelado PRIMEIRO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE GUARULHOS.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 11 de junho de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1043089-29.2024.8.26.0224

Apelante: Sandra dos Santos Barbosa

Apelado: Primeiro Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Guarulhos

VOTO Nº 43.825

Direito de família – Escritura pública de venda e compra de imóvel próprio adquirido pela alienante no estado de casada sob o regime da separação obrigatória de bens – Registro recusado – Dúvida julgada procedente – Apelo provido para determinar o registro do título.

I. Caso em exame. 1. O Oficial negou o registro porque o bem imóvel não consta como de titularidade exclusiva da vendedora, que o adquiriu no estado de casada sob o regime da separação obrigatória de bens. 2. A interessada/suscitada, alienante do imóvel, alegando que o bem imóvel integra seu patrimônio particular, apelou da r. sentença, que confirmou o juízo negativo de qualificação registral.

II. Questões em discussão. 3. O exato conteúdo e o alcance da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal.

4. A pertinência da comprovação exigida, relacionada à propriedade exclusiva do imóvel objeto da compra e venda, à luz do atual entendimento da jurisprudência sobre o tema.

III. Razões de decidir. 5. A comunhão dos aquestos, no regime da separação obrigatória de bens, não é a regra, tampouco é presumida, muito menos de forma absoluta. 6. Embora, nos termos da Súmula 377, se admita a partilha dos bens adquiridos onerosamente e por esforço comum, este deve ser provado, não pode ser presumido, em conformidade com a orientação do C. Superior Tribunal de Justiça. 7. Em se tratando do regime da separação obrigatória de bens, é ônus do interessado provar a efetiva participação no esforço para a aquisição onerosa, sendo inadmissível, ainda mais na esfera administrativa, possa prevalecer a presunção de comunhão. 8. A regra é a separação patrimonial entre os cônjuges. A exceção é a existência de aquestos, subordinada à prova do esforço comum. A exigência impugnada acaba por inverter a textual opção do legislador e a interpretação do Superior Tribunal de Justiça sobre o conteúdo e o exato alcance do verbete 377.

IV. Dispositivo. 9. Recurso provido, dúvida julgada improcedente, registro determinado.

Tese de julgamento: 1. A comunicação dos bens onerosamente adquiridos sob regime da separação obrigatória exige a comprovação de esforço comum. 2. A qualificação do título não se presta à inquirição de realidade extratabular.

Legislação citada: CC/1916, art. 259.

Jurisprudência citada: STJ, Embargos de Divergência em REsp n.º 1.171.820/PR, rel. Min. Raul Araújo, j. 26.8.2015; REsp n.º 1.689.152/SC, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.10.2017; Embargos em Divergência em REsp n.º 1.623.858/MG, rel. Ministro Lázaro Guimarães, j. 23.5.2018; AgInt no AgRg no Agravo em REsp n.º 233.788/MG, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 19.11.2018; AgInt nos EDcl no AgInt no Agravo em REsp n.º 1.084.439/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 3.5.2021; CSM/TJSP, Apelação Cível n.º 1000094-56.2023.8.26.0120, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 12.9.2024, e na Apelação Cível n.º 1017957-06.2024.8.26.0309, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 16.12.2024.

A interessada Sandra dos Santos Barbosa pretende o registro da escritura pública de venda e compra do bem imóvel descrito na matrícula n.º 44.287 do 1.º RI de Guarulhos, por ela anteriormente adquirido na condição de casada sob o regime da separação obrigatória de bens com Sérgio Fernandes, agora alienado ao casal Paulo Bandeira e Roseni Teixeira Alencar Bandeira.

Ao recusar o registro do título de fls. 37-38, prenotado sob o n.º 414.278, e ao suscitar a dúvida, o Oficial invocou a Súmula n.º 377 do E. Supremo Tribunal Federal, a presunção de comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, não afastada à época da aquisição do bem imóvel ora alienado, que, na matrícula, não consta como pertencendo exclusivamente à suscitada (fls. 1-7 e 16-18).

A dúvida foi julgada procedente. Inconformada com a r. sentença de fls. 153-155, a interessada apelou. Em suas razões de fls. 161-169, sustentou que o bem imóvel alienado integra seu patrimônio particular e a inaplicabilidade da Súmula n.º 377 do E. Supremo Tribunal Federal. Aguarda, assim, o provimento da apelação e, por conseguinte, o registro da escritura de venda e compra.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 198-200, opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

1. A interessada/suscitada Sandra dos Santos Barbosa, ora recorrente, busca o registro do título de fls. 203-206, escritura pública de venda e compra lavrada no dia 13 de maio de 2024, na matrícula n.º 44.287 do 1.º RI de Guarulhos, que tem por objeto o bem imóvel por ela alienado, na condição de divorciada, ao casal Paulo Bandeira e Roseni Teixeira Alencar Bandeira.

Trata-se de bem imóvel cuja propriedade foi transferida anteriormente à recorrente, incorporado ao patrimônio imobiliário dela a título oneroso no dia 8 de junho de 2015, no estado de casada, sob o regime da separação obrigatória de bens, com Sérgio Fernandes, que faleceu no dia 10 de março de 2017, após o divórcio ocorrido no dia 2 de maio de 2016 (fls. 8-14, 19-31, r. 10 e av. 11, e 47-48).

A desqualificação registral, expressa na nota devolutiva de fls. 16-18 e na suscitação de dúvida de fls. 1-7, está assentada na Súmula n.º 377 do E. Supremo Tribunal Federal, de acordo com a qual “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”, fundamenta-se, precipuamente, na presunção de comunicabilidade e, sob essa compreensão, na falta de partilha do patrimônio conjugal atribuindo o imóvel exclusivamente à recorrente.

A controvérsia repousa, em última análise, nos efeitos da Súmula n.º 377 do E. Supremo Tribunal Federal.

2. Tenho pessoalmente sérias dúvidas a respeito da incidência da Súmula n.º 377 na vigência do atual Código Civil, porque ausente a sua razão de ser, a regra do art. 259 do Código Civil de 1916, segundo a qual, no regime da separação convencional de bens, silente o pacto antenupcial, haveria a comunicação dos aquestos, bens adquiridos na constância do casamento.

À época da legislação civil revogada, a jurisprudência estendeu a eficácia de aludida regra, e logo a aplicação dos princípios da comunhão parcial quanto aos bens adquiridos no curso do matrimônio, ao regime da separação obrigatória de bens.

Aí se encontra a origem da Súmula n.º 377, aprovada pelo E. Supremo Tribunal Federal no dia 3 de abril, editada no dia 8 de maio de 1964.

Ocorre que o Código Civil em vigor, Código Reale, não contém norma semelhante à do art. 259 do Código Beviláqua, regra que distorce o regime da separação de bens.

Sobre mencionado dispositivo, dizia Silvio Rodrigues:

Tal regra, que surge como um alçapão posto na lei para ludibriar a boa-fé dos nubentes e conduzi-los a um regime de bens não desejado, só encontra explicação na indisfarçável preferência do legislador de 1916 pelo regime da comunhão e na sua desmedida tutela do interesse particular, injustificável em assunto que não diz respeito à ordem pública. …[1]

Seja como for, de acordo com a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça, o verbete 377 da Excelsa Corte segue em vigor, subsiste, é aplicável, malgrado sob uma nova leitura.

O C. Superior Tribunal de Justiça fez, de fato, a releitura do preceito sumular, para evitar, de um lado, o locupletamento injusto, situações de injustiça, que então desconsiderassem o esforço comum na construção do patrimônio formado posteriormente ao casamento, e, de outro, a automática conversão, a transformação (assim pura e simples) da separação obrigatória de bens em regime da comunhão parcial.

3. A comunhão dos aquestos, no regime da separação obrigatória de bens, não é a regra, tampouco é presumida, muito menos de forma absoluta. Embora, nos termos da Súmula n.º 377, se admita a partilha dos bens adquiridos de forma onerosa e por esforço comum, este, o esforço comum, deve ser demonstrado, comprovado, em suma, não pode ser presumido.

O entendimento no sentido da presunção do esforço comum firmado no preceito sumular vem sofrendo temperamento pelo C. Superior Tribunal de Justiça, que em diversos precedentes e com a finalidade de evitar confusão com o regime da comunhão parcial de bens, tem exigido a prova de esforço comum na aquisição de bens no caso de separação legal. Consolidou-se, na verdade, em aludido sentido.

In casu, o mais recente posicionamento da Corte Superior a respeito da interpretação da Súmula n.º 377 do E. Supremo Tribunal Federal, o da sua Segunda  Seção, foi estabelecido nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n.º 1.171.820/PR, rel. Min. Raul Araújo, j. 26.8.2015, de cuja ementa extraio os seguintes excertos:

1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens.

2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha.

Do corpo do v. acórdão constam passagens, abaixo transcritas, que resumem com precisão a questão e a exata exegese do alcance da Súmula n.º 377 pelo C. Superior Tribunal de Justiça:

Cabe definir, então, se a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento ou da união depende ou não da comprovação do esforço comum, ou seja, se esse esforço deve ser presumido ou precisa ser comprovado. Noutro giro, se a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, ou se é a regra.

Tem-se, assim, que a adoção da compreensão de que o esforço comum deve ser presumido (por ser a regra) conduz à ineficácia do regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, pois, para afastar a presunção, deverá o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na constância da união. Torna, portanto, praticamente impossível a separação  dos aquestos.

Por sua vez, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, parece mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente confirmado no Código Civil de 2002, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens. Caberá ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva).

No mesmo sentido, há diversos precedentes recentes da Corte Superior: REsp n.º 1.689.152/SC, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.10.2017; Embargos em Divergência em REsp n.º 1.623.858/MG, rel. Ministro Lázaro Guimarães, j. 23.5.2018; AgInt no AgRg no Agravo em REsp n.º 233.788/MG, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 19.11.2018; e AgInt nos EDcl no AgInt no Agravo em REsp n.º 1.084.439/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 3.5.2021.

De tal forma, tratando-se do regime da separação legal (obrigatória) de bens, cabe ao interessado provar a efetiva participação no esforço para a aquisição onerosa do bem, não sendo admissível que na via administrativa possa prevalecer a presunção de comunhão.

A exigência do Registrador, neste contexto, acaba por inverter a textual opção do legislador e a clara interpretação atual do C. Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema.

4. Do exposto, na falta de prova do esforço comum do casal, não há que se falar em fato jurídico capaz de amparar a divisão de bens entre os cônjuges, a exigência de partilha então comprobatória da atribuição do bem imóvel exclusivamente à interessada, ora recorrente, e, portanto, é de se reconhecer a falta de interesse jurídico no suposto e eventual direito à meação.

Vale aqui a lição de Francisco José Cahali:

(…) Isto porque o novel legislador deixou de reproduzir a regra contida no malfadado artigo 259 (CC/1916). Desta forma, superada está a Súmula n.° 377, desaparecendo a incidência de seu comando no novo regramento. Sabida a nossa antipatia à Súmula, aplaudimos o novo sistema. E assim, não mais se admite a prevalência dos princípios da comunhão parcial quanto aos bens adquiridos na constância do casamento pelo regime de separação obrigatória (separação legal). A separação obrigatória passa a ser, então, um regime de efetiva separação de bens, e não mais um regime de comunhão simples (pois admitida a meação sobre os aquestos), como alhures. A exceção deve ser feita, exclusivamente, se comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição de bens, decorrendo daí uma sociedade de fato sobre o patrimônio incrementado em nome de apenas um dos consortes, justificando, desta forma, a respectiva partilha quando da dissolução do casamento. Mas a comunhão pura e simples, por presunção de participação sobre os bens adquiridos a título oneroso, como se faz no regime legal de comunhão parcial, e até então estendida aos demais regimes, deixa de encontrar fundamento na lei. (…).[2]

Neste quadro, em razão de recentes interpretações do C. Superior Tribunal de Justiça a respeito da aplicabilidade da Súmula n.º 377 do STF e da necessidade de comprovação do esforço comum para permitir a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória, dependendo do exercício da pretensão e da prova do esforço comum, impossível admitir que na via administrativa o Oficial subverta tal regime jurisprudencial, ao qual subordinado, impondo exigência fundada na presunção, que, como se disse, não mais prevalece.

Em síntese: o apelo da interessada/suscitada é de ser provido, e isso porque a exigência oposta está em aberto desacordo com a compreensão contemporânea do preceito sumular 377, a respeito de sua aplicabilidade; ademais, contraria a orientação atual deste C. Conselho Superior da Magistratura sobre o tema, expressa, v.g., na Apelação Cível n.º 1000094-56.2023.8.26.0120, j. 12.9.2024, e na Apelação Cível n.º 1017957-06.2024.8.26.0309, j. 16.12.2024, ambas de minha relatoria.

Daí a reforma da r. sentença.

A intelecção sumulada, isoladamente, não confere ao cônjuge, in casu, ao seu espólio, o direito à meação dos bens adquiridos durante o casamento sem que seja provado o esforço comum, assim, a qualificação do título deve se ater dentro de tais lindes e, nessa senda, sem projeção exógena para inquirição de uma realidade extratabular.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para afastar a exigência e, julgando a dúvida improcedente, determinar o registro da escritura de venda e compra de fls. 203-206.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Direito Civil: Direito de Família. 21.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 166. v. 6.

[2] A súmula n.° 377 e o novo código civil e a mutabilidade do regime de bens. In: Revista do Advogado, n.° 75, abril. 2004, p. 29.

(Acervo INR – DJe de 24.06.2025 – SP)