CSM|SP: Usucapião extrajudicial – Indeferimento do processamento com fundamento na possibilidade de regularização pelas vias ordinárias – Cabimento da via administrativa desde que preenchidos os requisitos legais – Procedimento facultativo previsto no art. 216-A da Lei 6.015/73 – Impossibilidade de o registrador recusar de plano o processamento sob argumento genérico de evasão fiscal ou existência de alternativas formais – Apresentação de justificativa plausível pelos requerentes – Recolhimento de ITCMD e abertura de inventário – Ausência de responsabilidade pelo ITBI – Exigências de difícil ou impossível cumprimento que justificam a via da usucapião – Provimento do recurso – Improcedência da dúvida – Determinação para prosseguimento do procedimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1008205-52.2023.8.26.0565, da Comarca de São Caetano do Sul, em que são apelantes FÁBIO ROSSETTINI e SOLANGE VERALDI, é apelado PRIMEIRO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO CAETANO DO SUL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida, com determinação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 11 de junho de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1008205-52.2023.8.26.0565

Apelantes: Fábio Rossettini e Solange Veraldi

Apelado: Primeiro Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Caetano do Sul

VOTO Nº 43.809

Direito civil – Apelação – Usucapião extrajudicial – Recurso provido.

I. Caso em Exame

1.Apelação interposta contra sentença que manteve o indeferimento do processamento de usucapião extrajudicial de imóvel, na modalidade extraordinária, sob alegação de possibilidade de regularização pelas vias ordinárias. Os apelantes alegam preenchimento dos requisitos para usucapião e que a escolha do procedimento administrativo não visou burlar requisitos legais.

II. Questão em Discussão

2. A questão em discussão consiste em determinar se o procedimento de usucapião extrajudicial pode ser utilizado quando há possibilidade de regularização do imóvel por outras vias e se o Registrador pode recusar o processamento administrativo com base em tal argumento.

III. Razões de Decidir

3. A usucapião extrajudicial é um procedimento facultativo que não substitui as formas ordinárias de transferência de propriedade, mas pode ser utilizado quando preenchidos os requisitos legais.

4. A despeito de existirem outras opções de regularização da titularidade dominial, a usucapião extrajudicial é via possível quando a parte alega preencher os requisitos legais previstos no ordenamento jurídico e apresenta justificativa plausível para a opção feita.

IV. Dispositivo e Tese

5. Recurso provido. Determinação para prosseguimento do procedimento extrajudicial de usucapião.

Tese de julgamento: 1. A usucapião extrajudicial é válida quando preenchidos os requisitos legais, independentemente de outras opções de regularização. 2. O Registrador deve analisar o pedido conforme a legislação civil aplicável.

Legislação Citada:

– Provimento CNJ 65/2017, art. 13, § 2º.

– Código de Processo Civil, art. 1.071.

Cuida-se de apelação interposta por FABIO ROSSETTINI e SOLANGE VERALDI em face da r.sentença de fls. 317/318, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Caetano do Sul, que, em procedimento extrajudicial de usucapião extraordinária, tendo por objeto o imóvel da transcrição 23.628 da Serventia, manteve a decisão de indeferimento do processamento do requerimento por entender caracterizada ofensa ao art. 13, §2º do Provimento 65 do CNJ, haja vista a possibilidade de regularização da titularidade dominial pelas vias ordinárias.

A apelação busca a reforma da sentença, sustentando o desacerto do julgado, haja vista a possibilidade de usucapião quando preenchidos os requisitos da modalidade pretendida, cabalmente demonstrados no caso em análise, de modo que não é possível ao Registrador imiscuir-se nas opções legislativas da parte. Ademais, os apelantes providenciaram a abertura do inventário dos bens deixados pelos pelo antecessor Rino Fábio Rossetini, providenciando o recolhimento do imposto devido pela transmissão sucessória (ITCMD), certo que uma das exigências apresentadas pelo Registrador para a qualificação dos títulos pretéritos, o recolhimento do ITBI, não é de responsabilidade dos apelantes. Deste modo, sustentando que a escolha do procedimento de usucapião administrativa não se tratou de tentativa de burla aos requisitos legais, mas de legítima opção conferida ao possuidor (fls. 324/331).

A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo improvimento da apelação (fls. 346/351).

É o relatório.

A apelação merece provimento.

De acordo com os autos, os apelantes ingressaram com requerimento de usucapião extrajudicial, na modalidade extraordinária, relativamente ao imóvel localizado a rua dos Mármores, sem número, objeto da inscrição municipal nº 14.011.0011 e da transcrição 23.628 do 1º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André, alegando o exercício de posse qualificada decorrente do falecimento de Rino Fábio Rossetini, que teria adquirido o imóvel de Adão Bento de Souza, cuja escritura teve seu registro obstado no ano de 2016, com 3 exigências: 1) comprovação do CPF dos antecessores ou prova da recusa/impossibilidade; 2) certidão de casamento dos proprietários; 3) comprovação do pagamento do ITBI.

Recepcionado o requerimento, o Oficial apresentou a nota de devolução nº 5.300 com o seguinte teor (fls. 06/10):

“Os requerentes se tornaram possuidores do imóvel mencionado acima por sucessão decorrente do falecimento de Rino Fábio Rossettini. E esse, por sua vez, adquiriu o imóvel de Adão Bento de Souza e Iracema da Silva Souza, nos termos da Escritura Pública lavrada em 18.01.1962 pelo 22º Tabelião de Notas de São Paulo – Capital.

A escritura retrocitada foi apresentada nesta Serventia para qualificação em 10 de outubro de 2016 sob prenotação 87.412, sendo devolvida em 20 de outubro de 2016, onde foram apresentados os seguintes óbices:

1) Deve o interessado apresentar o número de Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) de Adão Bento de Souza, Iracema da Silva Souza e Rino Fábio Rossetini. Caso não possua o dado solicitado, cabe ao interessado proceder à solicitação do mesmo diretamente em uma unidade de atendimento da Receita Federal. Na hipótese de não prestação da informação pela Receita Federal, este Oficial praticará o ato de registro, mediante prova escrita da recusa em fornecer o CPF pela Receita Federal;

Deve ser apresentada a Certidão de Casamento dos proprietários tabulares Adão Bento de Souza e Iracema da Silva Souza, em sua via original ou cópia autenticada; e;

Apresentar Guia de ITBI, com seu comprovante de recolhimento, em sua via original ou cópia autenticada.

Como dizer, como é amplamente sabido, a usucapião não substitui as formas ordinárias de transferência de propriedade, devendo ser adotada sempre como meio excepcional de regularização de propriedade, sempre acompanhada de uma justa causa, evitando-se assim a evasão fiscal ou outras formas de fraudes e abusos.

Deste modo, conclui-se inadmissível o reconhecimento da Extrajudicial da Usucapião, pois na presente oportunidade, não há evidências de tentativas de superar os óbices registrais, bem como não se justifica a ausência do correto registro das transações (Escritura de Venda e Compra de 18/01/1962 e Inventário e Adjudicação – Processo 0607228-90.008.8.26.0100 da 5ª Vara da Família e Sucessões de São Paulo-SP), conforme determina o Provimento CNJ n.65/17, art. 13,

§2º. Estes são os motivos impedientes do acesso do título, ficando o Oficial Interino à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários”

A sentença recorrida confirmou a recusa do Oficial quanto ao processamento do pedido de usucapião extrajudicial, sob o argumento de que os apelantes poderiam regularizar o imóvel de maneira diversa, com base no art. 13, § 2º, do Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça.

Pois bem.

Não se desconhece a previsão contida no artigo 13, § 2º, do Provimento CNJ 65/2017, segundo a qual a via da usucapião somente se justifica quando inviável o registro de aquisição mediante negócios jurídicos (destaque nosso):

“Art. 13. Considera-se outorgado o consentimento mencionado no caput do art. 10 deste provimento, dispensada a notificação, quando for apresentado pelo requerente justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível expedida até trinta dias antes do requerimento que demonstre a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.”

§2º. Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei”.

Conquanto desejável o juízo prudencial do Registrador na aplicação do referido Provimento, inquestionável que não se pode colocar em prejuízo a situação da parte que sustenta preencher todos os requisitos legais para aquisição da propriedade pela usucapião, com rejeição do processamento da via administrativa sem ao menos dar início ao ciclo notificatório, como foi a hipótese dos autos.

Ademais, há de ser assinalado que os apelantes apresentaram justificativa para a escolha da via da usucapião, insistindo no argumento de que não se furtaram ao cumprimento da lei, inclusive com a abertura de prévio inventário e recolhimento do ITCMD. O recolhimento do ITBI, como foi dito, não era de responsabilidade dos apelantes (que não eram contribuintes, tampouco responsáveis tributários) e a via regressiva desponta como providência sem sucesso.

O Código de Processo Civil, em seu art. 1.071, incluiu na Lei de Registros Públicos o art. 216-A, dispositivo legal responsável pela instituição da usucapião extrajudicial. Em breve resumo, a usucapião extrajudicial não é uma nova modalidade de aquisição originária da propriedade, mas mero procedimento facultativo apresentado diretamente no Cartório de Registro de Imóveis em que estiver situado o imóvel usucapiendo para fim de declaração da propriedade em favor do ocupante, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto. O obstáculo apresentado pelo Sr. Oficial do Registro de Imóveis de São Caetano do Sul/SP não se sustenta, pois a multiplicidade de opções franqueadas pela legislação vigente para regularização do imóvel a cargo do ocupante não é excludente ainda que uma ou outra possibilidade seja mais ou menos demorada, ou mais ou menos custosa.

Compete ao Registrador analisar o pedido administrativo de usucapião segundo os requisitos impostos na legislação civil para a modalidade nomeada no requerimento formulado e não impedir o uso do procedimento administrativo sob o argumento de existirem outras opções de regularização do imóvel, simplesmente.

O registro do título não foi admitido, e algumas das exigências podem ser de difícil ou de impossível cumprimento, a justificar a escolha da parte pela via da aquisição originária da usucapião.

Consequentemente, reputando-se como indevida a qualificação negativa neste momento, ao término do procedimento extrajudicial caberá ao Oficial avaliar as provas produzidas e decidir sobre a viabilidade ou inviabilidade do pedido.

À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida, com determinação para prosseguimento do procedimento extrajudicial de usucapião pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis de São Caetano do Sul /SP.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

(DJe de 24.06.2025 – SP)