CSM|SP: Direito registral – Direito ambiental – Registro de imóveis – Procedimento de dúvida – Venda e compra de bem imóvel rural por meio de Escritura Pública – Juízo negativo de qualificação registral fundamentado na inobservância dos princípios da especialidade objetiva e da legalidade – Irresignação parcial configurada – Dúvida prejudicada – Exigências apreciadas a título de orientação, para o caso de reapresentação do título – Descrição do bem imóvel alienado – Bem imóvel rural georreferenciado – Complementação descritiva prescindível – Suficientes, in casu, as referências à matrícula, à localização, à denominação e à área total do imóvel, ao número do cadastro no INCRA constante do CCIR e ao NIRF (item 60, a.1, do Capítulo XVI do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo) – Reserva legal florestal – Obrigação propter rem – Instituição em regime de condomínio – Imóvel rural adquirido vinculado a participações ideais em reservas legais localizadas em outros bens imóveis – Aquisição das frações ideais correspondentes – Exigência pertinente à luz da acessoriedade e ambulatoriedade características das reservas legais, da função socioambiental da propriedade imobiliária rural e da atual compreensão da propriedade como relação jurídica complexa e do Registro de Imóveis como instrumento de controle da função social em razão da preservação ecológica da propriedade – Recurso não conhecido, com orientação.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001263-28.2024.8.26.0481, da Comarca de Presidente Epitácio, em que é apelante MARCOS MOURA NEVES, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PRESIDENTE EPITÁCIO.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram por prejudicada a dúvida e não conheceram da apelação, com observação, v. u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 17 de outubro de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1001263-28.2024.8.26.0481
Apelante: Marcos Moura Neves
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Presidente Epitácio
VOTO Nº 43.600
Direito registral – Direito ambiental – Registro de imóveis – Procedimento de dúvida – Venda e compra de bem imóvel rural por meio de Escritura Pública – Juízo negativo de qualificação registral fundamentado na inobservância dos princípios da especialidade objetiva e da legalidade – Irresignação parcial configurada – Dúvida prejudicada – Exigências apreciadas a título de orientação, para o caso de reapresentação do título – Descrição do bem imóvel alienado – Bem imóvel rural georreferenciado – Complementação descritiva prescindível – Suficientes, in casu, as referências à matrícula, à localização, à denominação e à área total do imóvel, ao número do cadastro no INCRA constante do CCIR e ao NIRF (item 60, a.1, do Capítulo XVI do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo) – Reserva legal florestal – Obrigação propter rem – Instituição em regime de condomínio – Imóvel rural adquirido vinculado a participações ideais em reservas legais localizadas em outros bens imóveis – Aquisição das frações ideais correspondentes – Exigência pertinente à luz da acessoriedade e ambulatoriedade características das reservas legais, da função socioambiental da propriedade imobiliária rural e da atual compreensão da propriedade como relação jurídica complexa e do Registro de Imóveis como instrumento de controle da função social em razão da preservação ecológica da propriedade – Recurso não conhecido, com orientação.
A r. sentença de fls. 58-60 deu por prejudicada a dúvida, porque uma das exigências, a relacionada à incompletude da descrição do bem imóvel rural objeto da compra e venda formalizada por meio da escritura pública de fls. 12-17, não foi impugnada pelo suscitado, que, inconformado, interpôs a apelação de fls. 68-75.
Em suas razões recursais, questionou a resignação parcial, realçando o descabimento da exigência de aprimoramento da descrição do bem imóvel rural, porque suficiente a constante do título, com alusão à matrícula, ao CCIR e ao NIRF. Por outro lado, tornou a insurgir-se contra a exigência de aquisição de frações ideais dos bens imóveis descritos nas matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio, nos quais localizadas as reservas legais vinculadas ao adquirido.
A D. Procuradoria Geral da Justiça opinou, em seu parecer, pelo desprovimento do recurso.
Determinou-se a juntada aos autos de certidões das matrículas n.ºs 27.782, 26.144, 26.145, 26.146, 26.147, 26.148, 15.139, 15.566, 26.132 e 27.783 do RI de Presidente Epitácio, relativas aos bens imóveis relacionados à dúvida suscitada, prontamente providenciada.
É o relatório.
Ao recusar o registro da escritura de venda e compra do bem imóvel rural descrito na matrícula n.º 27.782 do RI de Presidente Epitácio, título prenotado sob o n.º 70849, o Oficial, na nota devolutiva n.º 3401, formulou duas exigências, condicionando a inscrição ao aperfeiçoamento da descrição do bem adquirido e à aquisição de frações ideais dos imóveis identificados nas matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio, onde localizadas as reservas legais atreladas ao adquirido (fls. 10-11).
Por ocasião da suscitação da dúvida, em sua petição de fls. 25-31, de 12 de março de 2024, o interessado/suscitado, apesar do articulado na apelação, não se insurgiu contra a exigência referente ao princípio da especialidade objetiva. Nessa linha, a resignação parcial está configurada e, logo, prejudicadas a dúvida e o conhecimento da apelação. De qualquer maneira, convém, a título de orientação, caso reapresentado o título, analisar as exigências formuladas, afastando a primeira delas, justamente a que não foi especificamente questionada.
In casu, o bem imóvel rural objeto da compra e venda foi adequadamente descrito, não se justificando a complementação exigida, a alusão às suas características e confrontações. Suficiente, à luz da primeira parte da alínea a.1 do item 60 do Capítulo XVI do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo[1], a referência, feita no título, ao número da matrícula, à localização, à denominação, à área total do imóvel, ao número de seu cadastro no INCRA constante do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e ao seu Número de Imóvel Rural na Receita Federal (NIRF).
Trata-se de bem imóvel rural georreferenciado (fls. 99-102), consequentemente, a descrição integral e pormenorizada demandada, com menção, em especial, às suas características e confrontações, é, à vista da parte final da alínea a.1 do item 60 do Capítulo XVI do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, prescindível. Agora, a outra exigência, a relativa à reserva legal, é pertinente, assim, compromete a aptidão registral da escritura de venda e compra.
A reserva legal relacionada ao bem imóvel rural comprado pelos suscitados está localizada em outros bens imóveis, nos descritos nas matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio, correspondendo, respectivamente (em regime de condomínio com o matriculado sob o n.º 27.783), às partes ideais de 0,0093%, 0,044662%, 0,1146%, 0,0940% e 0,0113% (cf. fls. 99-102 e 271-274, av. 1 e av. 4 das matrículas n.ºs 27.782 e 27.783 do RI de Presidente Epitácio), frações ideais sob titularidade da vendedora Maria das Dôres da Silva e do proprietário do imóvel rural objeto da matrícula n.º 27.783, Luiz Marcelino da Silva (cf. fls. 103-126, r. 27, fls. 127-160, r. 27 e av. 71, fls. 161-185, r. 27, fls. 186-213, r. 27, e 214-238, r. 27).
Os imóveis rurais indicados nas matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio, designados por RL-1, RL-2, RL-3, RL-4 e RL-5, constituem as reservas legais dos lotes matriculados sob os n.ºs 26.092 a 26.143 do RI de Presidente Epitácio, integrantes do loteamento rural Reassentamento Populacional Rural Santo Antonio. In casu, quando do loteamento dos imóveis rurais identificados nas matrículas n.ºs 15.139 e 15.566 do RI de Presidente Epitácio, a área de reserva legal florestal, por iniciativa da loteadora, foi agrupada em regime de condomínio (fls. 247-260 e 261-269), em conformidade com o art. 16, par. único, da Lei n.º 12.651/2012. [2]
Cada um dos lotes, assim, tem uma participação nas reservas legais. Um desses, o C1 (parcela 41), matrícula n.º 26.132, inscrito no CAR sob o n.º 35091060358089, em nome do (à época) casal Maria das Dôres da Silva (a vendedora) e Luiz Marcelino da Silva, foi desmembrado em dois, dando origem, um deles, ao Sítio Nossa Senhora Aparecida, matrícula n.º 27.782, o adquirido pelo suscitado, e, o outro, ao Sítio São Luiz, matrícula n.º 27.783 (fls. 240-246), preservando-se a participação (doravante, de ambos, em regime de condomínio) nas reservas legais localizadas nos outros bens imóveis (fls. 99-102 e 271-274).
O desmembramento, a propósito, não poderia modificar a destinação da área de reserva legal (art. 18, caput, da Lei n.º 12.651/2012[3]). Por isso, com o desdobro, a um e a outro bem imóvel passaram a corresponder, em regime de condomínio, as participações, então acima detalhadas (0,0093%, 0,044662%, 0,1146%, 0,0940% e 0,0113%), nos bens imóveis onde situadas as reservas legais. Trata-se de situação que persistiu depois do divórcio e da divisão dos bens comuns descritos nas matrículas n.ºs 27.782 e 27.783 do RI de Presidente Epitácio: o primeiro, vendido posteriormente ao suscitado, coube à Maria das Dôres da Silva, o outro, a Luiz Marcelino da Silva (cf. fls. 99-102 e 271-274).
As frações ideais sob titularidade de Maria das Dôres da Silva e de Luiz Marcelino da Silva, relativas aos bens imóveis rurais que servem de reservas legais, seguiram em regime de condomínio. Nos termos do art. 16, caput, da Lei n.º 12.651/2012[4], admite-se a instituição de reserva legal em regime de condomínio entre propriedades rurais. O desmembramento e as divisões ocorridas não exigiram ajustes, porque os proprietários dos imóveis surgidos do desdobro retiveram a posição de condôminos, no tocante às participações ideais nas reservas legais atreladas a um e a outro bem.
Agora, todavia, a situação é outra, uma vez que a venda e compra do bem imóvel rural identificado na matrícula n.º 27.782 do RI de Presidente Epitácio, pactuada entre a proprietária tabular, Maria das Dôres da Silva, e o suscitado, veio solta, desacompanhada das frações ideais às quais vinculado, em particular, das pertencentes à vendedora, relativas aos imóveis onde situadas as reservas legais, objeto das matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio.
Ocorre que a propriedade de tal bem imóvel rural não pode ser transmitida apartadamente das partes ideais que lhe correspondem nas reservas legais às quais atrelado. A inerência dessas reservas legais, obrigações reais, ao imóvel alienado (sua intrínseca ambulatoriedade) impede a transferência imobiliária pretendida.
O art. 12, caput, da Lei nº 12.651/2012, dando concreção ao inc. III do § 1º do art. 225 da CF/1988[5], dispõe, prevendo uma obrigação real de facere, transmissível aos sucessores, que “todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal”, ou seja, estabeleceu uma obrigação propter rem (por causa da coisa), oponível, por conseguinte, aos sucessores dos primitivos devedores.
Essa, aliás, a intelecção do C. STJ, expressa na Súmula 623 (“as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou do possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”) e no REsp n.º 1.953.359/SP, rel. Min. Assusete Magalhães, j. 13.9.2023 (Tema Repetitivo 1204).
As obrigações reais, discorre, em sua afamada obra, Manuel Henrique Mesquita, têm origem no estatuto de um direito real, ao qual subordinada a relação jurídica de soberania estabelecida entre o titular e a coisa e que “compreende ou engloba não só os poderes que são conferidos ao sujeito de um ius in re e as restrições ou limites a que a sua actuação deve obedecer, mas também as vinculações de conteúdo positivo a que se encontre adstrito e que tanto podem consistir em deveres decorrentes de normas de direito público, como em obrigações stricto sensu,” associadas a normas de direito privado que impõem uma prestação de dare ou de facere. [6]
Nessa trilha, e de acordo com o § 2.º do art. 2.º da Lei n.º 12.651/2012, as obrigações lá positivadas, então no Código Florestal, “têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.” Conforme assentado por Manuel Henrique Mesquita, “devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de ‘facere’ que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui o objecto do direito real”; sob essa lógica, devem necessariamente ser transmitidas aos adquirentes, pois decorrem da aplicação do estatuto do direito real, seu cumprimento representa interferência direta na coisa subordinada a tal estatuto e, cessada a soberania do alienante sobre a coisa, a realização da prestação por ele fica impossibilitada. [7]
É ínsito à reserva legal florestal o traço da acessoriedade. Não existe per se; supõe sempre um bem imóvel rural ao qual vinculado; aliás, existe em função dele. As obrigações propter rem são caracterizadas pela acessoriedade aos direitos reais aos quais associados; seu devedor é definido à vista de sua relação com a coisa. A ambulatoriedade decorre diretamente da aderência do vínculo obrigacional ao imóvel.
Sob essa perspectiva, não se admite, na hipótese vertente, a transmissão apartada do bem imóvel rural, desacompanhada de suas participações nas reservas legais florestais localizadas em outros imóveis, nele aderidas, em ofensa à ambulatoriedade dessas obrigações, ambulant cum domínio.
A reforçar a inaptidão registral da escritura de venda e compra, a transmissão pactuada, desatrelada das reservas legais florestais, está a privar a propriedade de sua função social, poder-dever do proprietário, elemento integrante de sua própria estrutura, razão pela qual, pontua Pietro Perlingieri, o direito de propriedade é atribuído a um certo sujeito. [8]
A propriedade, em sua conformação contemporânea, então redimensionada, funcionalizada, é compreendida como uma relação jurídica complexa, carregada de direitos e de deveres e voltada à vocação primordial de atender à função social. Vale, aqui, transcrever passagem de artigo da lavra de Gustavo Tepedino:
O Constituinte …, ao inserir a propriedade privada no rol das garantias fundamentais, ao lado do atendimento de sua função social (art. 5.º, XXII e XXIII), condicionou a legitimidade da atuação do proprietário, como expressão de direito fundamental, ao atendimento, no caso concreto, dos interesses sociais e existenciais alcançados pelo exercício dominical. Trata-se, de fato, de técnica eficiente para conferir eficácia à função social da propriedade privada, pois impõe ao proprietário, ao lado dos poderes que lhe são conferidos, cuja estrutura está garantida no caput do art. 1.228 do Código Civil, o dever de promover interesses socialmente relevantes, dentre os quais se afigura prioritária, na ordem constitucional, a proteção ambiental. [9]
Em especial, a transferência em apreço desconsidera a função socioambiental da propriedade rural. Sobre o tema, Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer frisam: “assim como outrora a função social foi consagrada para limitar e redefinir o conteúdo do direito de propriedade, hoje também os valores e direitos ecológicos passam a conformar o seu conteúdo, com uma nova carga de deveres e obrigações correlatas ao seu exercício …” [10]
A reserva legal florestal é condição para a propriedade rural cumprir sua função ecológica, sua função socioambiental, fator de legitimidade, que, desenvolve Álvaro Luiz Valery Mirra, impõe ao proprietário comportamentos positivos no exercício de seu direito, sintônicos com a preservação e a recuperação do meio ambiente, a conservação da qualidade ambiental. [11]
A esse respeito, o art. 3.º, III, da Lei n.º 12.651/2012, ressalta: a reserva legal florestal tem “a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”. (grifei)
A defesa do meio ambiente é um dos princípios da ordem econômica constitucional (art. 170, VI, da CF). O aproveitamento racional e adequado do bem imóvel rural, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente são requisitos indispensáveis ao pleno cumprimento da função social da propriedade rural (art. 186, I e II, da CF).
Por sua vez, o art. 1.228 do CC, em seu § 1.º, dando operatividade ao art. 5.º, XXIII, da CF, prevê: “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico …, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
Em síntese, a reserva legal florestal é pressuposto da legitimidade do direito de propriedade rural: representa um limite interno, permanente e positivo ao direito de propriedade sobre o bem imóvel rural.[12]
Consoante José Renato Nalini, “a função social da propriedade está imbricada com a sua destinação ecológica. A propriedade rural só cumpre com sua função social se atender à proteção do meio ambiente.” [13] (grifei)
A respaldar a intelecção aqui exposta, o C. Superior Tribunal de Justiça, ao examinar o REsp n.º 948.921/SP, rel. Min. Herman Benjamin, j. 23.10.2007, assinalou: “as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a Reserva Legal densificam e concretizam a função ecológica da propriedade (arts. 170, VI, 186, II, e 225, da Constituição Federal)”, “representam os pilares dorsais da conservação in situ da flora no Brasil”, “apresentam-se como imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei. São, por esse enfoque, pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse.
A reserva legal é condição da legítima exploração do bem imóvel rural, da área estranha à (não atingida pela) limitação administrativa e da área de reserva legal[14]; justifica e qualifica o exercício do direito de propriedade, a atuação do proprietário, conclusão, assim, a desautorizar o registro perseguido pelo suscitado, compreendido o Registro de Imóveis (a serventia predial) como instrumento de controle ambiental, da função ecológica da propriedade.
Com efeito, “trata-se de obrigação derivada da lei de que não se pode furtar nem o proprietário, nem o Poder Público, seja a administração direta, seja a indireta, sejam os serviços delegados … Não se pode esperar do delegatário-registrador postura passiva que o separe dos outros sujeitos estatais e o imunize contra a força vinculante dos mandamentos constitucionais e legais.” (REsp n.º 1.221.867/MG, rel. Herman Benjamin, j. 15.5.2012).
Cabe ainda reafirmar, agora com amparo em Paulo Affons Leme Machado, que uma das características da reserva legal é a inalterabilidade relativa de sua destinação, dando, assim, “caráter de relativa permanência à área florestal do País”; veda-se, com isso, sua alteração, mormente nos casos de transmissão e de desmembramento; conforme por ele realçado, “o proprietário pode mudar, mas não muda a destinação da área da Reserva Legal Florestal“, que persiste com novos proprietários[15]; “se a coisa muda de dono, muda, por igual e automaticamente, a obrigação do devedor …, cuide-se de sucessão a título singular ou universal.” (REsp n.º 948.921/SP, rel. Min. Herman Benjamin, j. 23.10.2007)
No justo apontamento de Antonio Herman Benjamin, lançado em parecer apresentado nos autos Apelação Cível com Revisão n.º 402.646-5/7-00, reproduzido no v. acórdão lá proferido, rel. Renato Nalini, j. 29.6.2006, a tutela ambiental (e, consequentemente, a função socioambiental da propriedade) é inconciliável com a reserva legal florestal migratória, que “hoje está aqui, amanhã … acolá, ao sabor das conveniências do proprietário e da necessidade de burlar eventual controle fiscalizatório.” (grifei)
Dentro desse contexto, o Oficial, ao exigir, para fins de registro da escritura de venda e compra, a aquisição das frações ideais correspondentes às reservas legais situadas em outros bens imóveis, a aquisição das participações do imóvel adquirido nas reservas legais florestais localizadas nos bens imóveis identificados nas matrículas n.ºs 26.144, 26.145, 26.146, 26.147 e 26.148 do RI de Presidente Epitácio, procedeu corretamente, em conformidade com missão institucional dos serviços de registro de imóveis (apreendida em harmonia com a tessitura contemporânea do direito de propriedade), então na posição de legítimo guardião da função socioambiental da propriedade imobiliária rural.
Isto posto, pelo meu voto, dando por prejudicada a dúvida, não conheço da apelação, apreciando, a título de orientação, nos termos acima expostos, as exigências formuladas pelo Oficial de Registro, referentes à prenotação n.º 70849 e à nota devolutiva n.º 3401.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] Item 60. As escrituras relativas a bens imóveis e direitos reais a eles relativos devem conter, ainda:
a.1) para imóveis rurais georreferenciados, o número do registro ou matrícula no Registro de Imóveis, sua localização, denominação, área total, o número do cadastro no INCRA constante do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e o Número de Imóvel Rural na Receita Federal (NIRF), enquanto para os demais imóveis rurais, particularmente os não georreferenciados e os objeto de transcrição, a descrição deve ser integral e pormenorizada, com referência precisa, inclusive, aos seus característicos e confrontações; …
[2] Art. 16. (…)
Parágrafo único. No parcelamento de imóveis rurais, a área de Reserva Legal poderá ser agrupada em regime de condomínio entre os adquirentes.
[3] Art. 18. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.
[4] Art. 16. Poderá ser instituído Reserva Legal em regime de condomínio ou coletiva entre propriedades rurais, respeitado o percentual previsto no art. 12 em relação a cada imóvel.
[5] Art. 225. (…)
§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…);
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (…).
[6] Obrigações reais e ónus reais. Coimbra: Almedina, 2003, p. 99-104.
[7] Op. cit., p. 330-336.
[8] Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 226.
[9] A função social da propriedade e o meio ambiente. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 187. t. III.
[10] Curso de Direito Ambiental. 2.ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 2021, p. 235.
[11] Princípios fundamentais do direito ambiental, in: Revista de Direito Ambiental, v.2, p. 50-66, abr – jun/1996.
[12] De acordo com o art. 2.º, caput, da Lei n.º 12.651/2012, “as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.” (grifei)
[13] O ambiente e o registro de imóveis. In: Registro de imóveis e meio ambiente. Francisco de Asís Palacios Criado; Marcelo Augusto Santana de Melo; Sérgio Jacomino (coord.). São Paulo: Saraiva, 2010. p. 91-112. p. 92.
[14] A respeito da área de reserva legal florestal, admite-se sua exploração econômica apenas mediante manejo sustentável, previamente aprovado pelo órgão competente do Sisnama, de acordo com as modalidades previstas no art. 20 da Lei n.º 12.651/2012 (cf. § 1.º do art. 17 da Lei n.º 12.651/2012).
[15] Direito ambiental brasileiro. 20.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 888. Cf., ainda, o art. 18, caput, da Lei n.º 12.651/2012, in verbis: “a área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei”
(DJe de 24.10.2024 – SP)