CSM|SP: Registro de Imóveis – Desapropriação de imóvel rural – Carta de adjudicação qualificada negativamente – Dúvida procedente – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado, com certificação pelo INCRA, e na comprovação de que esse imóvel foi inscrito no SICAR/CAR – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado à instalação de praça de pedágio, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000055-30.2023.8.26.0453, da Comarca de Pirajuí, em que é apelante ENTREVIAS CONCESSIONARIA DE RODOVIA S/A, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PIRAJUÍ.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação e afastaram a recusa do registro do título, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 12 de setembro de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça
Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1000055-30.2023.8.26.0453
Apelante: Entrevias Concessionaria de Rodovia S/A
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Pirajuí
VOTO Nº 43.547
Registro de Imóveis – Desapropriação de imóvel rural – Carta de adjudicação qualificada negativamente – Dúvida procedente – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado, com certificação pelo INCRA, e na comprovação de que esse imóvel foi inscrito no SICAR/CAR – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado à instalação de praça de pedágio, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.
Trata-se de apelação interposta por Entrevias Concessionária de Rodovia S.A., contra a r. sentença de fls. 227/231, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis e Anexos de Pirajuí, que manteve a negativa de registro da carta de adjudicação extraída dos autos nº 1000491-57.2021.8.26.0453, da 2ª Vara de Pirajuí, cujo objeto é a área destacada do imóvel rural matriculado sob o nº 22.834 daquela serventia.
Em preliminar, alega a apelante que o juízo não atendeu seu pedido de expedição de ofício ao INCRA para esclarecimentos dos procedimentos a serem adotados para a regularização da área declarada de utilidade pública e atualização cadastral da área remanescente junto ao Sistema Nacional de Cadastro Rural, o que configuraria cerceamento de defesa. No mérito, afirma que a destinação da área desapropriada tem por finalidade “obra de extensão de via pública”, de modo que a faixa destacada do imóvel não é mais rural, não sendo possível a apresentação do georreferenciamento certificado pelo INCRA; que a desapropriação é forma originária de aquisição, não se submetendo às exigências feitas ao registro do desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóvel rural; que a exigência de apresentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) já foi cumprida, conforme cópia do demonstrativo juntado a fls. 52 e da matrícula nº 22.834 (fls. 154). Ao final, requer, em preliminar, seja declarada a nulidade da sentença. Subsidiariamente, pede a reforma do julgado para determinar o registro do título (fls. 239/251).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 363/365).
É o relatório.
De início, afasto a preliminar de cerceamento de defesa.
Embora o art. 201 da Lei nº 6.015/73 prescreva que a dúvida será julgada apenas se não forem requeridas diligências, é inegável que o Juiz Corregedor Permanente pode indeferir esse tipo de pleito se considerá-lo desnecessário para o deslinde da causa. E foi exatamente o que fez o MM. Juiz Corregedor Permanente: por meio de decisão devidamente fundamentada, ressaltou que o ofício solicitado já havia sido expedido anteriormente e que o procedimento de dúvida não é o meio adequado para obtenção de informação junto ao INCRA (fls. 229).
No mérito, cuida-se de registro de carta de adjudicação extraída do processo nº 1000491-57.2021.8.26.0453, em que homologada transação extrajudicial envolvendo a ora apelante e Jib Agropecuária Ltda.
Consoante a suscitação da dúvida (fls. 1/5), o registro da carta de adjudicação relativa a uma área de 8.324,57m² foi obstado por dois motivos distintos.
O primeiro diz respeito aos trabalhos técnicos de engenharia (planta e memorial descritivo) que acompanharam a carta.
Sustenta o Oficial que esses documentos não foram desenvolvidos pelo sistema de georreferenciamento com situação posicional certificada pelo INCRA (SIGEF).
O segundo se refere à ausência de inscrição da área destacada junto ao Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR/CAR).
As exigências devem ser afastadas, conforme entendimento adotado por este Conselho no julgamento das apelações nº 1020918-18.2020.8.26.0451 (j. em 7/5/2024) e 1000700-71.2023.8.26.0189 (j. em 29/5/2024).
A desapropriação de parcela do imóvel para destinação como rodovia comporta a análise sob enfoque específico, por se tratar de via de circulação destinada ao uso comum do povo (art. 99, I, do Código Civil).
No caso concreto, a desapropriação recaiu sobre área de 8.324,57m², a ser desfalcada do imóvel objeto da matrícula nº 22.834 do Registro de Imóveis e Anexos de Pirajuí, destinada à implantação de praça de pedágio (fls. 28).
Nas hipóteses de desapropriação para implantação de rodovia ou instituição de servidão pública, a destinação para atividade distinta da rural afasta a exigência de observação dos requisitos que incidiriam se a área desapropriada continuasse sendo utilizada, pela expropriante, para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial.
Isso porque a destinação do imóvel não se confunde com a espécie de zona em que situado (rural, urbana, urbanizável, de urbanização específica e de interesse urbanístico especial), podendo existir imóvel com destinação rural em área urbana, ou situação contrária.
Por sua vez, não se ignora a existência de diferentes critérios para a qualificação de imóvel como urbano ou rural, prevendo o Código Tributário Nacional, em seus arts. 29 e 32, que o imóvel é urbano quando situado em zona urbana e rural quando situado em zona rural.
Porém, outras normas, como os arts. 8º e 9º do Decretolei nº 57/1966, que dispõe sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), e o art. 2º da Lei nº 5.868/1972, que criou o Sistema Nacional de Cadastro Rural, adotam o critério da destinação para a identificação do imóvel como sendo rural.
O critério da destinação também foi previsto na Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra) que, em seu art. 4º, I, define como imóvel rural “o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”.
Ainda, o art. 64, II, da Lei nº 4.504/1964 dispõe que são urbanos os lotes que forem implantados em razão de colonização “quando se destinem a constituir o centro da comunidade, incluindo as residências dos trabalhadores dos vários serviços implantados no núcleo ou distritos, eventualmente às dos próprios parceleiros, e as instalações necessárias à localização dos serviços administrativos assistenciais, bem como das atividades cooperativas, comerciais, artesanais e industriais”.
O critério da destinação, ademais, é previsto no art. 6º da Instrução Normativa Incra nº 82/2015, que se encontra vigente:
“Imóvel rural é a extensão contínua de terras com destinação (efetiva ou potencial) agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, localizada em zona rural ou perímetro urbano”[1].
A adoção desse critério consta no sítio de internet mantido pelo Incra, em página destinada ao esclarecimento de dúvidas:
“O que é imóvel rural? Imóvel rural, segundo a legislação agrária, é a área formada por uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo titular (proprietário ou posseiro), localizada tanto na zona rural quanto urbana do município. O que caracteriza é a sua destinação agrícola, pecuária, extrativista vegetal, florestal ou agroindustrial [2]“. José Afonso da Silva, sobre a definição do imóvel como urbano ou rural, considera que deve prevalecer o critério da destinação, como a seguir se verifica:
“A teoria da vocação urbanística ou da destinação do solo, e não sua localização ou situação, é que orienta a definição da sua qualificação. É que a localização dos terrenos consiste numa delimitação da área à vista, precisamente, da sua vocação ou destinação urbanística; ao contrário, portanto, da qualificação da propriedade urbana, já que será tal justamente porque situada, localizada, em solo qualificado como urbano.
Com base no critério da vocação, a primeira qualificação do solo permite a distinção do território municipal em zona rural e zona urbana. Além disso, o Código Tributário Nacional admite considerar como urbanas áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana” (Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 172).
A destinação dada ao imóvel é, com efeito, a adequada para a sua qualificação como urbano ou rural, sendo esse o critério utilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA.
Adotado o critério da destinação, a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia não pode ser caracterizada como rural e, em razão disso e da natureza originária da desapropriação, não se submete às exigências para o registro de imóvel rural, no Registro de Imóveis, ainda que a área da rodovia tenha origem em desmembramento de imóvel que tinha essa finalidade de uso.
Cabe anotar, nesse ponto, que o art. 9º do Decreto nº 4.449/2002 prevê a necessidade de certificação pelo Incra para a identificação do imóvel rural, sendo, em consequência, dispensada para a área da rodovia que foi desapropriada e passou a ter finalidade de uso não rural:
Art. 9º – A identificação do imóvel rural, na forma do §3º do art. 176 e do §3º do art. 225 da Lei nº 6015, de 1973, será obtida a partir de memorial descritivo elaborado, executado e assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, e com precisão posicional a ser estabelecida em ato normativo, inclusive em manual técnico, expedido pelo INCRA.
§ 1º – Caberá ao INCRA certificar que a poligonal objeto do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhuma outra constante de seu cadastro georreferenciado e que o memorial atende às exigências técnicas, conforme ato normativo próprio.
Afastada a submissão do registro da aquisição da área da rodovia aos requisitos para o desmembramento de imóvel rural, não prevalece a exigência de apresentação da descrição georreferenciada com certificação pelo Incra.
A dispensa da certificação, ademais, não causará prejuízo para a identificação do imóvel rural porque o proprietário, ao solicitar nova certificação para a área remanescente, deverá especificar a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia.
Afastada a destinação rural a ser dada para o imóvel desapropriado, porque será utilizado para instalação de praça de pedágio de rodovia, não prevalecem as exigências de comprovação da sua inscrição no Cadastro Ambiental Rural SICAR/CAR.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e afasto a recusa do registro do título.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça
Relator
Notas:
[1] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/instrucao-normativa, consulta em
22/03/2024.
[2] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes, consulta em 21.03.2024.
(DJe de 18.09.2024 – SP)