CGJ|SP: Recurso administrativo – Registro de imóveis – Averbação de escritura pública de união estável – Alegada dubiedade do texto que sugere estipulação retroativa do regime da comunhão universal de bens – Rigor interpretativo que deve ser afastado no caso concreto –  Elementos objetivos do título que não preveem aplicação retroativa do novo regime – Comunicação dos bens anteriores ao contrato e ao início da união estável decorre da própria essência do regime da comunhão universal adotado – Eficácia ex nunc que decorre do próprio sistema – Observância do artigo 547, §4º, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ – Parecer pelo provimento do recurso, com reforma da r. sentença recorrida.

PROCESSO Nº 1008238-43.2023.8.26.0597

RECURSO ADMINISTRATIVO – REGISTRO DE IMÓVEIS – AVERBAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE UNIÃO ESTÁVEL – ALEGADA DUBIEDADE DO TEXTO QUE SUGERE ESTIPULAÇÃO RETROATIVA DO REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS – RIGOR INTERPRETATIVO QUE DEVE SER AFASTADO NO CASO CONCRETO –  ELEMENTOS OBJETIVOS DO TÍTULO QUE NÃO PREVEEM APLICAÇÃO RETROATIVA DO NOVO REGIME – COMUNICAÇÃO DOS BENS ANTERIORES AO CONTRATO E AO INICIO DA UNIÃO ESTÁVEL DECORRE DA PRÓPRIA ESSÊNCIA DO REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL ADOTADO – EFICÁCIA EX NUNC QUE DECORRE DO PRÓPRIO SISTEMA – OBSERVÂNCIA DO ARTIGO 547, §4º, DO CÓDIGO NACIONAL DE NORMAS DA CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA DO CNJ – PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO, COM REFORMA DA R. SENTENÇA RECORRIDA.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de apelação interposta por M. F. S. contra a r. sentença da MM. Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Sertãozinho, que acolheu a dúvida suscitada, mantendo recusa ao registro de escritura pública de união estável nos termos da nota devolutiva (prenotação n. 214.263).

O título obstado consiste em escritura lavrada em 24 de março de 2022, na qual J. da S. S. e M. F. S. declararam conviver em união estável desde 10 de julho de 2006, estabelecendo o regime da comunhão universal de bens (fls. 55/56).

Ao apresentar o título, a parte requereu sua averbação, ao lado de registro de inventário e partilha, na transcrição n. 24.282 e na matrícula n. 89.712 daquela serventia. Também comentou, em seu requerimento, sobre a propositura de ação declaratória pelas irmãs de seu falecido companheiro para anular referida escritura, a qual foi julgada improcedente (fls. 61/65).

Por vislumbrar dubiedade no título, com o estabelecimento retroativo do regime de bens da comunhão universal entre os conviventes declarantes, o Registrador adiou o ato, exigindo a retificação da escritura para fazer constar expressamente que, no período anterior à pactuação do novo regime, vigorou o regime legal da comunhão parcial de bens, nos termos do artigo 1.725 do Novo Código Civil. Alternativamente, exigiu a comprovação do trânsito em julgado da sentença proferida no processo de autos n. 1006604-46.2022.8.26.0597 (fls. 59/60).

Considerando a irretroatividade do regime de bens estabelecida pelos artigos 1640 do Código Civil e 9-A, §4º, do Provimento CNJ n. 141/2023, a Corregedora Permanente manteve o óbice apontado pelo Oficial (fls. 115/116).

A parte recorrente reconhece que a formalização da escolha do regime de bens na união estável possui efeitos ex nunc. Contudo, sustenta que, no caso em tela, a retroatividade é uma consequência natural da escolha feita pelo casal, pois o regime da comunhão universal engloba todos os bens, presentes e futuros, independentemente de qual fosse o regime anterior, não havendo motivo para o Estado criar embaraços à livre decisão do casal; que a mudança de regime mais restritivo para um mais amplo favorece terceiros, trazendo maiores possibilidades de recuperação de crédito (fls. 123/131).

Nova manifestação do Oficial veio às fls. 136/144.

O feito foi originariamente distribuído ao C. Conselho Superior da Magistratura, com posterior redistribuição a esta Corregedoria Geral da Justiça (fls. 150/151).

A parte recorrente regularizou sua representação processual (fls. 153/154) e a Procuradoria de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 163/165).

É o relatório.

De início, vale confirmar que, como o ato registral buscado é o de averbação, a apelação interposta deve ser recebida como recurso administrativo.

Há que se ressaltar, ainda, que o Oficial dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

Esta conclusão se reforça pelo disposto no item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, porém, o recurso comporta provimento. Vejamos os motivos.

No caso concreto, o Oficial recusou o ingresso, no fólio real, de escritura pública declaratória de reconhecimento de união estável por entender que os declarantes estabeleceram o regime da comunhão universal de bens de forma retroativa.

Considerando “a dubiedade do título, que deixa margem para questões quanto a vontade dos conviventes”, exigiu aditamento para expresso “aclaramento do marco temporal para aplicação do regime de bens, entre o da universal para momento posterior a data da prática do ato notarial, conquanto o parcial para o período retroativo” (fls. 04/05).

A interpretação rigorosa do Registrador deve ser abrandada.

Conforme se verifica na escritura copiada às fls.  55/56, lavrada em 24 de março de 2022, os conviventes J. e M. e declararam manter convivência duradoura, pública e contínua desde 10/07/2006 e estabeleceram o regime de bens nos seguintes termos:

“3)- É facultado aos conviventes, pelo artigo 1.639 do Código Civil, escolher o regime de bens e estipular, quanto a estes, o que licitamente aprouver, pelo que ajustam este pacto de convivência, a fim de estabelecer o regime da COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS, nos termos do artigo 1.667 e seguintes do Código Civil Brasileiro, a vigorar durante a união; 4)- na constância da união estável, pelo regime de comunhão universal de bens doravante adotado, importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros inclusive dívidas. Os contratantes têm conhecimento que haverá a comunicação dos bens em razão do regime adotado, mesmo que conste somente em nome de um deles; (…)”.

Como se vê, não há estipulação retroativa e a mera indicação de que o regime adotado deverá “vigorar durante a união” não permite interpretação em sentido contrário à disposição legal, notadamente porque, logo em seguida, foi expressamente destacada a comunicação de todos os bens em virtude do regime “doravante adotado”. Existe, portanto, expressa indicação da incidência do novo regime a partir da lavratura do título, devendo vigorar enquanto as partes se mantiverem unidas, como não poderia deixar de ser.

Em outros termos, o título não menciona a aplicação do novo regime desde o início da união e não há imposição legal por determinado texto expresso em sentido contrário, como se está exigindo.

Tem integral razão a recorrente, ao argumentar que os efeitos práticos retroativos, no caso concreto, não decorrem propriamente da eficácia ex tunc atribuída ao negócio jurídico, mas sim ao próprio regime de bens.

Explico.

O regime de bens adotado pelos coniventes – comunhão universal – importa a comunicação de todos os bens adquiridos antes ou na constância da união estável, a título oneroso ou gratuito. Isso significa que os bens que os conviventes já tinham antes do termo inicial da convivência também compõem a comunhão.

Dizendo de outro modo, a comunicação dos bens anteriores ao contrato de convivência decorre da própria essência do regime da comunhão universal.

Ademais, a rerratificação da escritura já não é mais possível diante do falecimento de J., sendo que, ainda que a opção dos conviventes tenha eficácia ex nunc, seus amplos efeitos, atingindo todos os bens então existentes, decorrem naturalmente do próprio regime escolhido, tal como dispõe o atual artigo 547, §4º, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ:

“§ 4.º O novo regime de bens produzirá efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese, em virtude dessa alteração, observado que, se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros”.

Também não há necessidade de se comprovar o trânsito em julgado da ação anulatória proposta para questionar a validade da escritura, pois, embora a parte interessada tenha exercido seu direito de ação, a tutela de urgência foi indeferida e o julgamento final foi pela improcedência do pedido, sem que haja notícia sobre a existência de provimento jurisdicional que afete o título, que continua, em consequência, produzindo todos os seus efeitos legais.

Nota-se, outrossim, que o trânsito em julgado da sentença de improcedência não importaria alteração do título, que permaneceria com seu texto original, de modo que não se justifica a alternativa oferecida para viabilizar o acesso do título ao fólio real.

Diante do exposto, o parecer que respeitosamente apresento ao elevado critério de Vossa Excelência é pelo recebimento da apelação como recurso administrativo e por seu provimento, para autorização do ato registral buscado.

Sub censura.

São Paulo, 10 de abril de 2024.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juíza Assessora da Corregedoria

Assinatura Eletrônica

DECISÃO

Vistos.

Aprovo o parecer apresentado pela MMª Juíza Assessora da Corregedoria e por seus fundamentos, ora adotados, recebo a apelação como recurso administrativo e dou provimento a ele para autorizar  a prática do ato registral buscado.

São Paulo, 12 de abril de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça
Assinatura Eletrônica

(DJE SP de 17.4.2024)