CSM|SP: Dúvida – Registro de imóveis – Partilha extrajudicial – Existência de credores do espólio não impede a realização do inventário e partilha por escritura pública, nos termos do item 125, Cap. XVI, das NSCGJ – Impossibilidade de se exigir reserva de bens para registro do título – Partilha já ultimada – herdeiros respondem pelas dívidas da falecida na proporção dos seus quinhões – inteligência do artigo 1.997 do código civil e artigos 642 e 796 do Código de Processo Civil – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002083-97.2022.8.26.0584, da Comarca de São Pedro, em que é apelante SÍLVIA HELENA RIBEIRO FELÍCIO BOIAGO, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO PEDRO.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 26 de fevereiro de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1002083-97.2022.8.26.0584

Apelante: Sílvia Helena Ribeiro Felício Boiago

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Pedro

VOTO Nº 43.095

Dúvida – Registro de imóveis – Partilha extrajudicial – Existência de credores do espólio não impede a realização do inventário e partilha por escritura pública, nos termos do item 125, Cap. XVI, das NSCGJ – Impossibilidade de se exigir reserva de bens para registro do título – Partilha já ultimada – herdeiros respondem pelas dívidas da falecida na proporção dos seus quinhões – inteligência do artigo 1.997 do código civil e artigos 642 e 796 do Código de Processo Civil – Recurso provido.

Trata-se de recurso de apelação interposto por Sílvia Helena Ribeiro Felício Boiago contra a r. sentença de fls. 70/71, que julgou “improcedente” dúvida suscitada em virtude de recusa de registro de escritura de inventário, adjudicação e partilha extrajudicial dos bens deixados por Emirene Felicio (fls. 04/09), a qual envolve o imóvel da matrícula n. 2.694 do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Pedro/SP (fls. 04/09 e 55/58), mantendo a exigência da nota de devolução de fl. 35 (prenotação n. 129.628).

Fê-lo a r. sentença, basicamente, sob o argumento de que deve ser realizada a reserva de bens para pagamento das dívidas da de cujus, cuja exigibilidade restou incontroversa. A exigência estaria expressa no artigo 663 do Código de Processo Civil, com previsão correlata no artigo 1.997 do Código Civil, a fixar a responsabilidade da herança pelo pagamento das dívidas da falecida, sendo que a natureza extrajudicial da partilha não exclui a incidência dos dispositivos legais referidos, de natureza cogente.

A parte apelante sustenta, em síntese, que as dívidas da falecida referem-se a execuções fiscais de tributos municipais (ISS fls. 25/31), o que faz incidir o item 117.1, do Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça; que não se pode exigir a quitação de débitos para com a Fazenda Pública, tampouco a reserva de bens ou a apresentação de certidão negativa para tributos que não guardam relação com o ato registral perseguido, conforme jurisprudência que colaciona.

A parte alega, ainda, que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou pela inconstitucionalidade de atos do Poder Público que se traduzam em exercício abusivo e coercitivo de exigência de obrigações tributárias, conforme as súmulas n. 70, 323 e 547 e jurisprudência; que a exigência representa indevida restrição ao acesso do título à tábua registral, imposta de forma oblíqua e ao arrepio do devido processo legal para forçar o contribuinte ao pagamento indireto de tributos, o que caracteriza limitação a interesses privados em desacordo com orientação do Supremo Tribunal Federal.

Aduz, por fim, que os débitos existentes estão sendo discutidos nas respectivas execuções fiscais, ainda pendentes de julgamento, com garantia de contraditório e ampla defesa, bem como que demais providências devem ser tomadas exclusivamente pelo órgão municipal ou federal que detém o crédito e não pelo notário ou registrador (fls. 76/84).

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 100/102).

É o relatório.

De início, vale observar que, embora a dúvida tenha sido julgada improcedente, o comando judicial foi pela manutenção do óbice.

Há que se observar, ainda, que o Oficial dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional. Esta conclusão se reforça pelo disposto no item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, porém, o recurso comporta provimento. Vejamos os motivos.

No caso concreto, o Oficial entendeu pela manutenção da recusa de registro de escritura de inventário, adjudicação e partilha extrajudicial dos bens deixados por Emirene Felicio tendo em vista a indicação de dívidas, de modo que necessária reserva de bens para pagamento de tais obrigações.

O posicionamento foi respaldado por precedente deste Colendo Conselho Superior da Magistratura, no âmbito da Apelação Cível n. 1005161-58.2016.8.26.0019 (fl. 35).

Tal entendimento, no entanto, deve ser revisto.

Veja-se, por primeiro, que não se trata de exigência formulada por ordem de controle rigoroso do recolhimento dos impostos devidos por ocasião do registro do título, a que estão submetidos os Registradores, sob pena de responsabilidade pessoal (art. 289 da Lei n. 6.015/73; art.134, VI, do CTN e art. 30, XI, da Lei n. 8.935/1994).

In casu, a exigência é formulada pela necessidade da reserva de bens do espólio em razão de débitos da falecida.

O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se manifestar sobre a natureza da habilitação de crédito em ação de arrolamento de bens, bem como sobre a necessidade de reserva de bens do espólio no julgamento do REsp. n. 703.884/SC, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi:

“[…] o juiz pode determinar que sejam reservados bens em poder do inventariante para pagar o credor, desde que a dívida esteja consubstanciada em documento que comprove suficientemente a obrigação e a impugnação não se fundar em quitação.

Há aqui verdadeira natureza cautelar, pois, havendo prova suficiente do crédito, o juiz pode determinar a reserva de bens para garantia do pagamento após a solução do litígio que foi remetida às vias ordinárias. Nessas circunstâncias a habilitação apresenta feição de arresto, que, como é cediço, garante a solvência até que se resolva em penhora (art. 818, CPC). Dessa forma, se ao final da disputa o crédito se revelar inexistente ou extinto, extingue-se a reserva de bens e se realiza a sobrepartilha. Se, por outro lado, o crédito for efetivamente devido, a reserva dos bens persiste até que, nas vias ordinárias, sobrevenha a penhora.

Vê-se, dessa forma, que a habilitação é procedimento incidental de natureza híbrida. Inicialmente, forma-se como procedimento de jurisdição voluntária ou não contenciosa, mas pode assumir feições de verdadeira cautelar incidental.

Porque ressalta essa particularidade da habilitação, deve ser lembrado o escólio de Humberto Theodoro Júnior:

“É indispensável o acordo unânime, por que a habilitação, in casu, é não contenciosa. Por isso, não havendo concordância de todas as partes sobre o pagamento, será o credor remetido para os meios ordinários (art. 1.018), ou seja, terá ele de propor a ação contenciosa contra o espólio, que for compatível ao título de seu crédito (execução ou ordinária de cobrança, conforme o caso).

Há, porém, uma medida cautelar que o juiz toma, ex officio, em defesa do interesse do credor que não obtém sucesso na habilitação: se o crédito estiver suficientemente comprovado por documento e a impugnação não se fundar em quitação, o magistrado mandará reservar, em poder do inventariante, bens suficientes para pagar o credor, enquanto se aguarda a solução da cobrança contenciosa (art. 1.018, parág. único)” (Curso de Direito Processual Civil. Vol. III. Procedimentos Especiais. Rio de Janeiro: Forense, p. 2005, p. 267).

A correta percepção da natureza do instituto processual é importante porque daí extraem-se conclusões relevantes. O credor requerente da habilitação pleiteia o pagamento ou, sucessivamente, caso não haja concordância do espólio, a reserva de bens que garantam o pagamento.

Ora, não sendo um procedimento obrigatório, pois, na falta de habilitação, o credor pode, desde logo, buscar a satisfação de seu crédito por meio de ação de cobrança ou de execução movida contra o espólio ou contra os sucessores, há de se concluir que a principal utilidade prática do instituto reside, em última instância, na possibilidade de reserva de bens.

Por isso, caso não seja possível declarar habilitado o crédito, porque a controvérsia entre as partes não o permite, o juiz deve remeter as partes às vias ordinárias de solução de controvérsia, lançando as razões pelas quais entende não ser cabível a providência cautelar de reserva de bens. Nessa perspectiva, deixar de apreciar qualquer dos pedidos subsidiários é fato que significa negar jurisdição, ou melhor dizendo, escusar-se no non liquet.

À princípio, duas podem ser as causas que justificam o indeferimento da reserva de bens: a) a impugnação do espólio se funda em quitação; b) a dívida não está consubstanciada em documento que comprove suficientemente a obrigação. A iliquidez do crédito é irrelevante.

Pontes de Miranda, com acuidade, assevera que “sentença passado em julgado, embora sujeita a liquidação (3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de março de 1942, R. dos T., 140, 145), ou declaratória (art. 4º), é título bastante para a reserva. Mesmo, aí, apenas se reserva. Só se exige prova bastante da obrigação; não, o ser dívida líquida” (Pontes de Miranda. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo XIV. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 141).

Mais que declinar as causas porque não é possível a separação e tampouco a reserva de bens, deve-se ressaltar que a habilitação deve ser ajuizada e julgada antes da partilha integral dos bens. Após, o resultado buscado pelo credor passa a ser inútil, pois aí o credor já não terá nenhuma garantia especial, mas apenas, como a própria lei lhe assegura, as forças da herança tal como transmitidas aos herdeiros”.

No caso concreto, porém, não se vislumbra qualquer oposição por parte dos credores ao registro, notadamente porque há notícia de que os débitos ainda estão sendo discutidos judicialmente (fls. 25/31).

A partilha dos bens do espólio, ademais, já foi realizada extrajudicialmente, com indicação da existência de dívidas fiscais pendentes em nome da falecida e sem reserva para pagamento (fls. 04/09).

Note-se que não havia qualquer obstáculo para a partilha por escritura pública (item 125, do Capítulo XVI, das NSCGJ):

125. A existência de credores do espólio não impede a realização do inventário e partilha, ou adjudicação, por escritura pública“.

Assim, se a partilha é possível mesmo quando existem débitos não quitados do falecido, não se pode impor óbice para o seu registro.

Em verdade, uma vez feita a partilha, ainda que extrajudicialmente, não há mais como se falar em espólio.

E deixando de existir a universalidade de bens (espólio) justamente porque operada a divisão patrimonial do acervo hereditário entre os herdeiros (partilha), não há como se exigir reserva de bens.

Serão os herdeiros, na proporção dos quinhões recebidos, que deverão ser acionados para responder pelas dívidas deixadas pela falecida.

Neste sentido, os artigos 1.997 do Código Civil e 642 e 796 do Código de Processo Civil:

Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube“.

Art. 642. Antes da partilha, poderão os credores do espólio requerer ao juízo do inventário o pagamento das dívidas vencidas e exigíveis. (…)

Art. 796. O espólio responde pelas dívidas do falecido, mas, feita a partilha, cada herdeiro responde por elas dentro das forças da herança e na proporção da parte que lhe coube“.

E, ainda, a jurisprudência (destaques nossos):

“PROCESSUAL CIVIL – TRIBUTOS FISCAIS DEVIDOS – PRECEDENTE HOMOLOGAÇÃO DE PARTILHA DOS BENS INVENTARIADOS – TRÂNSITO EM JULGADO DE RECURSO FORMULADO CONTRA A PARTILHA – ARTIGO 1796, CODIGO CIVIL – ARTIGO 1026, CPC. 1. ACERTADA E HOMOLOGADA JUDICIALMENTE A PARTILHA DOS BENS INVENTARIADOS, SEM A PRECEDENTE QUITAÇÃO DAS DIVIDAS FISCAIS DO ESPOLIO (ART. 1026, CPC), COM AS LOAS DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO, A SOLUÇÃO APROPRIADA E FAVORECER A EXECUÇÃO, NÃO MAIS CONTRA O ESPOLIO E SIM RESPONSABILIZANDO OS SUCESSORES CONTEMPLADOS NA DIVISÃO DOS BENS (ART. 1796, CODIGO CIVIL). PRECEDENTES. 2. POREM, NO CASO, ESSA SOLUÇÃO NÃO PODE SER ADOTADA POR TER SE CONSTITUIDO, COM PROVIMENTO JUDICIAL ANTECEDENTE, A COISA JULGADA, A RESPEITO DA APLICAÇÃO DO ART. 1026, CPC. 3. RECURSO PROVIDO” (REsp n. 27.831/RJ, relator Ministro Milton Luiz Pereira, Primeira Turma, julgado em 31/8/1994, DJ de 19/9/1994).

A exigência formulada na nota de devolução de fl. 35 não pode, portanto, subsistir.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 04.03.2024 – SP)