1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Necessidade de buscar a identificação da origem registrária da área afetada e os titulares das matrículas, cujos endereços devem ser fornecidos pela parte suscitada – Notificação dos proprietários – Obrigatoriedade – Ressalvada as hipóteses de não terem sido encontrados pessoalmente ou que estejam em lugar incerto ou não sabido – Dúvida procedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1146784-17.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 7º Registro de Imóveis

Suscitado: Clube Atlético Juventus

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 7º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Clube Atlético Juventus à vista de exigências feitas em procedimento pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel localizado na rua dos Trilhos, sem número, Mooca (prenotações n. 531.377 e 537.628, de 17/07/2023 e 26/09/2023, respectivamente), com as quais a parte suscitada não concorda.

O Oficial informa que a parte pretende o reconhecimento de usucapião extrajudicial na modalidade extraordinária (artigo 1.238 do Código Civil) sobre terreno situado entre outros dois imóveis de sua titularidade, os quais compõem, em conjunto, o complexo desportivo do Clube; que foram realizadas exaustivas buscas em seu acervo para identificar a origem registrária da área usucapienda, mas sem êxito, o que indica haver fortes indícios de que a área estaria inserida em remanescente de eventual transcrição remota do 3º Oficial de Registro de Imóveis da Capital ou até mesmo do 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, serventias estas que, no passado, tiveram a competência territorial da área do terreno em discussão; que solicitou que a parte procedesse com buscas quanto à origem registrária do imóvel usucapiendo perante o 1º e o 3º RI da Capital; que não se pode acolher a alegação de que a área usucapienda estaria inserida nas dependências dos terrenos de titularidade da parte, a ensejar mera retificação da descrição dos imóveis, notadamente porque posse não se confunde com propriedade; que não foi constatada qualquer incongruência nas descrições das matrículas n. 28.494 e 26.349 (fls. 44/47 e 48/51, respectivamente), as quais somente reproduzem as descrições das transcrições que as lastreiam; que referidas matrículas já estavam abertas quando os imóveis foram adquiridos pela parte, de modo que ela tinha ciência de sua descrição tabular, que não compreendia a área usucapienda; que a parte ocupa área de que não é titular, a qual precisa ser identificada de forma inequívoca, inclusive para fins de notificação; que, na impossibilidade de identificação, a via judicial se torna necessária; que a notificação por edital é reservada aos casos em que o titular do domínio está em lugar incerto ou não sabido e não quando sequer é conhecido; que, mesmo que a parte exerça posse qualificada por longo tempo, não possui a titularidade dominial da área, sendo indispensáveis as notificações exigidas; que não se apresentou justo título; que, como prova da posse, providenciou-se tão somente duas notificações de IPTU (fls. 71/72 e 75/76), duas contas de água (fls. 67/69), uma conta de luz (fl. 70) e o depoimento de duas testemunhas (fls. 73/74), o que é insuficiente: há necessidade de apresentação de documentos comprobatórios do exercício da posse ao menos de 2008 a 2023 (quinze anos); que a parte não buscou quaisquer documentos perante o 1º e o 3º RI da Capital que indicassem eventual área maior em que possa estar inserida a área usucapienda ou que negassem a existência de registros referentes àquela área.

O Oficial esclarece que persistem, portanto, as exigências elencadas nos itens de 1 a 10 da nota devolutiva (fls. 88/93), notadamente porque não houve anexação de nova documentação, mas apenas reapresentação de documentos.

Documentos vieram às fls. 05/98.

Em manifestação dirigida ao Oficial (fls. 6/9), a parte suscitada aduz que já é detentora da área usucapienda há mais trinta anos (posse mansa e pacífica); que a área em questão (623,89 metros quadrados) é incrustada dentro de área maior (15.297,00 metros quadrados) de sua propriedade há quase um século; que foi demonstrado o período de posse efetiva ao longo do prazo legal exigido, conforme farta documentação carreada junto ao processo administrativo objeto do protocolo n. 531.377, de 17/07/2023; que as exigências apresentadas pelo Oficial carecem de embasamento jurídico e lógico por tudo o quanto já consta na documentação apresentada, como também do que pode ser verificado da ata notarial de usucapião extrajudicial da lavra do 19º Tabelião de Notas da Capital (fls. 29/38). Não houve, porém, impugnação nestes autos (fl. 99).

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 103/105).

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Prov. 65/2017 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJSP.

Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.

Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):

Usucapião Extrajudicial – direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo – recusa indevida quanto ao processamento do pedido – dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial“.

A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após exigências formuladas pelo Oficial, as quais não foram reconsideradas, com prosseguimento nos termos do §5º, do artigo 17, do Provimento n. 65/2017 do CNJ, e do item 421.4, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Art. 17. Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado. (…) § 5º A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP”.

“421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.

No caso concreto, a pretensão é pela regularização do domínio do imóvel situado na rua dos Trilhos, sem número, Mooca, São Paulo (“parte de uma área destinada ao uso urbano, onde está estabelecido o Estádio Conde Rodolfo Crespi – Rua Javari 117 – Mooca – São Paulo – CEP: 03112-100, fazendo fundos com a Rua dos Trilhos, 590 – Bairro da Mooca – São Paulo – SP – CEP: 03168-005” – fl. 12), mediante reconhecimento de usucapião na modalidade ordinária, nos termos do artigo 1.242 do Código Civil (fl.12).

O terreno foi assim descrito (fl. 15):

TERRENO: situado à Rua dos Trilhos, sem número, no 16º Subdistrito – Mooca, sendo o terreno assim descrito: tem início no vértice V13, situado no alinhamento predial entre a Rua dos Trilhos e Rua João Antônio de Oliveira; desse ponto segue 11,93 m e azimute 086º06’29”, pelo alinhamento da Rua dos Trilhos, até atingir o vértice V14; daí deflete à direita formando ângulo interno de 178º55’50” e segue 57,15m, confrontando com o imóvel sem número da Rua dos Trilhos, Matrícula n. 26.349, e com o imóvel n.34 da Rua Cavalheiro Rodolfo Crespi, Matrícula n. 16.874, até atingir o vértice V8; daí deflete à direita formando ângulo interno de 269º55’17” e segue 10,06m, confrontando com o imóvel n. 189, 193 e 197 da Rua Javari, Matrícula n. 125.447, até atingir o vértice V9; deste ponto deflete à direita formando ângulo interno de 357º02’33” e segue 56,42m, confrontando com o imóvel sem número da Rua Javari, Matrícula n.28.494, até atingir o vértice V13, voltando ao segmento inicial, perfazendo a área de 623,89m² e perímetro de 135,56 metros”.

A parte alega exercer posse desde o ano de 1981, quando adquiriu o bem a justo título por meio de escritura de compra e venda lavrada em 24 de setembro de 1981 perante o 26º Tabelião de Notas da Capital, mas sem registro. No título, deixou-se de constar, por um lapso, a área em questão, de mais de 623,89 metros quadrados, que está delimitada por muros e dentro do campo de futebol existente no estádio.

Vale notar que, muito embora o Oficial tenha informado, quando da suscitação de dúvida, que a parte ingressou com usucapião extraordinária (fl. 01), em verdade, ela optou pela modalidade ordinária (fl. 12), em oposição ao que declarou na ata notarial (fl. 31), mas sem ter apresentado qualquer documento a comprovar justo título, como observado nos itens 5 e 6 da nota devolutiva (fl. 90), com sugestão para adequação do procedimento. Correta, portanto, a exigência de apresentação de justo título para comprovação da transmissão do imóvel em questão (artigo 1.242 do CC):

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos”.

Ainda que tenha sido possibilitada a alteração do requerimento para modalidade de usucapião que não exige a apresentação de justo título (extraordinária), a parte reiterou sua intenção em alcançar a propriedade pela via da usucapião ordinária ao afirmar que é titular do domínio (cf. requerimento de suscitação de dúvida – fl. 06).

Note-se, também, que, em tendo a parte optado pela regularização por meio da usucapião extrajudicial (seja na modalidade que for), não há como se falar em retificação da área dos imóveis das matrículas n. 28.494 e 26.349 (de sua propriedade e confrontantes do imóvel em questão – fl. 88) com a finalidade de acomodar, nas descrições tabulares, a área em debate.

Fosse esse o caso, deveria ter formulado requerimento específico de retificação dos registros dos imóveis nos termos do artigo 213, inciso I, da Lei n. 6.015/73, para que passassem a constar as medidas faltantes.

Em outras palavras, não é possível retificar área que se pretende declarar como sua.

Ademais, após análise dos registros apontados (matrículas n. 28.494 e 26.349 – fls. 44/47 e 48/51, respectivamente), o Oficial concluiu que não há como afirmar categoricamente que o imóvel usucapiendo se encontra inserido na área maior das transcrições originárias indicadas no requerimento, questão preliminar que prejudica a adequada identificação dos titulares do domínio.

De fato, os registros lançados nas matrículas n. 28.494 e 28.493 perante o 7º Registro de Imóveis da Capital descrevem áreas vastas (cerca de 2.300 m² e 12.385 m², respectivamente fls. 39 e 44), que constituem um complexo esportivo com campo de futebol, mas sem indicação de elementos adequados para a perfeita localização geográfica do terreno usucapiendo.

Neste ponto, a identificação da correspondência tabular da área usucapienda é incumbência do Oficial de Registro com base no Indicador Real, Livro n. 4 (Portaria Conjunta 01/88).

Isto porque, quando da não especificação do número da transcrição ou da matrícula, o fornecimento de certidão com base no endereço do imóvel deve ser precedido de pesquisa pelo Indicador Real (itens 88 e 159, Cap. XX, NSCGJ):

88. O Livro nº 4 será o repositório das indicações de todos os imóveis que figurarem no Livro nº 2, devendo conter sua identificação, o número de cadastro fiscal e o número da matrícula e será feito por sistema de banco de dados relacional. (…)

159. Quando solicitada com base no Indicador Real, o cartório só expedirá certidão após cuidadosas buscas, efetuadas com os elementos de indicação constantes da descrição do imóvel“.

Ocorre que, como não foram encontrados dados suficientes perante o 7º Registro de Imóveis, atualmente responsável por aquela circunscrição, a situação deve ser pesquisada junto às serventias anteriormente responsáveis, quais sejam, o 1º e o 3º Registro de Imóveis da Capital.

No caso, basta que a parte suscitada providencie certidão perante aquelas serventias extrajudiciais, as quais deverão tomar por base a descrição dos trabalhos técnicos que instruem o presente requerimento.

É imprescindível a confirmação por ambos os Oficiais mediante análise da área envolvida no caso concreto.

Não se confunda certidão de pesquisa pelo Indicador Real com certidão das transcrições, pois é necessário que o Oficial confronte a área objeto da usucapião com os seus registros, confirmando a correspondência entre os dados.

Outrossim, caso se confirme a origem registrária apontada no requerimento, a notificação dos titulares do domínio não poderá ser dispensada.

Como explicado anteriormente, se faz necessário identificar a origem registrária da área afetada e os titulares dessas matrículas, cujos endereços devem ser fornecidos pela parte suscitada.

De fato, no processo extrajudicial de usucapião, como regra geral, não se pode dispensar a notificação de titulares de direitos que não tenham dado prévia anuência à pretensão do interessado usucapiente. Nesse sentido a redação do parágrafo 2º, artigo 216-A, da Lei n.6015/73:

§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância“.

Em consequência, independentemente do tempo alegado de posse, em nenhuma modalidade de usucapião há previsão legal para dispensa das notificações exigidas, ressalvada a demonstração de consentimento expresso pelos titulares dos direitos, conforme hipóteses previstas nos artigos 10 e 13 do Provimento CNJ n. 65/2017.

Eventual dificuldade ou morosidade não justifica que se dispensem notificações de quem vier a ser afetado pela usucapião, pois a regra fundamental em qualquer procedimento realizado em contraditório é de que seja dada ciência a quem quer que possa ser atingido pela decisão final.

O artigo 10 do Provimento CNJ n. 65/2017. impõe a notificação pessoal dos titulares de direitos que não assinarem a planta que instrui o pedido de usucapião nem fornecerem anuência expressa.

Já o seu artigo 13 faz presumir a outorga do consentimento quando apresentado justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova de quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o requerente ou cessionários.

Ressalte-se que a prova de quitação das obrigações contraídas com os proprietários tabulares também pode ser feita mediante certidão, como dispõe o item 419.3.1, Cap. XX, das NSCGJ:

419.3.1. Equivale à prova de quitação, a certidão emitida após 5 (cinco) anos do vencimento da última prestação pelo Distribuidor Cível da comarca do imóvel e da comarca do domicílio do requerente, se diversa (CC, art. 206, § 5º, I), que explicite a inexistência de ação judicial que verse sobre a posse ou a propriedade do imóvel contra o adquirente ou seus cessionários”.

Em outros termos, é possível dispensar a notificação do titular de direito real quando demonstrada a existência de relação jurídica firmada por ele, acompanhada de prova de quitação das obrigações assumidas pelo adquirente, o que pode se dar por certidão.

No presente caso, todavia, a parte não comprova relação jurídica, sua ou de seus antecessores.

Assim, como já consignado, nada justifica que se dispensem as notificações expressamente exigidas pela lei.

Observe-se, ainda, que a notificação por edital é autorizada em apenas duas hipóteses no procedimento administrativo: para ciência de terceiros eventualmente interessados e para ciência de notificandos que não tenham sido encontrados pessoalmente ou que estejam em lugar incerto ou não sabido (§§ 4º e 13, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73; artigos 11 e 16 do Prov. CNJ n. 65/17; e itens 418.16 e 418.21, Cap. XX, das NSCGJ):

418.16. Caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, ou inacessível, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância. (…)

418.21. Após as notificações dos titulares do domínio do imóvel usucapiendo e dos confrontantes, o oficial de registro de imóveis expedirá edital, que será publicado pelo requerente e às expensas dele, na forma do art. 257, III, do CPC, para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação (…)“.

Nesse contexto, de rigor o atendimento das exigências formuladas pelo Oficial registrador na nota de devolução de fls. 88/93, com complementação da documentação apresentada para identificação do imóvel usucapiendo.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter as exigências formuladas.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 29 de novembro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 01.12.2023 – SP)