CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Formal de partilha – Indisponibilidade de bens – Renúncia translativa feita por herdeiro contra o qual pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Doação de sua cota parte no imóvel objeto da partilha em favor de outra herdeira – Alienação voluntária que não pode ser levada a registro até que sejam canceladas as ordens de indisponibilidade – Óbice mantido – Apelação não provida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1045543-61.2022.8.26.0576, da Comarca de São José do Rio Preto, em que é apelante DEOLINDA GOMES CORREA ROMEIRO, é apelado 1° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RICARDO ANAFE (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), GUILHERME GONÇALVES STRENGER (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), BERETTA DA SILVEIRA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E FRANCISCO BRUNO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 31 de agosto de 2023.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1045543-61.2022.8.26.0576

APELANTE: Deolinda Gomes Correa Romeiro

APELADO: 1° Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São José do Rio Preto

VOTO Nº 39.091

Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Formal de partilha – Indisponibilidade de bens – Renúncia translativa feita por herdeiro contra o qual pesavam indisponibilidades decorrentes de ordens jurisdicionais – Doação de sua cota parte no imóvel objeto da partilha em favor de outra herdeira – Alienação voluntária que não pode ser levada a registro até que sejam canceladas as ordens de indisponibilidade – Óbice mantido – Apelação não provida.

Trata-se de apelação interposta por Deolinda Gomes Correa Romeiro contra a r. sentença que julgou procedente a dúvida suscitada e, afastando um dos óbices apresentados pelo registrador, manteve a recusa do registro de formal de partilha dos bens deixados pelo falecimento de Urisdes Gomes Correa, expedido nos autos do Processo nº 1019374-71.2021.8.26.0576 da 1ª Vara da Família e Sucessões da Comarca de São José do Rio Preto, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 47.425 junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis de São José do Rio Preto (fls. 123/126).

Alega a apelante, em síntese, que a indisponibilidade dos bens de Agnaldo José Paglione Correa não é óbice ao pretendido registro, pois, em decorrência da renúncia à herança formulada, a parte cabente ao referido coerdeiro foi transmitida diretamente à coerdeira Cristiane Paglione Correa, sem que ingressasse no patrimônio do renunciante. Pugna, por fim, pela concessão dos benefícios da Justiça Gratuita (135/144).

A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 180/182).

É o relatório.

Desde logo, cumpre consignar que o pedido de Justiça Gratuita já foi apreciado pelo MM. Juízo de origem (fls. 160), certo que, neste processo administrativo, relativo à dúvida suscitada em matéria registrária, não incidem custas processuais ante a falta de previsão específica nas Leis Estaduais n° 11.331/02 e 11.608/03.

O registro do formal de partilha foi negado pelo Oficial de Registro, que expediu nota de devolução nos seguintes termos (fls. 31/32):

“I – Não obstante a juntada do termo de renúncia às fls. 240 dos autos, em atenção ao disposto no artigo 108 do Código Civil Brasileiro, tratando-se de bem imóvel com valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país, a renúncia do usufruto instituído sobre o imóvel conforme R.05 da matrícula

47.425, deverá ser formalizado por meio de escritura pública de renúncia de usufruto.

II – Consta do título renúncia translativa conforme se observa do termo juntado às fls. 289, assim em atenção ao art. 186 da Lei 6.015/73, cumpre-me informar a existência de ordem de indisponibilidade que recai sobre o herdeiro cedente Agnaldo José Paglione Correa (CPF nº 089.363.298-80), conforme protocolos da central de indisponibilidade (…).

Logo, resta prejudicada a análise do presente título enquanto não afastados os óbices acima apontados (…)”.

O primeiro óbice apresentado pelo registrador foi corretamente levantado pelo MM. Juiz Corregedor Permanente, uma vez que, ausente rogação quanto ao cancelamento do usufruto instituído em favor de Alice Gomes Correa Garcia, não há que se falar na necessidade de lavratura de escritura pública como exigido pelo registrador.

O segundo óbice, no entanto, é mesmo intransponível.

Com efeito, a doutrina, ao tratar do tema, faz incluir a indisponibilidade (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 247) no campo das proibições ao poder de dispor, eis que: (a) representa uma “inalienabilidade de bens, que pode provir das mais diversas causas”, diz Valmir Pontes (Registro de Imóveis, São Paulo: Saraiva, 1982, p. 179); (b) constitui uma “forma especial de inalienabilidade e de impenhorabilidade”, segundo Walter Ceneviva (Lei dos Registros Públicos Comentada, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 625, n. 671); (c) implica “a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma”, conforme o ensinamento de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 109); (d) “impede apenas a alienação, mas não equivale à penhora e não acarreta necessariamente a expropriação do bem”, no dizer de Francisco Eduardo Loureiro (in José Manuel de Arruda Alvim Neto et alii (coord.), Lei de Registros Públicos comentada, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1.291); (e) “afeta os atributos da propriedade, perdendo o proprietário o poder de disposição, de modo que, para alienar ou onerar o bem é necessário o prévio cancelamento da indisponibilidade”, ensina Ana Paula P. L. Almada (Registros Públicos, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2020, p. 444); e (f) possui natureza “evidentemente acautelatória, pois visa assegurar o resultado prático de não dispor do imóvel enquanto persistir a situação jurídica que autoriza a indisponibilidade de bens”, na opinião de Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari (Tratado Notarial e Registral Ofício de Registro de Imóveis, São Paulo: YK Editora, 2020, p. 2.843-2.843). Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (op. cit., p. 109-110) ainda faz a seguinte precisão: “Não obstante a inalienabilidade e a indisponibilidade signifiquem restrição ao poder de dispor da coisa, usualmente tem-se utilizado o termo inalienabilidade para as restrições decorrentes de atos de vontade, enquanto o termo indisponibilidade tem sido usado para se referir às restrições impostas pela lei, ou em razão de atos administrativos ou jurisdicionais. Diferença relevante assenta na finalidade: enquanto nos atos de vontade o que se busca atingir com a restrição é a proteção do beneficiário da cláusula (daquele que fica impedido de dispor), nos demais atos o objetivo, em regra, é dar efetividade a decisões administrativas e jurisdicionais, em desfavor de quem tenha alcançado seu poder de disposição.”

Estabelecido, assim, que a indisponibilidade é proibição ao poder de dispor, com finalidade acautelatória, resta por determinar o seu efetivo alcance no caso concreto.

O problema se coloca porque, na hipótese em discussão, entenderam tanto o Oficial de Registro de Imóveis quanto o MM. Juiz Corregedor Permanente que o herdeiro Agnaldo José Paglione Correa não poderia doar 2,77% do imóvel deixado pela falecida, correspondente à sua parte na herança, por conta das ordens de indisponibilidade de bens existentes em seu nome junto à CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de Bens.

É pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de que a indisponibilidade dos bens decretada em Juízo inviabiliza o ingresso, no fólio real, de título que implique a alienação voluntária do imóvel.

E segundo o princípio da saisine, todos os bens do de cujus são transmitidos aos herdeiros no momento da morte, certo que a transmissão depende de aceitação, cujos efeitos retroagem à data da abertura da sucessão.

Ocorre que, ao lado da aceitação, existe também a possibilidade de renúncia pelo herdeiro, como se depreende do parágrafo único do artigo 1.804, do Código Civil:

“Artigo 1.804. (…). Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança”.

In casu, não resta dúvida de que o herdeiro Agnaldo José Paglione Correa aceitou a herança para, na sequência, ceder gratuitamente seu quinhão em favor da coerdeira Cristiane Paglione Correa (fls. 78). Pressuposto necessário para transmitir sua quota é têla em seu patrimônio, de modo que a cessão imediata à partilha não se confunde com renúncia à herança e, assim, surte efeitos distintos – os quais, contudo, não se podiam produzir como pretendido, em razão da ordem de indisponibilidade a vedar a licitude da cessão almejada.

Consigne-se, por oportuno, que o v. acórdão proferido por este Colendo Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1001772-70.2020.8.26.0263, invocado como precedente nas razões de recurso da apelante, não tem aplicação a este caso, porque se refere a hipótese diversa. Naquele aresto, reconheceu-se a ocorrência de renúncia de herança em favor do monte mor (renúncia abdicativa), sem que o bem houvesse ingressado no patrimônio do renunciante. Aqui, diferentemente, houve a aceitação da herança e a doação da parte cabente ao renunciante para outra herdeira (renúncia translativa).

Destarte, existindo ordem de indisponibilidade de bens e direitos, a partilha decorrente da alienação inquinada não pode ser levada a registro.

Correto, portanto, o óbice imposto pelo Oficial ao registro do formal de partilha apresentado.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao apelo.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 27.10.2023 – SP)