CGJ|SP: Registro de Imóveis – Escritura pública de retificação e ratificação, por intermédio da qual foi promovida a modificação e a inclusão de cláusulas na escritura pública de doação já registrada – Qualificação negativa – Pretensão de quem já não é mais titular do domínio de impor cláusulas restritivas à atual proprietária que se mostra inviável – Ofensa ao princípio da continuidade – Irrelevância da expressa anuência da atual titular de domínio, eis que incabível a imposição de gravames aos próprios bens, com a consequente limitação de sua responsabilidade patrimonial – Lei municipal posterior que não pode retroagir em detrimento de ato jurídico perfeito – Recurso não provido.

PROCESSO nº 1006268-70.2021.8.26.0114 (315/2022-E)

REGISTRO DE IMÓVEIS – ESCRITURA PÚBLICA DE RETIFICAÇÃO E RATIFICAÇÃO, POR INTERMÉDIO DA QUAL FOI PROMOVIDA A MODIFICAÇÃO E A INCLUSÃO DE CLÁUSULAS NA ESCRITURA PÚBLICA DE DOAÇÃO JÁ REGISTRADA – QUALIFICAÇÃO NEGATIVA – PRETENSÃO DE QUEM JÁ NÃO É MAIS TITULAR DO DOMÍNIO DE IMPOR CLÁUSULAS RESTRITIVAS À ATUAL PROPRIETÁRIA QUE SE MOSTRA INVIÁVEL – OFENSA AO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE – IRRELEVÂNCIA DA EXPRESSA ANUÊNCIA DA ATUAL TITULAR DE DOMÍNIO, EIS QUE INCABÍVEL A IMPOSIÇÃO DE GRAVAMES AOS PRÓPRIOS BENS, COM A CONSEQUENTE LIMITAÇÃO DE SUA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL – LEI MUNICIPAL POSTERIOR QUE NÃO PODE RETROAGIR EM DETRIMENTO DE ATO JURÍDICO PERFEITO – RECURSO NÃO PROVIDO.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso interposto por Associação Atlética Ponte Preta contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Campinas/SP, que manteve a qualificação negativa da escritura pública de retificação e ratificação, lavrada em 15 de setembro de 2020, por intermédio da qual foi promovida a modificação e a inclusão de cláusulas na escritura pública de doação, lavrada em 29 de novembro de 1976, já registrada, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 7.357 junto à referida serventia extrajudicial (fls. 218/220).

Alega a apelante, em síntese, que na qualidade de donatária do imóvel não apresentou nenhuma resistência aos novos encargos instituídos pela Municipalidade, doadora do imóvel. Esclarece que a estipulação de cláusulas restritivas de inalienabilidade e impenhorabilidade decorre da Lei Complementar Municipal nº 86, de 28 de novembro de 2014, e visa aprimorar o uso do imóvel para os fins buscados pela administração pública, em favor do bem comum. Acrescenta que referida lei apenas prorrogou o prazo para concretização dos encargos previstos na doação, o que enseja sua retroatividade por estar em consonância com os encargos originariamente estabelecidos (fls. 229/235).

A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 266/271).

Nos termos da r. Decisão Monocrática a fls. 273/276, o feito foi redistribuído a esta E. Corregedoria Geral da Justiça.

Opino.

De início, saliente-se que se cuida de pedido de providências e de recurso inominado, uma vez que a inscrição colimada é averbação. De qualquer forma, o erro de nominação não prejudica em nada o processamento do recurso, pois foi respeitado o prazo legal para interposição, de resto idêntico para essa espécie e para a apelação (artigo 202 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973; artigo 1003, § 5º, do Código de Processo Civil; e artigo 246 do Código Judiciário de São Paulo).

Por outro lado, a alegada irregularidade na representação da recorrente foi devidamente sanada (fls. 83/141).

Pretende a recorrente a retificação do registro da doação do imóvel objeto da matrícula nº 7.357 do 2º Oficial de Registro de Imóveis de Campinas/SP, mediante averbação de modificação e inclusão de cláusulas que retificam e aditam a escritura de doação, lavrada em 29 de novembro de 1976 (fls. 13/28) e registrada em 10 de março de 1977 (R-1-7357, fls. 43/45), nos termos da escritura pública de retificação e ratificação, lavrada em 15 de setembro de 2020 (fls. 09/11).

O recurso não comporta acolhimento, estando correta a decisão do MM. Juiz Corregedor Permanente que manteve o óbice à pretendida retificação de registro.

Com efeito, por força do princípio do trato consecutivo (ou da continuidade), como regra geral só se admite a inscrição (registro stricto sensu ou averbação – Lei nº 6.015, art. 167, incisos I e II) “daqueles actos de disposição em que o disponente coincide com o titular do direito segundo o registo” (Carlos Ferreira de Almeida, apud Ricardo Dip, Registros sobre Registros, nº 208).

Tal princípio, segundo a lição de Afrânio de Carvalho, se apoia no da especialidade e quer dizer que “em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular.” (in “Registro de Imóveis”, Ed. Forense, 4ª ed., p. 253).

No caso concreto, com a inscrição no registro imobiliário da escritura de doação (R-1-7357 fls. 43/45), operou-se a transmissão do domínio da doadora para a donatária. Inviável, portanto, a pretensão daquela que deixou de ser titular do domínio de instituir cláusulas restritivas à atual proprietária, sendo irrelevante a expressa anuência desta, eis que incabível a inserção de tais gravames aos próprios bens, com a consequente limitação de sua responsabilidade patrimonial.

A imposição de cláusulas restritivas deve ocorrer no próprio ato da liberalidade, na medida em que se trata de deliberação que somente pode ser praticada pela titular do domínio, já transmitido, in casu, com o registro da escritura de doação. Com efeito, a ninguém é dado vincular os próprios bens, conforme ensinamento doutrinário de Ademar Fioranelli:

“A imposição da cláusula restritiva deve ocorrer no próprio ato da liberalidade (doação ou testamento) e nunca posteriormente. Esse entendimento é perfeito e correto, já que, além de preservar o aspecto moral da questão, está alicerçado em princípios de direito e consubstanciado no conjunto de normas vigentes.” (“Das Cláusulas de Inalienabilidade, Impenhorabilidade e Incomunicabilidade; Série Direito Registral e Notarial”, 1ª edição; 2ª tiragem, Saraiva, São Paulo, 2010, p. 29).

No mesmo sentido, a lição de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza:

“Após o aperfeiçoamento da doação, com a aceitação e o registro, operando-se a transmissão (art. 1245 do C.C.), não mais há que se falar em imposição de cláusulas, pois o bem não mais estará no patrimônio do instituidor.

Assim, após o registro, será incabível aditamento ou rerratificação para imposição das cláusulas eis que o bem já pertencerá ao donatário, não podendo os doadores impor cláusulas sobre bem de terceiro. A imposição das cláusulas após o registro só será possível se houver uma rescisão da doação, retornando o bem aos doadores e a celebração de nova doação com as cláusulas, com todas as conseqüências decorrentes da prática do ato (pagamento de tributos, lavratura de escrituras, prática de atos no registro imobiliário).” (in “As restrições voluntárias na transmissão de bens imóveis- Cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade”. Quinta Editorial, São Paulo, 2012).

A matéria foi apreciada com exatidão no v. acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº 056317-0/1, em que foi relator o então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição, conforme julgamento proferido na data de 26.03.1999, assim ementado:

“Registro de Imóveis – Dúvida – Ingresso de escritura de retificação e ratificação de ato notarial anterior, para instituição de usufruto e de cláusulas restritivas de impenhorabilidade e incomunicabilidade – Pretensão de registro indeferida – Recurso improvido.”

Ressalte-se não ser possível, por intermédio da pretendida retificação de registro, antecipar a interpretação jurídica a ser dada ao assento já constante da matrícula, fixando-se as consequências do eventual descumprimento dos encargos estabelecidos por ocasião da doação registrada.

Com efeito, a qualificação registral imobiliária, por destinar-se a dar segurança jurídica, fazendo ingressar nos assentos imobiliários somente os títulos hígidos que houverem suportado exame favorável, não comporta a solução de consultas, controvérsias interpretativas ou divergências de entendimento. Bem por isso, desenrola-se como um juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem à sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração (nesse sentido: Ricardo Dip. “Registro de Imóveis (vários estudos)”; Porto Alegre: IRIB/Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 186).

Em outras palavras, a atividade registral e os assentos que dela decorrem não se destinam a resolver incertezas de interpretação ou dificuldades de compreensão de seu alcance, pois “é certo que não cabe incluir na publicidade aquilo que aos registradores pareça ‘convir’ ao mero esclarecimento de uma dada situação jurídica”, seja “para reforçar uma publicidade legal”, seja “para acautelar de uma situação factual” (Ricardo Dip. Registro de Imóveis (princípios). Tomo I. Descalvado: Primus, 2005. p. 162).

Nesse cenário, correta se mostra a negativa de retificação de registro, para imposição de novas cláusulas restritivas ou alteração de cláusulas anteriormente impostas por ocasião da doação inscrita há anos

No mais, é sabido que a nova lei municipal não pode atingir ato jurídico perfeito, entendido como tal o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Como bem decidiu o MM. Juiz Corregedor Permanente, a retroatividade, só de modo anormal, pode atingir situações consolidadas, atos jurídicos perfeitos e direitos adquiridos.

Diante do exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto ao elevado critério de Vossa Excelência é no sentido de receber a apelação interposta como recurso administrativo e a ele negar provimento.

Sub censura.

São Paulo, 19 de agosto de 2022.

STEFÂNIA COSTA AMORIM REQUENA
Juíza Assessora da Corregedoria
(Assinatura Eletrônica)

DECISÃO

Vistos.

Aprovo o parecer da MM.ª Juíza Assessora desta Corregedoria Geral da Justiça e, por seus fundamentos, ora adotados, recebo a apelação como recurso administrativo, ao qual nego provimento.

Publique-se.

São Paulo, 09 de setembro de 2022.

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA
Corregedor Geral da Justiça

(DJE de 19.9.2022)