1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Exigência de comprovação de quitação de negócio jurídico – Última parcela do preço vencida há mais de cinco anos – Certidão atual do Distribuidor Cível da Comarca do imóvel que explicite a inexistência de ação judicial versando sobre posse ou propriedade contra o adquirente ou cessionários equivale à prova de quitação, o que autoriza presumir como outorgado o consentimento do titular registral, com dispensa de sua notificação pessoal – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1140285-85.2021.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Sonia Maria Ferreira da Silva

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida formulada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Sonia Maria Ferreira da Silva, diante de exigências feitas em procedimento extrajudicial de reconhecimento de usucapião dos imóveis objeto das transcrições n. 67.724, n. 67.723, n. 61.896, n.61.895 e n.23.188 daquela serventia, com as quais a parte suscitada não concorda.

Esclarece o Oficial que são necessárias indicação e qualificação completa de todos os atuais titulares do domínio do imóvel usucapiendo para fim de notificação, além de apresentação das certidões de óbito e de certidões negativas de testamento em nome dos titulares falecidos, bem como certidão negativa dos distribuidores da Justiça Estadual demonstrando a inexistência de ações possessórias ou reivindicatórias sobre o imóvel em nome de Emanuel Grosberg. Documentos vieram às fls. 06/1643.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada alegou que já apresentou certidão de objeto e pé de todos os processos de inventário envolvendo os vários titulares do domínio do prédio usucapiendo, dos quais muitos são falecidos. Defende a dispensa da notificação dos titulares do domínio pela apresentação de justo título, nos termos do artigo 13 do Provimento CNJ n. 65/2017, equivalendo a certidão do distribuidor cível a prova de quitação, conforme item 230.4 do Provimento CG n. 21/2013 (fls. 1630/1636). Não houve, porém, impugnação nestes autos (fl. 1646).

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 1649/1651).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

No mérito, em que pese a cautela do Oficial, a dúvida é improcedente.

Vejamos os motivos.

Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa.

Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.

Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):

“Usucapião Extrajudicial direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial”.

O procedimento extrajudicial de usucapião segue rito próprio, com regulação pelo art. 216-A da Lei n.6.015/73, pelo Prov.65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap.XX das NSCGJSP.

A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após exigências formuladas pelo Oficial, as quais não foram reconsideradas, o que autoriza presumir, portanto, pela rejeição implícita do pedido, com prosseguimento nos termos do §5º, do art. 17, do Provimento 65/2017 do CNJ, e do item 421.4, Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Art. 17. Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.

(…)

§ 5º A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP”.

“421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.

O caso concreto trata do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião de uma unidade em condomínio edilício, além de uma vaga indeterminada para carro grande na garagem, sobre os quais a parte interessada adquiriu direitos possessórios por meio de instrumento particular firmado em 30 de novembro de 1980 com Roberto Gonini e sua mulher, Hiroko Hatiya Gonini. Estes, por sua vez, adquiriram os direitos sobre os imóveis diretamente dos proprietários tabulares (fls. 58/62, 1240/1270 e 1280/1294).

Conforme transcrições n. 67.724, n. 67.723, n. 61.896, n. 61.895 e n. 23.188, todas do 1º RI, figuram como titulares do domínio: Arão Sahm e sua mulher, Ghitlea Sahm (que também assina Guita Sahm), Henrique Barmak, Abram Rosenfeld, Cheade Farah, Ester Walt, Moyses Goldstein Paciornik, Jayme Balaban e sua mulher, Mindel Teperman Balaban (fls. 480/493).

Inicialmente, foi exigida a qualificação desses titulares para fim de notificação, bem como a apresentação de certidões negativas dos distribuidores (fls. 394/397, itens 1.2 e 2.b).

A parte requerente comunicou não ter localizado o número do RG e do CPF dos proprietários, requerendo sua intimação por edital (fls. 498/500).

A serventia extrajudicial, então, diligenciou e localizou os dados necessários, descobrindo que a maior parte dos titulares do domínio já faleceu (fls. 596/755).

A serventia também providenciou todas as certidões dos distribuidores estaduais e federais, com exceção das relativas a Emmanuel Grosberg, marido de Ester Grosberg, porque não encontrou seu CPF. Assim, foram exigidas identificação e qualificação dos sucessores para fim de notificação, bem como apresentação de certidões de objeto de pé esclarecedoras de alguns processos (fls. 756/758).

Por considerar “um fardo hercúleo”, com grande consumo de tempo e expressivo custo financeiro, a parte requereu autorização para prosseguimento sem indicação nem qualificação dos herdeiros (fls. 766/768).

Antes, porém, de analisar tal pedido, por observar que a parte havia noticiado anteriormente a arrematação dos direitos inerentes aos imóveis, o Oficial pediu a comprovação dessa arrematação (fl. 840). Anotou, ainda, que a dispensa da notificação dos titulares do domínio somente é possível na forma do artigo 13 do Provimento CNJ n. 65/2017, pelo que solicitou apresentação dos documentos pertinentes (fl. 864).

Contudo, após apresentação de vasta documentação, constatou-se que, apesar de ter havido penhora dos direitos sobre o imóvel, não houve alienação judicial, sendo o feito extinto após liquidação da dívida mediante pagamento consensual feito pela parte interessada.

Outrossim, verificou-se que os instrumentos particulares exibidos demonstraram a cadeia de relação jurídica entre a parte requerente e os titulares do domínio, restando pendente a comprovação de quitação dos mencionados negócios jurídicos, datados de 28.12.1966, 23.02.1970 e 30.11.1980.

Assim, foi exigida a apresentação de certidão de objeto e pé da ação de usucapião anteriormente proposta pela parte interessada, ao lado das certidões relativas a Emmanuel Grosberg, destacando-se a possibilidade de sua emissão independentemente da informação de RG e CPF (fls. 1534/1535).

O atendimento, no entanto, foi parcial, com demonstração apenas da extinção da ação de usucapião (fl.1544).

Na sequência, o Oficial entendeu imprescindível a notificação dos titulares do domínio ou eventuais herdeiros (fls. 1546/1548), a qual não pode ser dispensada pela ausência dos requisitos do artigo 13 do Provimento CNJ n. 65/2017, nos moldes do entendimento firmado por esta Corregedoria Permanente no processo de autos n. 1071425-03.2019.8.26.0100: “o alcance de tal dispensa deve ser limitado aos titulares de direito de compromisso de compra e venda e demais cessões de direitos existentes no registro imobiliário, não sendo possível a dispensa de notificação do titular de domínio”.

Exigiu, assim, a qualificação completa dos proprietários tabulares ou respectivos herdeiros; cópias autenticadas das certidões de óbito e certidões negativas de testamento; certidões de objeto e pé de alguns processos e certidão negativa dos distribuidores em nome de Emanuel Grosberg.

Novamente o atendimento foi parcial (fls. 1558/1616), restringindo-se à apresentação das certidões de objeto e pé, de modo que o Oficial emitiu uma última nota, objeto deste procedimento, na qual reiterou as exigências anteriores (fl. 1618).

Nesse contexto, é importante registrar que, no processo extrajudicial de usucapião, como regra geral, não se pode dispensar a notificação de titulares de direitos que não tenham dado prévia anuência à pretensão do interessado usucapiente.

Nesse sentido a redação do parágrafo 2º, artigo 216-A, da Lei n. 6015/73:

“§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância”.

Assim, independentemente do tempo alegado de posse, em nenhuma modalidade de usucapião há previsão legal para dispensa das notificações exigidas, ressalvada a demonstração de consentimento expresso pelos titulares dos direitos, conforme hipóteses previstas nos artigos 10 e 13 do Provimento CNJ n. 65/2017.

Eventual dificuldade ou morosidade não justifica que se dispensem notificações de quem vier a ser afetado pela usucapião, pois a regra fundamental em qualquer procedimento realizado em contraditório é de que seja dada ciência a quem quer que possa ser atingido pela decisão final.

O artigo 10 do Provimento CNJ n. 65/2017 impõe a notificação pessoal dos titulares de direitos que não assinarem a planta que instrui o pedido de usucapião nem fornecerem anuência expressa.

Já o seu artigo 13 faz presumir a outorga do consentimento quando apresentado justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova de quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o requerente ou cessionários.

Em que pese a convicção do Oficial pela ausência dos requisitos normativos para a dispensa da notificação, a prova de quitação das obrigações contraídas com os proprietários tabulares também pode ser feita mediante certidão, como dispõe o item 419.3.1, Cap.XX, das NSCGJ:

“419.3.1. Equivale à prova de quitação, a certidão emitida após 5 (cinco) anos do vencimento da última prestação pelo Distribuidor Cível da comarca do imóvel e da comarca do domicílio do requerente, se diversa (CC, art. 206, § 5º, I), que explicite a inexistência de ação judicial que verse sobre a posse ou a propriedade do imóvel contra o adquirente ou seus cessionários”.

Referido dispositivo, acrescentado pelo Provimento CG 56, de 11/12/2019, conduz à revisão da orientação anteriormente firmada por esta Corregedoria Permanente nas sentenças proferidas nos processos de autos n. 1134486-66.2018.8.26.0100 e n. 1071425-03.2019.8.26.0100, que se fundaram na aplicação analógica do antigo item 309.5, Cap.XX, das NSCGJ, restando clara, nas disposições atuais, a possibilidade de dispensa da notificação do titular do domínio quando demonstrada a existência de relação jurídica firmada por ele, acompanhada de prova de quitação das obrigações assumidas pelo adquirente, o que pode se dar por certidão.

No caso concreto, houve demonstração de toda a cadeia de sucessão na posse, a qual foi constatada pelo Oficial (fl. 1535, primeiro parágrafo).

Quanto à quitação dos negócios jurídicos, verifica-se que o primeiro contrato firmado entre os titulares do domínio e Roberto Gonini, datado de 28 de dezembro de 1966 (fls. 1240/1270), incluiu não só a alienação da unidade habitacional de n. 144, como também a incorporação, a construção e a administração do empreendimento, com previsão, nas cláusulas 9 e 14 (fls. 1248 e 1254), de pagamento de sinal em parcelas vencidas até setembro de 1967 e saldo dividido em 36 prestações vencidas ao longo do prazo previsto para construção, que iria até fevereiro de 1970.

A aquisição da vaga de garagem foi firmada, entre as mesmas partes, em 23 de fevereiro de 1970, por contrato que previu pagamento dividido em um sinal e saldo parcelado em 15 vezes, além de duas parcelas intermediárias, tudo com vencimento final previsto até maio de 1971 (fls. 1280/1294, notadamente fl. 1286).

Por fim, em 30 de novembro de 1980, a parte requerente adquiriu de Roberto Gonini e esposa os direitos sobre o apartamento n. 144 e sobre a vaga indeterminada de garagem, estipulando-se pagamento de sinal por meio de cheques à vista e do saldo por meio de financiamento bancário que seria contratado em até 60 dias, de modo que todas as obrigações previstas estariam vencidas em janeiro de 1980.

Nesse contexto, considerando que a última parcela do preço estipulado venceu há mais de cinco anos, a certidão atual do Distribuidor Cível da Comarca do imóvel que explicite a inexistência de ação judicial versando sobre posse ou propriedade contra o adquirente ou cessionários equivale à prova de quitação (item 419.3.1, Cap.XX, das NSCGJ), o que autoriza presumir como outorgado o consentimento do titular registral, com dispensa de sua notificação pessoal (item 419, Cap.XX, das NSCGJ).

Conforme se verifica das manifestações do Oficial, foram apresentadas todas as certidões dos distribuidores, bem como todas as certidões de objeto e pé requeridas ao longo do procedimento. A única exceção é quanto às certidões negativas em nome de Emmanuel Grosberg, a qual, todavia, é desnecessária, pois suficientes as certidões em nome do adquirente e dos cessionários.

Consequentemente, também é desnecessária apresentação das certidões de óbito dos titulares falecidos e das respectivas certidões negativas de testamento, uma vez que destinadas apenas a confirmar a identidade dos herdeiros legais para fim de notificação (item 418.14 das NSCGJ).

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada, determinando o prosseguimento do procedimento extrajudicial com dispensa das exigências pendentes na forma nos itens 419 e 419.3.1, Capítulo XX, das NSCGJSP.

Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

São Paulo, 15 de março de 2022.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 18.03.2022 – SP)