1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Escritura de Doação – Doador representado por procuração – Natureza do ato incompatível com o art. 674 do Código Civil – Dúvida procedente.

Processo Digital nº: 1128111-44.2021.8.26.0100

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 5º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de C. B. S. da C. C., tendo em vista negativa em se proceder ao registro de escritura pública de doação referente aos imóveis de matrículas n. 10.589, 34.514 e 47.940 daquela serventia.

Segundo o Oficial, a negativa foi motivada por violação ao princípio da continuidade, vez que a procuração outorgada pelo proprietário dos imóveis, G. U. M. F., às mandatárias, C. B. S. da C. C. e S. R. de M. F., não autorizou que a transferência fosse realizada diretamente a J. D. C.. Alega, ainda, a cessação do mandato em virtude do falecimento do mandante anteriormente à lavratura da escritura, inexistindo negócio pendente ou perigo na demora para justificar a alegada prorrogação para conclusão do negócio, nos termos do artigo 674 do Código Civil.

Documentos vieram às fls. 06/73.

A parte suscitada manifestou-se às fls. 74/80, aduzindo que o Oficial entendeu, equivocadamente, pela aplicação da antiga súmula 377 do STF e interpretou o instrumento de mandato como substituição fideicomissária, instituto este não mais autorizado pelo atual Código Civil. Afirma que a finalidade da procuração era sacramentar a vontade do proprietário, manifestada em contrato particular de doação (entendido como contrato preliminar) antes de seu falecimento, a qual deve prevalecer.

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 83/85).

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Como bem ressaltado pelo Ministério Público, o Oficial dispõe de independência no exercício de suas atribuições, não ficando sujeito ao acatamento de título lavrado por outro delegatário se os entender contrário à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade.

No caso em tela, o instrumento procuratório de fls. 46/49, outorgado em 03/12/2019 por G. a C. e S., especificou os atos a serem realizados por elas, nos seguintes termos: “outorga os mais amplos, gerais e ilimitados poderes, para o fim especial de receber através de compra e venda, permuta, doação ou qualquer outra forma de aquisição, e, posteriormente doar os imóveis a seguir descritos ou a parte que lhe couber em favor de J. D. C.”.

Note-se, entretanto, que a transferência dos bens imóveis se deu por doação realizada pelo titular dominial, representado por suas procuradoras, diretamente em favor de Jussara (fls. 08/13), o que está em total desacordo com os atos especificados na procuração.

Assim, verifica-se a existência de violação ao princípio da continuidade (artigos 195 e 237 da Lei de Registros Públicos LRP), o qual preza pelo perfeito encadeamento entre as informações inscritas e as que se pretendem inscrever.

Como afirmado na impugnação, não cabe ao Oficial registrador, ao qualificar o título, avaliar outras provas ou interpretar a vontade do contratante. Outrossim, não se podem interpretar os poderes expressos na procuração para aplicá-los de forma distorcida na conclusão de negócio particular desconhecido.

Ademais, a doação não é negócio que se prolongue no tempo, suscetível à interrupção que autorize a aplicação da regra do artigo 674 do Código Civil, de modo que os poderes outorgados pela procuração somente poderiam ser exercidos até a morte do mandante, oportunidade em que o mandato cessou.

Vale consignar que do instrumento de mandato não constou expressamente tratar-se de procuração em causa própria, conforme dispõe o artigo 685 do Código Civil.

Vale notar, ainda, que se doação particular houve, sua eficácia se restringe aos contratantes, pois a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem transferência de direitos reais sobre imóveis.

Como se vê, sob qualquer aspecto, mostra-se acertada a qualificação negativa do título apresentado.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada e, em consequência, mantenho os óbices.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 14 de janeiro de 2022.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 18.01.2022 – SP