CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Título notarial – Compra e venda – Prévia doação de dinheiro ao comprador para a aquisição do imóvel Indisponibilidade sobre os bens do doador – Limite da qualificação registral – Restrição que não diz respeito ao objeto nem aos figurantes da compra e venda e, portanto, não pode impedir o registro – Óbice afastado – Dá-se provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1095017-76.2019.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante MARCOS GONDIM GANANIAN, é apelado 4º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Por maioria de votos, deram provimento à apelação, para que se proceda ao registro da compra e venda, como fora rogado, com determinação, nos termos do voto do Relator. Vencido o Desembargador Magalhães Coelho, que votou pelo improvimento do recurso, mantendo-se a sentença da MM Juíza Corregedora Permanente, e declara voto.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 6 de outubro de 2020.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1095017-76.2019.8.26.0100

Apelante: Marcos Gondim Gananian

Apelado: 4º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 31.212

Registro de Imóveis – Dúvida – Título notarial – Compra e venda – Prévia doação de dinheiro ao comprador para a aquisição do imóvel Indisponibilidade sobre os bens do doador – Limite da qualificação registral – Restrição que não diz respeito ao objeto nem aos figurantes da compra e venda e, portanto, não pode impedir o registro – Óbice afastado – Dá-se provimento.

1. Trata-se de recurso de apelação (fl. 180/198) interposto por Marcos Gondim Gananian contra a r. sentença (fl. 168/171) proferida pelo MM. Juízo Corregedor Permanente do 4º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo, que julgou procedente a dúvida (fl. 01/05) e manteve a recusa de registro stricto sensu de compra e venda (fl. 24/34) na matrícula n. 196.874 daquele cartório (fl. 14/16).

Segundo a sentença, no instrumento levado ao registro constam uma doação de dinheiro (feita por Gabriel Gananian em favor de seu filho Marcos Gondim Gananian) e uma compra e venda de imóvel, com a imposição de cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade (estipulada entre aquele donatário e Guarará Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda.), e esses dois negócios jurídicos são incindíveis, pois o segundo (a compra e venda do imóvel) dependeu exclusivamente do primeiro (a doação do numerário). Os bens do doador, contudo, são indisponíveis por força de ordem jurisdicional proferida em executivo fiscal, e a doação pode implicar dilapidação de seu patrimônio e fraude contra credores, especialmente quando se considera que a decretação de indisponibilidade supõe, nos termos do Cód. Tributário Nacional, art. 185, o esgotamento de diligências em busca de outros bens penhoráveis. Ademais, o registro pretendido pode trazer prejuízo a terceiros de boa fé, em caso de posterior alienação do imóvel. Por tudo isso conclui a sentença , é mister a manutenção do óbice registral.

Em seu recurso, o apelante afirma que indisponibilidade não está ligada ao imóvel comprado nem à pessoa do adquirente ou de algum outro titular de direito real sobre esse bem, de modo que o Oficial extrapolou os limites das suas atribuições e da qualificação registral ao invocar elemento estranho à compra e venda para justificar a devolução do título. Além disso, a indisponibilidade decorrera apenas de medida cautelar fiscal, e não de insolvência do doador, e não se tomou cuidado em verificar se o montante indisponível atingiu todo o montante exigido em execução, nem se prestou atenção ao fato de que a transferência do dinheiro fora autorizada por instituição financeira ciente da ordem de indisponibilidade, o que é indicativo de que sobre tal quantia em verdade não pesava restrição alguma. Em verdade, o Oficial criou, à margem do devido processo legal, uma forma heterodoxa e atípica de exigir créditos tributários daquele que não tem relação com o objeto do negócio imobiliário. Por tudo isso diz o apelante , a sentença tem de ser reformada para que se determine o registro da compra e venda.

A ilustrada Procuradoria Geral de Justiça ofertou parecer pelo não provimento do recurso fl. 223/226.

É o relatório.

2. A r. sentença tem de ser reformada, em que pese às suas bem lançadas razões.

qualificação registral é “o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração” (Ricardo Dip, Registros de Imóveis (Princípios), Descalvado: Primvs, p. 113, n. 361).

O Oficial de Registro de Imóveis chega à formulação desse juízo ao debruçar-se sobre “(i) o título em sentido formal; (ii) o título em sentido material e (iii) os registros que importem concretamente na relação com estes títulos” (Ricardo Dip, loc. cit., p. 163, n. 413). Esse é, portanto, o objeto material da qualificação registral, ou seja, “a parcela da realidade objetiva a que” essa qualificação “se deve dirigir” (op. cit., p. 149, n. 395).

In casu, o título formal (= a escritura pública lavrada copiada fl. 24/34 destes autos; Lei n. 6.015/1973, art. 221, I) contém dois negócios jurídicos: (a) a doação de dinheiro feita por Gabriel a seu filho Marcos (fl. 26), e (b) a compra e venda do imóvel da matrícula n. 196.874, do 4º Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo (fl. 26/29), estipulada entre Marcos e a pessoa jurídica Guarará.

Apenas o segundo desses negócios jurídicos é que constitui, à luz do direito registral, uma causa para a criação, a modificação e a extinção de um status jurídico real-imobiliário (Ricardo Dip, op. cit., p. 164, n. 414). Ou seja, somente a compra e venda é, aqui, um título material e, portanto, é somente ela que pode ser objeto de qualificação registral. Do ponto de vista estritamente formal, o Oficial de Registro de Imóveis não tem, para isso, atribuição ratione materiae (cf. Lei n. 6.015/1973, art. 172, c. c. arts. 167 e 246) para também examinar a doação e dela trazer uma razão que influencie a análise da compra e venda.

Limitando-se assim o exame à compra e venda, é preciso considerar que a esta não se liga indisponibilidade alguma (Lei n. 6.015/1973, art. 247; Corregedoria Nacional de Justiça, Provimento n. 39, 25 de julho de 2014, art. 14, caput, verbis “bens imóveis ou direitos a eles relativos”, g. n.; Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais, Tomo II, Capítulo XX, item 44.1, verbis “a propriedade ou outro direito real sobre imóvel”). Como revelam os documentos copiados a fl. 17/23 (e não há sequer discussão sobre isso), a restrição aduzida como razão para denegarse o registro diz respeito somente à pessoa e aos bens do doador Gabriel Gananian, mas não o comprador Marcos, nem à vendedora Guarará. Logo, por força de indisponibilidade realmente não existe fundamento para denegar-se o pretendido registro stricto sensu (Lei n. 6.015/1973, art. 167, I, 29).

Não entra em linha de conta saber se qual o sentido e o alcance da restrição lançada sobre os bens do doador Gabriel Gananian (isto é, se advém da incidência do Cód. Tributário Nacional, art. 185, ou de medida cautelar fiscal, e em qual medida, dada alguma dessas causas, atingiu ou não a doação feita). Repita-se: essa questão não diz respeito nem ao título material (a compra e venda) nem abarca alguma inscrição pertinente a Marcos e a Guarará (os figurantes da compra e venda) e, pois, não influencia o juízo sobre o registro pretendido.

Também não cabe entrar na investigação de fraude a credores ou fraude à execução, ainda que pudessem decorrer diretamente da compra e venda, visto que essa matéria, como se usa dizer, é de cariz jurisdicional, e tampouco se insere no âmbito da qualificação registral.

Nesse sentido, já decidiu este Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura de compra e venda. CND Federal. Exigência afastada, conforme atual orientação do CNJ, do CSM e nos termos das NSCGJ. Arrolamento de bens em processo administrativo fiscal. Receita Federal do Brasil. Art. 64-A da Lei n. 9.532/97 e art. 3° da Instrução Normativa/RFB 1.565/2015. Suposta ocorrência de fraude que poderia levar à indisponibilidade do bem. Ausência de determinação legal ou administrativa de inalienabilidade. Limites da qualificação registral. Dúvida improcedente. Recurso provido. (Apelação Cível 1002176-74.2018.8.26.0366, Rel. Des. Pinheiro Franco, j. 23.8.2019, DJe 17.09.2019, cad. adm., p. 38). Consta do voto vencedor: “O direito de propriedade se enquadra no rol daqueles fundamentais. Não se pode criar uma nova hipótese de indisponibilidade de bens administrativa não prevista em lei, e sem decisão judicial, feita pelo Oficial de Registro de Imóveis, com base em anteriores alienações feitas pelas mesmas partes, por se entender que, em tese, poderia haver alguma espécie de simulação ou fraude”.

Entretanto, convém que se dê notícia do registro pretendido e de seu título ao juízo da execução, para que, lá, proveja o que for de direito, se houver providência cabível. Portanto, cumprirá ao MM. Juízo Corregedor Permanente prolator da sentença, depois da preclusão do julgamento desta ação de dúvida, fazer expedir ofício ao MM. Juízo da 6ª Vara das Execuções Fiscais Federais de São Paulo (autos 0022227-81.2016.4.03.6183), com cópia deste acórdão e de fl. 17/34.

3. À vista do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação, para que se proceda ao registro da compra e venda, como fora rogado, com determinação.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator.

VOTO Nº 43.186 – Conselho Superior da Magistratura

Apelação Cível nº 1095017-76.2019.8.26.0100 Comarca de São Paulo

Apelante: Marcos Gondim Gananian

Apelado: 4º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

Vistos, etc.

Relatório já nos autos.

Trata-se de recurso de apelação da sentença proferida pelo MM Juízo Corregedor Permanente do 4º Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Capital que, acolhendo a dúvida, manteve a recusa de registro de compra e venda

Sustenta o recorrente que, avaliando elemento estranho ao negócio da compra e venda, como o é a doação de numerário para a aquisição do imóvel, o registrador extrapolou os limites da qualificação do título. Insiste o apelante que a declaração de indisponibilidade dos bens do doador do dinheiro não produz efeitos sobre a compra e venda em que apenas o donatário é parte. Além disso, no processo em que o doador é parte, não há indícios de insolvência do devedor e nem que a constrição tenha atingido o valor doado. Dessa forma, recusa vem fundada em interpretação não autorizada das Normas da Corregedoria.

Sem embargo dos fundamentos dos votos vencedores, no meu entender, nego provimento ao recurso.

O recorrente, Marcos Gondim Gananian, apresentou ao 4ª Cartório de Registro de Imóveis a escritura, lavrada no 14º Tabelião de Notas da Capital, pelo qual a empresa Guarará Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda. transmite a ele, recorrente, por venda, o imóvel objeto da matrícula 196.874. Pelo negócio foi pago o preço de R$ 4.000.000,00, valor que o comprador recebera em doação do pai, Gabriel Gananian, que também impôs cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade sobre o imóvel, frutos e rendimentos.

O ingresso da escritura no fólio real foi negado porque os bens do doador, Gabriel Gananian, foram declarados indisponíveis por decisão proferida nos autos 0022227-81.2016.403.6182, da 6 ª de Execuções Fiscais Federais de São Paulo.

Feita essa breve exposição, é inegável que o ponto de partida para toda e qualquer análise é a decisão de indisponibilidade dos bens. São os efeitos dessa decisão que vão determinar a possibilidade ou não de registro do título no fólio real.

A indisponibilidade foi decretada em processo acautelatório ajuizado pela Fazenda Nacional.

Note-se dos documentos de fls. 69 a 166, que o Juízo da Execução reconheceu que o doador, sócio de empresa devedora de tributos, realizou manobras para blindar seus bens e colocá-los a salvo da execução (fl. 73) e, por isso (mas não apenas por esse motivo), foi declarada a indisponibilidade de TODOS os bens dos devedores (o doador e a empresa da qual ele é sócio).

A Lei 8.397/92 elenca as hipóteses de cabimento da medida, que pode ser determinada MESMO SEM PRÉVIO AJUIZAMENTO DE PROCESSO DE EXECUÇÃO:

Art. 1º O procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito, inclusive no curso da execução judicial da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias.

Parágrafo único. O requerimento da medida cautelar, na hipótese dos incisos V, alínea “b” , e VII, do art. 2º, independe da prévia constituição do crédito tributário.

Art. 2º A medida cautelar fiscal poderá ser requerida contra o sujeito passivo de crédito tributário ou não tributário, quando o devedor:

I – sem domicílio certo, intenta ausentar-se ou alienar bens que possui ou deixa de pagar a obrigação no prazo fixado;

II – tendo domicílio certo, ausenta-se ou tenta se ausentar, visando a elidir o adimplemento da obrigação;

III – caindo em insolvência, aliena ou tenta alienar bens;

IV – contrai ou tenta contrair dívidas que comprometam a liquidez do seu patrimônio;

V – notificado pela Fazenda Pública para que proceda ao recolhimento do crédito fiscal;

a) deixa de pagá-lo no prazo legal, salvo se suspensa sua exigibilidade;

b) põe ou tenta por seus bens em nome de terceiros;

VI – possui débitos, inscritos ou não em Dívida Ativa, que somados ultrapasse trinta por cento do seu patrimônio conhecido;

VII – aliena bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão Fazenda Pública competente, quando exigível em virtude de lei;

VIII – tem sua inscrição no cadastro de contribuintes declarada inapta, pelo órgão fazendário;

IX – pratica outros atos que dificultem ou impeçam a satisfação do crédito.

A transcrição das situações que deflagram o direito do credor pleitear medidas acautelatórias são, simultaneamente, o limite do poder do Juiz determiná-las.

Com isso se quer dizer que a decretação de indisponibilidade, especialmente quando reexaminada em grau de recurso, como no caso, revela não apenas que o pedido da União foi acolhido, como FOI RECONHECIDO o risco de dispersão do patrimônio dos devedores em detrimento do erário público.

Nem se diga que valores em depósito em contas da pessoa física não são atingidos pela medida. Não é verdade, já que a lei é expressa:

Art. 4º A decretação da medida cautelar fiscal produzirá, de imediato, a indisponibilidade dos bens do requerido, até o limite da satisfação da obrigação.

§ 1° Na hipótese de pessoa jurídica, a indisponibilidade recairá somente sobre os bens do ativo permanente, podendo, ainda, ser estendida aos bens do acionista controlador e aos dos que em razão do contrato social ou estatuto tenham poderes para fazer a empresa cumprir suas obrigações fiscais, ao tempo:

a) do fato gerador, nos casos de lançamento de ofício;

b) do inadimplemento da obrigação fiscal, nos demais casos.

§ 2° A indisponibilidade patrimonial poderá ser estendida em relação aos bens adquiridos a qualquer título do requerido ou daqueles que estejam ou tenham estado na função de administrador (§ 1°), desde que seja capaz de frustrar a pretensão da Fazenda Pública.

§ 3° Decretada a medida cautelar fiscal, será comunicada imediatamente ao registro público de imóveis, ao Banco Central do Brasil, à Comissão de Valores Mobiliários e às demais repartições que processem registros de transferência de bens, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a constrição judicial. (sem destaques no original).

Ressalte-se ainda que a lei põe a salvo da indisponibilidade apenas bens do ativo permanente da pessoa jurídica, o que não é o caso do doador.

Portanto, com relação ao doador do numerário, três pontos devem ser assentados: 1) a indisponibilidade de seus bens é inegável; 3) não cabe ao registrador investigar se há autorização do levantamento do numerário a ser doado; 3) não pode o registrador interpretar a indisponibilidade para excluir dinheiro e restringir a medida apenas a bens imóveis.

O último desses três pontos merece uma explicação adicional: além de não existir fundamento legal para exclusão de valores em dinheiro do rol dos bens declarados indisponíveis, não é permitido aos registradores interpretar decisão judicial, para esclarecer-lhe o âmbito de incidência ou completá-la nas descrições faltantes. Nesse sentido: Apelação Cível nº 1001652-68.2019.8.26.0390, CSM, rel. Desembargador Ricardo Anafe – j. 1.9.20; Apelação Cível nº 1004567-11.2018.8.26.0363, CSM, Desembargador Ricardo Anafe – j. 13.8.20.

Uma vez firmada a indisponibilidade do patrimônio do doador, que, por si, macula a doação, resta avaliar se esse vício se propaga para o negócio seguinte, que é a compra e venda do bem imóvel, e o contamina.

No caso dos autos, não é possível tratar a doação e a compra venda como negócios jurídicos dissociados.

De imediato basta observar que não haveria compra e venda se o comprador não tivesse recebido em doação o numerário necessário ao pagamento do preço.

Além disso, jamais se pode perder de vista que a celebração do contrato de doação, tal como feita (com imposição de cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade), é prova inequívoca da intenção do doador de projetar na aquisição do bem imóvel sua vontade, de forma a criar uma proteção adicional para o seu próprio patrimônio, assim como para o patrimônio do filho.

Essa intenção foi expressamente declarada:

“(…) por esta escritura declara DOAR, como de fato DOADO TEM, nesta data, ao outorgado comprador, seu filho, MARCOS GONDIM GANANIAM, a quantia de R$ 4.000.000,00 (QUATRO MILHÕES DE REAIS), quantia essa destinada à aquisição do imóvel descrito no Capítulo I desta, ao que tudo se reportará e cuja aquisição deverá ficar gravada com as cláusulas de incomunicabilidade impenhorabilidadeextensiva aos frutos e rendimentos. E que justifica a imposição dos vínculos (cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade), por ser a vontade expressa da mesma de ver o seu patrimônio pessoal, amealhando com grande sacrifício durante toda sua vida, ser preservado o máximo possível, (…) e também pelo fato de ter como objetivo evitar qualquer oneração ou constrição do bem a ser recebido, advinda de dívidas, garantias, débitos e encargos outros (…) (fls. 26).

Para que não restem dúvidas, a definição da causa do negócio deve ser destacada: (…) justifica a imposição dos vínculos (cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade), por ser a vontade expressa (…) de ver o seu patrimônio pessoal, amealhando com grande sacrifício durante toda sua vida, ser preservado o máximo possível, (…) e também pelo fato de ter como objetivo evitar qualquer oneração ou constrição do bem a ser recebido, advinda de dívidas, garantias, débitos e encargos outros.

Essa causa vicia a doação e, como a compra e venda só aconteceu porque a doação se fez como se fez, há irregularidade insanável que não pode ser afastada. E essa análise deve ser feita quando o título é apresentado a registro.

Observe-se que a doutrina civilista, há muito sedimentada, identifica como causa da doação apenas a intenção do doador de reduzir seu patrimônio, aumentando, na mesma proporção o do donatário[1]. A causa na compra e venda, para o comprador, é a aquisição da propriedade[2].

No caso dos autos, a causa DECLARADA tanto da doação quanto a da compra e venda é blindar o patrimônio de doador e donatário contra “qualquer oneração ou constrição”.

Essa causa macula ambos os negócios, porque desvirtua a causa típica de ambos os contratos.

Assim, no meu entender, o óbice registral deve ser mantido: o registrador deve indicar o óbice legal e insuperável à inscrição.

É bem verdade que se poderia objetar que eventual invalidade da transmissão deve ser objeto de ação de terceiro prejudicado.

Esse argumento, porém, não se sustentaria.

Como se sabe, o poder de contratar não é tão amplo a ponto de afastar a aplicação de leis de proteção ao patrimônio público e ao bem comum.

(…) Aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. (…)

(…)

Considerando o Código que o regime da livre iniciativa, dominante na economia do País, assenta em termos do direito do contrato, na liberdade de contratar, enuncia regra contida no art. 421, da subordinação dela à sua função social, com prevalência dos princípios condizentes com a ordem pública, e atendando a que o contrato não deve atentar contra o conceito da justiça comutativa. (…)

O legislador atentou aqui para a acepção mais moderna da função do contrato, que não é a de exclusivamente atender aos interesses das partes contratante, como se ele tivesse existência autônoma, fora do mundo que o cerca. Hoje o contrato é visto como parte de uma realidade maior e como um dos fatores de alteração da realidade social. Essa constatação tem como consequência, por exemplo, possibilitar que terceiros que não são propriamente partes do contrato possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente atingidos.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro, Forense, 2005, fls. 12-13).

Isso significa que não se pode criar, para o Registro de Imóveis, a obrigação de ingresso de documento no fólio real quando se sabe previamente que o documento, na origem, é contrário às normas jurídicas.

Não há convivência logicamente possível entre o dever de registrar um documento e a proibição de registrar esse mesmo documento, porque contrário à lei.

Mesmo que se garantam os direitos de terceiros, comunicando-se ao Juízo da Execução a doação e a compra do imóvel, NÃO SE AFASTA o dever do registrador de analisar a legalidade do ato.

Assim ocorre porque o registro público é regido, primordialmente, pelos princípios da publicidade[3] e da fé pública.

Para além das implicações práticas que os princípios têm, ambos são expressões do dever da ordem jurídica garantir que as certidões sejam traduções fidedignas do que ocorre no mundo real e, porque assim o são, têm fé pública[4].

De pouco vale um terceiro, fiando-se na averbação da compra e venda que ora se discute, ver-se munido de mais instrumentos de defesa, se eventual transmissão que venha a convencionar com o donatário tenha algum risco de ser desfeita.

Essa proteção incompleta de terceiros é também demérito da função da declaração de indisponibilidade, esvaziando-a por completo.

Nesse passo há de se distinguir duas situações.

O primeiro caso é a situação em que a fraude é desconhecida ou insuspeita ao registrador. Mesmo que um terceiro venha a ser eventualmente prejudicado, todos os atos registrários foram praticados de modo a nem se cogitar da hipótese de discussão da validade do negócio.

Já outra é a segunda situação, como no caso dos autos, em que o registrador suspeita de violação à ordem de indisponibilidade e antevê o risco de desfazimento de futuro negócio. Seja em razão da suspeita, seja em razão do risco, a averbação do título não é compatível com a fé pública, se nem o próprio registrador apõe seu voto de confiança.

Daí o porquê, pelo meu voto, nego provimento ao recurso, mantendo-se a sentença da MM Juíza Corregedora Permanente.

MAGALHÃES COELHO

Presidente da Seção de Direito Público

Notas:

[1] Sobre causa donandi: MIRANDA, Pontes de, Tratado de Direito Privado, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1971, Tomo III, p. 84, 85. Sobre doação: MIRANDA, Pontes de, op. cit., Tomo XLVI, p. 195.

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 2005, vol I, p. 504, 505.

[3] A publicidade registraria está ordenada à res publica. Este é o mais relevante sentido do princípio da publicidade nos registros, o de sua ordenação ao bem comum, que eles tratam de satisfazer por meio da segurança jurídica (é dizer que esta última, a segurança jurídica, fim do registro, é, no entanto, sob certo aspecto, um meio para a consecução do bem comum). Assim, “tornar pública” uma inscrição é não só dar-lhe a possibilidade de ser conhecida de todos, mas, principalmente, de, com isto (…), realizar a res publica (DIP, Ricardo, Registro de Imóveis (Princípios), Descalvado, Editora PrimVs, 2017, p. 110).

[4] Não se poderia pensar numa transferência de algo que não é próprio do Estado, ou seja, que não se abarca por sua potestas. (…) Resta, portanto ao poder político a dação de um predicado ao registrador: é o predicado da fé pública, vale dizer o atributo de que de um particular emerja autenticidade ou plenitude de prova que viabilize certeza secundum legem relativa a determinados documentos e a correspondentes stati iuridici (DIP, Ricardo, op. cit., p. 57).

(DJe de 13.11.2020 – SP)