CSM|SP: Recurso provido – Registro de Imóveis – Dúvida – Apelação – Escritura de compra e venda de lote – Condomínio voluntário simples – Inexistência de elemento registrário a indicar descumprimento de normas urbanísticas e do projeto de loteamento – Inexistência de venda de fração ideal ou formação sucessiva de condomínio voluntário – Aquisição direta ao loteador da integralidade do imóvel por dois compradores – Descumprimento futuro de restrição convencional ou legal deve ser impugnada pelos demais proprietários do loteamento, pelo loteador ou pelo Poder Público – Desdobro não autorizado – Incidência da vedação do item 166 do Capítulo XX das NSCGJ aos casos em que haja elemento registrário indicando burla às normas urbanísticas – Ato futuro ilegal deve ter seu ingresso no registro impedido – Impossibilidade de presunção da má-fé dos adquirentes – Dúvida improcedente – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1021487-53.2019.8.26.0451, da Comarca de Piracicaba, em que são apelantes PAULO CESAR DE MATOS e ANDRE ROBERTO CORADINI, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PIRACICABA.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida suscitada, determinando o registro do título, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 1º de setembro de 2020.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1021487-53.2019.8.26.0451

Apelantes: Paulo Cesar de Matos e Andre Roberto Coradini

Apelado: 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas

VOTO Nº 31.187

Recurso provido – Registro de Imóveis – Dúvida – Apelação – Escritura de compra e venda de lote – Condomínio voluntário simples – Inexistência de elemento registrário a indicar descumprimento de normas urbanísticas e do projeto de loteamento – Inexistência de venda de fração ideal ou formação sucessiva de condomínio voluntário – Aquisição direta ao loteador da integralidade do imóvel por dois compradores – Descumprimento futuro de restrição convencional ou legal deve ser impugnada pelos demais proprietários do loteamento, pelo loteador ou pelo Poder Público – Desdobro não autorizado – Incidência da vedação do item 166 do Capítulo XX das NSCGJ aos casos em que haja elemento registrário indicando burla às normas urbanísticas – Ato futuro ilegal deve ter seu ingresso no registro impedido – Impossibilidade de presunção da má-fé dos adquirentes – Dúvida improcedente – Recurso provido.

1. Trata-se de apelação interposta por Paulo César de Matos e André Roberto Coradini de Jesus visando a reforma da sentença de fl. 100/102, que julgou procedente dúvida suscitada pelo 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Piracicaba, mantendo a recusa de ingresso na matrícula de escritura pública de compra e venda de imóvel em condomínio voluntário simples pelos apelantes.

A Nota de Devolução do título apresentou os seguintes fundamentos (fl. 26/27):

“Formação de condomínio ordinário entre pessoas sem vínculo em lote oriundo de loteamento indícios de burla ao plano inicial do loteamento.

A formação de condomínio ordinário entre pessoas que não tem entre si qualquer vínculo, é elemento indiciário da provável alteração do plano inicial do loteamento, mediante futuro desdobro. Tal fato impede a efetivação do registro pretendido. Caso haja vínculo entre os adquirentes, o título (escritura, instrumento particular), deverá ser rerratificado para que dele conste tal informação.

Fundamento normativo: item 171 do Cap. XX do Prov. 58/89 da E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

Fundamento jurisprudencial: decidido pelo C. Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, nas Apelações Cíveis 1002675-90.2015.8.26.0066 e 1000352-08.2018.8.26.0584”.

O recurso sustenta, em resumo, ocorrência de cerceamento de defesa, por conta do indeferimento do pedido de manifestação do tabelião que lavrou a escritura de compra e venda, além da renovação de manifestação do registrador, sem possibilidade de tréplica.

No mérito, afirma que a decisão torna ineficaz a previsão legal do condomínio civil simples, não havendo qualquer menção de desdobro na escritura pública apresentada a registro, não cabendo ao registrador inferir a intenção futura das partes para recusar o ingresso. Afirma a possibilidade de possível futuro desdobro, autorizado pela Municipalidade, mesmo que inexistentes vínculos entre os interessados. Da mesma forma, afirma a possibilidade de afastamento futuro das restrições urbanísticas impostas pelo loteador. Alega que a dimensão diminuta do imóvel e a existência de restrição urbanística no registro do loteamento impede o desdobro, afastando-se a desconfiança do registrador. Ainda, que realização de compra e venda, não há necessidade de indicação de vínculo entre compradores, que podem ser simples investidores e que o impedimento de ingresso deve ocorrer por conto de eventual pedido de registro de desdobro. Sugere, por fim, alteração das NSCGJ, alterando-se a redação do item 166 do Capítulo XX (fl. 108/138).

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl. 160/162).

É o relatório.

2. Trata-se de recurso de apelação interposto por Paulo César de Matos e André Roberto Coradini de Jesus, pretendendo afastar o óbice apontado pelo 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Piracicaba, registrando-se a escritura de compra e venda de bem imóvel em favor dos apelantes, estabelecendo-se condomínio civil simples entre os mesmos.

A sentença de primeiro grau reconheceu a existência de risco de ocorrência de fraude à legislação urbanística e ao projeto inicial do loteamento aprovado, por conta da possibilidade de desmembramento irregular, o que se conclui pela aquisição em condomínio civil simples de lote não edificado por pessoas sem comprovação de qualquer vínculo.

Em primeiro plano, afasto a preliminar de cerceamento de defesa.

Procedimento de dúvida não é processo judicial ou administrativo, tratando-se de procedimento tipicamente administrativo, de natureza especial e voltado exclusivamente à apreciação da legalidade da qualificação negativa como ato próprio do registrador. Não há lide ou coisa julgada material, em nada se impedindo a reapresentação do título atendidas as exigências, afastando-se a aplicação ao mesmo de institutos típicos de processos judiciais e administrativos, como as regras constitucionais e legais atinentes ao direito de defesa.

A cognição é limitada e não sujeita à imutabilidade natural às decisões judiciais, estas sim submetidas à aplicação necessária dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Tanto é assim que o registrador, no procedimento de dúvida, não é considerado parte interessada na decisão do procedimento, nem tendo interesse recursal, mas mero remetente da impugnação às razões de recusa apresentadas pelo interessado no ato de registro, com interesse limitado à justificação administrativa de sua decisão de qualificação negativa.

Não há, portanto, que se falar em contraditório ou garantia à ampla defesa, não havendo qualquer mácula no procedimento ou na sentença por conta do indeferimento do pedido de manifestação do tabelião que lavrou a escritura com registro recusado, ou a renovação da manifestação do registrador sem que se ouvisse, por força do contraditório, o interessado na suscitação da dúvida.

Fica, assim, afastada a preliminar suscitada no recurso.

No mérito, o recurso comporta provimento.

Foi prenotado no registro de imóveis escritura pública de compra e venda de lote não edificado, tendo por objeto o imóvel objeto da matrícula nº 108.938 do 2º Registro de Imóveis de Piracicaba.

Do negócio jurídico observa-se a condição de compradores dos recorrentes e suas esposas, com divisão igualitária das despesas e, consequentemente, da propriedade, não se inferindo, de qualquer maneira, divisão certa das partes ideais sobre o bem imóvel. Este, por força da escritura, é alienado em sua totalidade pelo loteador a dois compradores em proporção ideal idêntica, mas sem fixação, de qualquer foram, da parte do imóvel que a cada um caberá. Declaram no negócio, ainda, que têm ciência das restrições convencionais incidentes sobre o bem, determinadas pelo loteador e objeto de registro próprio.

Ou seja, a descrição do negócio indica a formação de um condomínio voluntário simples, sem que haja identificação de área certa a cada um dos adquirentes, com alienação e aquisição da propriedade em seu todo em negócio único pelo próprio loteador. As circunstâncias não se identificam com a formação de condomínio voluntário por alienações sucessivas da metade ideal, seja por parte do loteador, seja por parte de proprietário sucessivo, diferenciando-se aqui a formação originária do condomínio voluntário daquela decorrente de alienação parcial sucessiva.

O Oficial de Registro fundou sua dúvida na incidência da regra do item 166, do Capítulo XX das NSCGJ:

166. É vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com locação, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra.

A vedação não se aplica à hipótese de sucessão causa mortis.

A distinção fática do caso impede a incidência da vedação administrativa.

A aplicação da limitação do item 166 das NSCGJ exige que se vislumbre, no negócio jurídico a ser registrado, elementos internos e atuais a indicar que a alienação e formação do condomínio decorre de um parcelamento irregular ou fraudulento, o que se observa em casos da propriedade ser alienada em frações e de forma sucessiva. Isto não ocorre em casos como o presente, nos quais a totalidade da propriedade é adquirida do vendedor, que é o próprio loteador, por duas pessoas distintas, em condomínio voluntário, sem descrição de fração certa no terreno para cada um, mas apenas proporcionalidade no direito adquirido.

A existência de futuro desdobro, se houver, ou divisão de fato do imóvel, não pode, nestes casos, impedir a formação inicial do condomínio voluntário. É que, em havendo desdobro ilegal ou em desacordo com as restrições convencionais aplicadas ao imóvel, caberia ao

Poder Público, aos demais proprietários do loteamento ou mesmo ao loteador, impugnar e impedir sua realização.

E, ainda, caberia ao Oficial de Registro de Imóveis recusar o ingresso de eventual futuro título característico do desdobro ilegal, cumprindo-se ao princípio da legalidade e a estrita observância das restrições convencionais impostas ao bem.

O que não se admite é, de forma antecipada e indicando presunção da má-fé, impedir a aquisição integral da propriedade por dois sujeitos na forma de condomínio voluntário simples, diretamente ao loteador, ante a ausência de elementos registrários aptos à conclusão pela existência de venda fracionada do lote.

E, não havendo venda de frações ideais do lote ou formação sucessiva de condomínio voluntário simples, mas a aquisição originária da totalidade do bem por dois compradores, sem especialização das frações adquiridas, não incide, concretamente, a vedação administrativa do item 166, do Capítulo XX das NSCGJ.

Fica, assim, afastado o óbice ao registro, julgando-se improcedente a dúvida suscitada.

3. Por todo o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida suscitada, determinando o registro do título.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator.

(DJe de 21.09.2020 – SP)