CSM|SP: Usucapião Extrajudicial – Requerente que obteve a posse inicial do bem por força de usufruto registrado na matrícula imobiliária – Casamento futuro previsto como condição resolutiva do direito real limitado – Pretensão de reconhecimento pelo Oficial da modificação da natureza da posse exercida por força da constituição de união estável, dando-lhe eficácia idêntica ao casamento previsto como condição resolutiva – Impossibilidade – Exercício de direito contrário ao direito registrado que não pode ser apreciado pelo Oficial do Registro Imobiliário – Necessidade de cancelamento prévio no registro do usufruto na matrícula – Registrador que não tem atribuição de valorar juridicamente fato extintivo de direito real, mas apenas a simples posse ad usucapionem – Efeitos registrários do reconhecimento da união estável com os mesmos efeitos do casamento depende de decisão judicial, impossibilitando o reconhecimento extrajudicial da usucapião – Recusa mantida – Recurso não provido.

 

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1104096-79.2019.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante LEONOR SELVA BARBOSA, é apelado 18º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 5 de junho de 2020.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1104096-79.2019.8.26.0100

Apelante: Leonor Selva Barbosa

Apelado: 18º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo

VOTO Nº 31.124

Usucapião Extrajudicial – Requerente que obteve a posse inicial do bem por força de usufruto registrado na matrícula imobiliária – Casamento futuro previsto como condição resolutiva do direito real limitado – Pretensão de reconhecimento pelo Oficial da modificação da natureza da posse exercida por força da constituição de união estável, dando-lhe eficácia idêntica ao casamento previsto como condição resolutiva – Impossibilidade – Exercício de direito contrário ao direito registrado que não pode ser apreciado pelo Oficial do Registro Imobiliário – Necessidade de cancelamento prévio no registro do usufruto na matrícula – Registrador que não tem atribuição de valorar juridicamente fato extintivo de direito real, mas apenas a simples posse ad usucapionem – Efeitos registrários do reconhecimento da união estável com os mesmos efeitos do casamento depende de decisão judicial, impossibilitando o reconhecimento extrajudicial da usucapião – Recusa mantida – Recurso não provido.

1. Trata-se de recurso de apelação interposto por Leonor Selva Barbosa, em procedimento de dúvida suscitada pelo 18º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, visando a reforma da sentença de fl. 702/706, que manteve recusa de registro de usucapião extrajudicial do imóvel objeto da matrícula nº 66.181.

A nota de devolução do 18º Oficial de Registro de Imóveis da Capital contém a seguinte motivação para a recusa ao procedimento:

“Conforme R.3/66.181, deste Serviço Registral, nos termos da Carta de Sentença, expedida em 26/04/1983 pelo 3º Ofício Cível, do Fórum Distrital de Pinheiros, desta Capital, dos autos de Separação Consensual (proc. 672/82), foi atribuído a requerente, LEONOR SELVA BARBOSA, o USUFRUTO do imóvel usucapiendo, constando dentre outras condições, que, se a mesma viesse a se casar novamente, o usufruto ficaria automaticamente extinto, devendo ela restituir o imóvel ao nu-proprietário.

A requerente declarou viver em união estável, a partir de abril de 1995, declarando ser de conhecimento público e família essa união, inclusive do nu-proprietário, Antonio Fernando Barbosa, que deveria ter exercido o seu direito de reintegrar-se na posse do imóvel, porém, quedou-se silente.

Tudo indica, todavia, que a requerente permaneceu na posse do imóvel como usufrutuária. O usufruto permaneceu registrado na matrícula do imóvel e ainda não foi cancelado.

Enquanto não cancelado, o registro produz todos os efeitos legais (art. 252 da Lei de Registros Públicos). Assim, a posse da requerida seria, no mínimo, clandestina.

Em razão do acima exposto, a requerente nunca teve posse justa, ficando impossibilitada a aquisição originária ora requerida. Assim, em observância ao § 8º, do art. 216-A, da Lei Federal nº 6.015/73, fica indeferido o requerimento de reconhecimento da usucapião.” (fl. 642/644).

O recurso sustenta, em resumo, a necessidade de reforma da sentença, pois não considerou a união estável como tendo a mesma eficácia do casamento para fins de extinção do usufruto, alternando a natureza da posse. Afirma haver suficiente publicidade da união estável pela homologação judicial de acordo entre a apelante e Luiz Camano, reconhecendo a existência da união estável desde abril de 1995 (Processo nº 1005359-51.2018.8.26.0011 1ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional XI Pinheiros). Ainda, que há provas nos autos a indicar que o nú-proprietário tinha ciência da existência da união estável, observando-se o efeito da transmudação da posse direta do usufruto pela posse com ânimo de proprietário. Afirma a impossibilidade de se atribuir efeito restrito à união estável em relação ao casamento, entendendo pela mesma eficácia jurídica da união estável para fins de extinção do usufruto (fl. 725/737).

A Procuradoria Geral de Justiça opina pelo não provimento do recurso (fl. 760/764).

É o relatório.

2. Conheço da apelação, presentes seus requisitos de admissibilidade.

A dúvida foi suscitada em procedimento de usucapião extrajudicial, com fundamento no art. 17, § 5º do Provimento CNJ nº 65/2017:

Art. 17. Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.

§1º No caso de ausência ou insuficiência dos documentos de que trata o inciso IV do caput do art. 216-A da LRP, a posse e os demais dados necessários poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante o oficial de registro do imóvel, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5º do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383, todos do CPC.

§ 2º Se, ao final das diligências, ainda persistirem dúvidas, imprecisões ou incertezas, bem como a ausência ou insuficiência de documentos, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido mediante nota de devolução fundamentada.

§ 3º a rejeição do pedido extrajudicial não impedirá o ajuizamento de ação de usucapião no foro competente.

§ 4º Com a rejeição do pedido extrajudicial e a devolução de nota fundamentada, cessarão os efeitos da prenotação e da preferência dos direitos reais determinada pela prioridade, salvo suscitação de dúvida.

§ 5º A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP.”

A questão posta no recurso, limitada em relação à dúvida inicial pela devolutividade recursal, diz respeito ao reconhecimento administrativo da eficácia da união estável da apelante, a partir de homologação judicial de acordo declaratório de união estável entre Leonor Selva Barbosa e Luiz Camano, como causa suficiente para a extinção do usufruto do bem imóvel atribuído à mesma, havendo previsão, na instituição do usufruto, do novo casamento da usufrutuária como condição resolutiva do direito real limitado.

Consta do R.3 da matrícula nº 66.181, do 18º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, a instituição de usufruto com condição resolutiva em favor da apelante:

R.3 em 05 de janeiro de 1984.

Conforme CARTA DE SENTENÇA, referida no R.2, se verifica que nos termos das sentença de 05 de janeiro de 1.983, transitada em julgado aos 31 de janeiro de 1.983, o usufruto do imóvel, avaliado em Cr$ 8.436.871,00, foi atribuído à separanda, LEONOR SELVA BARBOSA, já qualificada, usufruto esse que ficará sujeito a duas condições resolutivas, a saber: 1º) A usufrutuária se obriga a residir no imóvel com seus filhos, até que os mesmos atinjam 21 anos de idade, para que não sintam diminuição no seu padrão de vida. Após ambos os filhos atingirem 21 anos de idade, a casa poderá ser eventualmente alugada a critério da usufrutuária, passando a mesma a receber a renda em seu exclusivo benefício. Se isso vier a acontecer a responsabilidade relativa ao pagamento dos impostos e taxas municipais passará a ser unicamente da usufrutuária e não mais ao nu-proprietário; 2º) caso a usufrutuária venha a se casar novamente, ficará automaticamente extinto o usufruto, devendo a mesma restituir o imóvel ao nuproprietário e ficando desde já autorizado o Oficial do Cartório de Registro de Imóveis competente, a proceder o cancelamento do usufruto, mediante a simples apresentação da carta de sentença acompanhada da certidão do novo casamento.”

A pretensão da recorrente é pelo reconhecimento administrativo da suficiência da união estável para fins de extinguir o usufruto registrado, como efeito idêntico ao casamento civil, além da modificação, por força daquela extinção, da natureza da posse exercida sobre o bem, passando a ter efeitos para fins de aquisição da propriedade pela usucapião.

A pretensão não prospera, ao menos em sede administrativa.

Pretende a apelante que se reconheça, em procedimento de dúvida, a eficácia da união estável declarada pela interessada, homologada judicialmente, para extinguir os efeitos do usufruto registrado na matrícula imobiliária.

Para antes de se questionar a eventual equivalência da união estável e do casamento, para fins de ocorrência da condição resolutiva imposta ao usufruto, há de se reconhecer a limitação da esfera administrativa para a apreciação da questão.

É que, em termos finais, a pretensão contida no pedido da usucapião extrajudicial é de reconhecimento da extinção dos efeitos de um registro constante da matrícula que, de forma alguma, foi modificado, cancelado ou anulado. Ou seja, pretende que o Oficial registrador, em procedimento especial de reconhecimento da usucapião extrajudicial, venha a derrubar a eficácia do registro como ato de formação do direito real sobre coisa alheia, no caso, o usufruto.

E isto não se admite, posto que o registro mantém todos os seus efeitos até que haja sua modificação, seu cancelamento ou anulação, nos termos dos arts. 1.245, § 2º c.c. art. 1.227, ambos do Código Civil.

Sem que haja prévio cancelamento do registro do usufruto, reconhecendo-se a ocorrência da condição resolutiva constante do registro, não há como se colher efeitos formais de uma posse que se exerceria a partir da inexistência do direito real limitado. Ou seja, enquanto permanecer registrado o usufruto do bem imóvel em favor da apelante, não pode a mesma vindicar um efeito possessório que contrarie a natureza do direito registrado e que, até segunda ordem, legitima sua própria posse, isto em decorrência do efeito previsto no art. 1.203 do Código Civil, a estabelecer a manutenção do caráter da posse inicial até que haja prova em contrário.

E, no caso, eventual prova em contrário, como pretende a apelante, decorrente do reconhecimento de um fato jurídico que não consta do registro imobiliário, impedindo-se o reconhecimento, de plano e na esfera administrativa, de seus efeitos quanto à posse dele decorrente. Em outros termos, tendo a apelante iniciado sua posse como usufrutuária e havendo condição resolutiva expressa no negócio jurídico que estabeleceu o direito real limitado, permanece aquela posse com as mesmas características até que haja modificação do registro que lhe deu causa ou, alternativamente, haja decisão judicial reconhecendo a modificação do animus que empolga o uso do bem.

Veja-se que não se está aqui a discutir se os efeitos da união estável reconhecida equiparam-se ao casamento, quando este é escolhido, em ato de vontade, como condição resolutiva negocial (art. 121 do Código Civil), mas sim a impossibilidade de arguição dos efeitos registrários da ocorrência da condição enquanto tais efeitos não se consolidam no próprio registro, no caso, com o cancelamento do usufruto.

E, no âmbito da atuação do Oficial de Registro de Imóveis e da própria Corregedoria Permanente, não há espaço para, no procedimento declaratório da usucapião extrajudicial, reconhecer a ineficácia de um registro anterior que não tenha sido previamente cancelado ou modificado, seja por ato próprio dos interessados, seja por decisão judicial.

E não é a declaração feita pela parte interessada na ata notarial de legitimação possessória que vai gerar o efeito modificativo do direito real inscrito, posto que a extinção ou modificação do usufruto registrado não se apoia em ato unilateral do usufrutuário. Haveria a afirmação da existência da união estável e mais, seu efeito equivalente ao casamento, de ser reconhecido em pedido específico de cancelamento do registro pela ocorrência da condição, o que somente pode ser apreciado em procedimento judicial, ante sua eficácia perante terceiros, no caso, dos herdeiros do nú-proprietário.

Também a simples repetição da declaração da interessada, sobre a natureza jurídica da posse exercida, não é circunstância suficiente à vinculação do Registrador, obrigado este a apreciar a legalidade do pedido de registro da usucapião extrajudicial. O fato de se lançar na ata notarial uma declaração de vontade do interessado, no sentido de qualificar juridicamente o fato observado pelo tabelião, não importa em atribuição a aquele da fé pública notarial, posto que limitada a ata às impressões físico-materiais do tabelião quanto à existência e o modo de existir de algum fato (art. 384 da Lei nº 6.015/1973).

Não cabe, assim, ao Tabelião que lavra a ata notarial para a legitimação possessória, qualificar ou apreciar eventual tese do requerente no sentido da natureza de sua posse, no caso, por força de uma possível extinção prévia do usufruto ainda eficaz no registro; cabe-lhe apenas descrever a posse do requerente e seus antecessores (art. 216-A, I da Lei nº 6.015/1973).

Assim, havendo necessidade de se apreciar, antes da questão da posse para fins de usucapião, a extinção de um direito real limitado conferido à apelante e ainda constante do registro, não há como se proceder ao reconhecimento extrajudicial da usucapião, ante a limitação do procedimento administrativo previsto no art. 216-A da Lei nº 6.015/1973.

Não se pode, assim, apreciar em procedimento administrativo limitado a pedido da parte interessada, o reconhecimento da transmudação da posse decorrente do usufruto em posse ad usucapionem, por não se admitir, por presunção, a eficácia extintiva atribuída pelo ato de instituição do direito real limitado ao casamento, fixando-o como condição resolutiva do usufruto.

Há de se obter, previamente, o cancelamento do registro para, daí, observar-se eventual efeito da posse exercida não mais com fundamento no direito real limitado, mas em decorrência da posse em si mesma, com intenção de dono.

Tudo isto sem prejuízo da busca judicial de reconhecimento da aquisição pela usucapião, nos termos expressos do art. 217-A, § 9º da Lei nº 6.015/1973.

3. Por tais fundamentos, NEGO PROVIMENTO ao recurso, mantendo a recusa do 18º Oficial do Registro de Imóveis da Capital.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

(DJe de 19.06.2020 – SP)