1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Prescrição intercorrente – Usucapião extrajudicial – Impossibilidade – Prejuízo a terceiros – Possibilidade da soma da posse, independente de sua origem, desde que a posse tenha natureza ad usucapionem – Dúvida improcedente.

Processo 1016769-62.2020.8.26.0100

Dúvida

Notas

R. de C. F. G.

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 17º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de R. de C. F. G., após indeferimento de pedido de usucapião extrajudicial de imóvel matriculado sob o nº 65.502 da citada serventia. O indeferimento se deu pois entendeu o Oficial não estarem presentes os requisitos temporais para configuração da usucapião extraordinária. Isso porque, quando da prenotação do título, a requerente não havia preenchido os anos necessários para a prescrição aquisitiva, sendo inviável ainda a accessio possessionis, já que a posse dos antigos possuidores tinha origem em direitos hereditários, enquanto a posse da requerente tem origem em cessão de direitos. Além disso, entende inviável a prescrição intercorrente. Documentos às fls. 09/587.

A requerente manifestou-se às fls. 598/602, aduzindo não ser o caso de cessão de direitos hereditários, mas cessão de direitos sucessórios, além de dizer preencher o requisito temporal para reconhecimento da prescrição aquisitiva.

O Ministério Público opinou às fls. 609/610 pela procedência da dúvida.

É o relatório. Decido.

De início, entendo comprovado o requisito do parágrafo único do art. 1.238 do CPC, já que a requerente demonstrou a utilização produtiva do imóvel e realizado obras no local. Como consta do item 4.1.3 da ata notarial apresentada (fls. 28/39), foram apresentados documentos comprovando a compra de materiais de construção para uso no imóvel. Tais documentos também foram juntados às fls. 282/292. Para além disso, o imóvel é alugado para terceiros, demonstrando haver uso produtivo da propriedade. Por tais razões, entendo que a posse necessária para reconhecimento do pedido é de 10 anos.

Ocorre que, como bem apontado pelo Oficial, a requerente obteve a posse a partir de contrato particular datado de 10/08/2009, de modo que os 10 anos seriam preenchidos em 10/08/2019. Tendo em vista que o requerimento de usucapião foi realizado em setembro de 2018, não estavam preenchidos os 10 anos necessários. Ainda que haja grande discussão judicial quando a possibilidade de prescrição intercorrente nos pedidos de usucapião, entendo que tal instituto não pode ser aplicado extrajudicialmente, fundamentalmente porque o protocolo do pedido extrajudicial de usucapião gera prioridade do registro prorrogável enquanto durar o procedimento, impedindo o ingresso de novos títulos com a consequente constituição de direitos reais por terceiros que poderiam interromper o prazo prescricional aquisitivo, de modo que, caso permitida a prescrição intercorrente, estaria qualquer interessado possibilitado de ingressar com o pedido extrajudicial a qualquer tempo, enquanto prorroga a autuação da usucapião até que tenha preenchido o requisito temporal.

Além disso, outro requisito essencial do pedido extrajudicial é a ata notarial, que somente descreve os requisitos fáticos existentes à época de sua lavratura, de modo que considerar a posse de tempo posterior, ocorrida durante o trâmite do pedido extrajudicial, sem que tal posse esteja descrita em ata notarial tornaria a exigência legal de sua apresentação inócua para os fins de legitimidade e segurança jurídica que se pretendeu trazer ao procedimento de usucapião com sua lavratura.

E ainda que se considere a possibilidade de apresentação de ata notarial complementar, a prescrição intercorrente ainda esbarraria no fundamento apresentado acima, relativo a prorrogação da prenotação.

Portanto, se considerada a posse somente entre a data do contrato e o pedido extrajudicial, não estaria preenchido o requisito temporal. Solução para tal questão seria a aplicação do instituto da accessio possessionis, conforme previsão do art. 1.243 do Código Civil. Entendeu o Oficial pela impossibilidade de aplicação do instituto, devido a divergência entre a natureza da origem da posse dos cedentes e dos cessionários.

Ocorre que as particularidades do caso concreto permitem a soma das posses. Como relatado, a titular do domínio A. F. não era proprietária tabular até outubro de 2015, quando foi registrada usucapião ajuizada em 1994, sendo que a Adalgiza faleceu em 2001 sem que tenha havido sucessão processual pelos herdeiros.

Destaco, portanto, a peculiaridade da cessão de direitos ter se dado após ajuizamento da usucapião por Adalgiza e após sua morte, mas antes da sentença de usucapião ser registrada e sem que houvesse sucessão processual pelos herdeiros, o que permite uma leitura própria do caso.

Portanto, quando da cessão dos direitos possessórios, em 2009, nem os herdeiros nem a de cujus eram titulares de domínio, de modo que a posse exercida sobre o bem não era na condição de proprietário tabular, mas verdadeira posse com animus domini passível de reconhecimento para fins de usucapião.

Tal natureza da posse foi inclusive assim reconhecida quando do deferimento do pedido judicial de usucapião. Sendo assim, a cessão da posse pelos herdeiros foi faticamente a cessão da posse adquirida em 2001, com a morte de Adalgiza, apesar do contrato mencionar o tempo anterior relativo a posse direta exercida pela falecida. Em outras palavras, tão logo houve o falecimento, pelo instituto da saisine, a posse passou aos herdeiros, que a exerceram entre 2001 e 2009 em nome próprio e com animus domini, sendo que a cessão a requerente se dá nos mesmos termos e permite a accessio possessionis.

A peculiaridade é que, entre 2001 e 2009, a posse, apesar da origem hereditária, não foi exercida pela mãe, mas pelos próprios herdeiros. Mesmo que não tenha havido a partilha, considera-se que a posse foi exercida por eles pela saisine, razão pela qual a cessão de direitos juntada é da posse própria, e não do de cujus, o que permite, com relação a tal período, a utilização para contagem do prazo prescricional em favor da ora requerente, novamente destacando que tal posse tinha animus domini já que tal qualidade da posse foi transferida com a sucessão de Adalgiza.

Finalmente, a saisine englobou tão somente os direitos possessórios do imóvel, já que os herdeiros não poderiam receber a propriedade plena, que ainda não havia sido declarada em favor de Adalgiza.

Neste sentido, cito a Apelação nº 1004010-32.2016.8.26.0189, 8ª Câmara de Direito Privado, Rel. Alexandre Coelho, j. 23/10/19:

APELAÇÃO – USUCAPIÃO – POSSE DE ANTECESSOR – ADMISSIBILIDADE DA SOMA À POSSE DO ATUAL OCUPANTE, DESDE QUE AMBAS AS POSSES TENHAM NATUREZA DE POSSE AD USUCAPIONEM – Sentença que admite somar-se à posse do atual ocupante a posse de seus antecessores – Para a de soma de posses para fins de usucapião, importa verificar, apenas, se as posses consideradas têm natureza ad usucapionem – Vedação à soma que ocorre nos casos em que o possuidor (jus possessionis) pretende somar a posse do proprietário (jus possidendi), a qual não tem natureza de posse ad usucapionem – Caso em que o antigo possuidor (jus possessionis) veio a falecer e seus dois herdeiros assumiram a posse do imóvel, a qual foi negociada a seguir com o atual ocupante – Somatória de posses que atende ao requisito temporal da usucapião – Validade do negócio jurídico em que os herdeiros transmitiram a posse – Sentença ratificada nos termos do art. 282, do RITJSP – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO

[A] norma do artigo 1.243, do Código Civil, admite expressamente a medida, exigindo apenas que todas as posses somadas sejam contínuas e pacíficas. A esse respeito, BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO observa que “continuando o sucessor a título universal a posse do morto, transmitida tal qual mantida anteriormente, sem possibilidade de ser seccionada, incorporados os vícios e as qualidades que lhe são peculiares, tanto que, se era hábil para usucapião, continuará sendo; mas se não era, não permitirá ao herdeiro invocar a prescrição, mesmo que ignore o seu caráter anterior. […] Em suma, sendo as duas posses aptas à prescrição aquisitiva, dar-se-á a soma de modo tranquilo.” (TRATADO DE USUCAPIÃO, 2012, p. 817)

A restrição que em jurisprudência se faz diz respeito à soma da posse do antigo proprietário – jus possidendi – com a do atual possuidor – jus possessionis -, porquanto aquela é exercida em decorrência do direito de propriedade e não ad usucapionem. Entende-se que a posse exercida na condição de proprietário não tem natureza de posse ad usucapionem exatamente porque esta pressupõe a ausência de propriedade. Significa dizer que, quando se exige posse da mesma natureza que a anterior como requisito para ambas poderem ser somadas, está-se exigindo que ambas as posses tenham natureza ad usucapionem, apenas isso.

Nesse sentido:

Usucapião. Acessio possessionis (art. 1243, do CC). Os autores são cessionários e adquiriram a posse de um dos herdeiros daquele que figura como dono. O inventário foi concluído e a parte de terras da qual destacada a área usucapienda coube ao cedente, revelando os documentos a impossibilidade do registro do formal por diversidades de dados. Nas circunstâncias verificadas não parece adequado considerar que a posse do cedente seja posse decorrente da propriedade, mas, sim, de exercício de posse em área pro diviso, sendo hábil para conceder a usucapião. Ora, se a posse do antecessor proporciona usucapião, é igual a posse exercida pelo cessionário, sendo adequado a somatória. 27 anos de posse ininterrupta e pacífica. Provimento para reconhecer e declarar a usucapião. (TJSP; Apelação Cível 0000391-46.2012.8.26.0450; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado;

Foro de Piracaia – 1ª Vara; Data do Julgamento: 14/02/2019; Data de Registro: 21/02/2019) CIVIL USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA PARA O CASO CONCRETO, A ‘ACESSIO TEMPORIS’ PODE SER SOMADA COM A POSSE DO PROPRIETÁRIO ANTERIOR ‘A única exigência do Código Civil para a soma das posses, para fins de usucapião, é que ambas sejam ‘contínuas e pacíficas’. Não se pode desmerecer a posse titulada (‘jus possidendi’), como se tivesse menos valor do que o jus possessionis’. PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL DESTA CORTE SENTENÇA DE EXTINÇÃO ANULADA PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO ATÉ SEUS ULTERIORES TERMOS RECURSO PROVIDO. (TJSP; Apelação nº 576.953-4/0; 5ª Câmara de Direito Privado; Rel. Oscarlino Moeller; Data de Julgamento: 27/08/08)

Veja-se, portanto, que a soma das posses só poderia ser negada caso, quando da cessão de direitos hereditários, a propriedade já estivesse em nome de Adalgiza, hipótese na qual os herdeiros estariam cedendo a posse titulada (‘jus possidendi’), cuja natureza distinta não permitiria a acessão com a posse ad usucapionem da requerente, advinda do jus possessionis. Não tendo havido o prévio registro em nome de Adalgiza, possível considerar que a cessão se deu com relação a posse jus possessionis exercida pelos herdeiros, já que entre 2001 e 2009 não havia qualquer titulação. E se essa era a natureza da posse, possível somar com aquela exercida pela requerente, de igual característica.

Por todas estas razões, entendo que a posse a ser considerada é aquela da requerente somada com a posse dos cedentes exercidas desde o falecimento de Adalgiza em 2001, o que torna preenchido o prazo de 10 anos, e até mesmo o de 15 anos caso não considerado o preenchimento dos requisitos do parágrafo único do art. 1.238. Estando os demais requisitos preenchidos e o procedimento tendo corrido em conformidade com as normas de regência, é o caso de deferimento do pedido extrajudicial.

Do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 17º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de R. de C. F. G., determinando o registro da usucapião extrajudicial de prenotação nº 218.192, relativa ao imóvel matriculado sob o nº 65.502.

Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

(DJe de 14.04.2020-SP)