1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Imóvel gravado com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade – Escritura de Permuta – Impossibilidade de sub-rogação automática – Necessidade de procedimento judicial – Dúvida procedente.

Processo 1008913-47.2020.8.26.0100 

Dúvida

Registros Públicos

G. de A. P. e K. P. L. de A. P. e outro

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de G. de A. P. e K. P. L. de A. P., após negativa de registro de escritura de compra e venda cujo objeto é o imóvel matriculado sob o nº 142.523 da mencionada serventia.

Aduz o Oficial que a referida escritura contém cláusula de incomunicabilidade e impenhorabilidade, cuja justificativa é o fato do imóvel ter sido adquirido com recursos advindos da venda de imóvel que continha tais cláusulas, havendo portanto a transferência de tais restrições. Segundo o Oficial, houve sub-rogação do vínculo, que somente pode se dar por ordem judicial. Juntou documentos às fls. 03/87.

O suscitado impugnou a dúvida às fls. 90/95, aduzindo que constou tanto na escritura de venda do imóvel gravado com as cláusulas como o de compra do imóvel que se pretende transferi-las que os recursos eram os mesmos, sendo a sub-rogação automática, desnecessária autorização judicial, mormente o movimento de desjudicialização das questões em que há concordância das partes.

O Ministério Público opinou às fls. 98/99.

É o relatório. Decido.

A questão tratada nos autos é similar aquela enfrentada pelo Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1.120-6/7, Rel. Luiz Tâmbara, j. 08/07/09, DJE 04/12/2009:

Registro de Imóveis – Escritura de venda e compra de bem imóvel – Imóvel adquirido com o produto da alienação de outro bem resultante de redução de capital social de empresa e de distribuição de lucros a sócio – Ações da companhia anteriormente gravadas com cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade – Não caracterização, no caso, de sub-rogação automática, de pleno direito, dos vínculos – Impossibilidade do registro da escritura com os mesmos gravames – Necessidade, para a pretendida sub-rogação, do processo e procedimento próprios previsto no art. 1.112, II, do CPC – Recusa do registro acertada – Recurso não provido.

(…) [A] doutrina tem chamado a atenção para os limites da imposição isolada da cláusula de incomunicabilidade ou da cláusula de impenhorabilidade – ou de ambas em conjunto -, sem concomitante adoção da cláusula de inalienabilidade, na medida em que, mostrando-se possível a alienação do bem clausulado, acaba-se por obter resultado diverso daquele perseguido pelo instituidor do gravame. De acordo com a análise de Eduardo de Oliveira Leite:

“Claro está que a imposição isolada dessa cláusula[de incomunicabilidade]não impede a alienação, obtendo-se, indiretamente, resultado diverso daquele perseguido pelo testador (ambos os cônjuges usufruirão o resultado da venda); mas, se o testador impuser a inalienabilidade, desaparece aquela possibilidade ressurgindo a possibilidade de engessamento do bem clausulado” (Comentários ao Novo Código Civil – vol. XXI – Do direito das sucessões – arts. 1.784 a 2.027. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 274).

No mesmo sentido, Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme:

“A cláusula[de incomunicabilidade], não impede que os bens sejam alienados, o que permite a venda e entrega do produto da alienação ao cônjuge, burlando, então, a vontade do testador.” (Cláusulas testamentárias limitativas da legítima e seus problemas jurídicos. In: Maria Helena Diniz – Coord. -Atualidades jurídicas, 5. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 213).

E, ainda, por fim, Sílvio de Salvo Venosa:

“A imposição isolada dessa cláusula[de incomunicabilidade]não impede a alienação, de modo que a intenção do legislador pode facilmente ser contornada, uma vez que o produto da venda será fatalmente utilizado em proveito do casal, se não houver a sub-rogação da cláusula em outro bem. Não se pode presumir a inalienabilidade, se não vier expressa no testamento. Pode o testador evitar esse óbice impondo a inalienabilidade sob certo termo, ou determinando a conversão em determinados bens, em caso de alienação.”(Ob. cit., p. 153).

Compreende-se que assim de fato seja, pois a cláusula de incomunicabilidade implica, quando adotada, derrogação ao regime legal de bens entre os cônjuges, tanto quanto a cláusula de impenhorabilidade acarreta a exclusão do bem gravado da garantia geral que o patrimônio do devedor representa para os credores.

Daí a reserva com que se vê a transposição automática dos gravames em caso de alienação dos bens gravados com a incomunicabilidade e com a impenhorabilidade, sem o procedimento adequado previsto no art. 1.112, II, do Código de Processo Civil.

Ressalte-se que o procedimento judicial a que se alude não é condição para a validade da alienação do bem clausulado, mas, sim, para o transporte das cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade aos bens adquiridos com o produto da referida alienação, mediante sub-rogação dos vínculos.

Sem ele, a manutenção dos vínculos de incomunicabilidade e impenhorabilidade acaba por decorrer de ato de vontade do próprio titular do bem, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, exceção feita à instituição do bem de família.

Como leciona Ademar Fioranelli sobre o tema:

“(…) observo que não se pode admitir, sem o caminho judicial próprio de subrogação de vínculos, que as cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade, que pesam sobre determinado imóvel antes doado, sejam transferidos a outro imóvel permutado pelos donatários, por não ser lícito a ninguém vincular seu próprio bem, ônus que só se pode estabelecer em relação a terceiros.

Se é certo que, em se tratando de cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade, inexiste óbice para a transferência do bem a título de permuta, não seria lícito aos adquirentes impor gravame, de forma unilateral, ao imóvel adquirido na permuta, por não se configurar, também, a chamada subrogação real prevista nos artigos 269, II, e 272 do Código Civil, que constituem hipóteses legais de exclusão de bens da comunhão matrimonial.

A causa jurídica que justifica tais hipóteses é diversa da que caracteriza a impenhorabilidade, originariamente imposta pelo doador (RT 656/37). Assim, a simples declaração do ato notarial da permuta, isoladamente considerada, mostrar-se-ia insuficiente para atender os requisitos se segurança exigidos.

Os gravames da incomunicabilidade e o da impenhorabilidade, tanto como o da inalienabilidade, obrigam a que a subrogação seja submetida à apreciação judicial. Imposta pelo doador ou testador, a alienação do bem e subseqüente aquisição de outro pela permuta, não faz com que a subrogação se opereipso jure. Se admitido o ato, estaria sendo permitido que o adquirente vinculasse seu próprio bem, o que nosso sistema jurídico não permite, à exceção do bem de família.” (Direito Registral Imobiliário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001, p. 194-195).

Assim, também, cabe salientar, já decidiu este Conselho Superior da Magistratura, em acórdão da lavra do eminente Desembargador Luís de Macedo, então Corregedor Geral da Justiça:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida. Ingresso de escritura de compra e venda da nua-propriedade de imóvel gravado com cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade. Impossibilidade de manutenção das cláusulas restritivas. Necessidade de autorização judicial para a subrogação de cláusulas incidentes sobre outro imóvel. Dúvida procedente. Recurso a que se nega provimento.

(…) (…) a imposição das cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade dar-se-ia ou por sub-rogação ou por vinculação sobre o próprio bem, o que não se mostra possível, seja pela falta de prévia utilização do procedimento previsto no inc. II do art. 1.112 do Código de Processo Civil, necessário para a sub-rogação, seja pela vedação de que tais cláusulas restritivas sejam impostas em atos onerosos ou posteriormente a dada liberalidade, pois a ninguém é permitido gravar os próprios bens, o que inviabiliza a mera transposição das cláusulas que oneravam imóvel antes doado para outro agora adquirido por compra e venda.

Mostra-se oportuna, quanto ao tema, referência às razões que fundamentaram decisão do MM. Juízo da Primeira Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital, de 03.02.99, relativa ao Proc. 000.98.021177-8, publicada na Revista de Direito Imobiliário 49/332, firmes no sentido de que ‘cláusulas restritivas constituem ônus que só se estabelecem em relação a terceiros, ou seja, donatários, herdeiros e legatários, pois o sistema jurídico não possibilita, não permite, vincular os próprios bens, a exceção do bem de família’ e de que ‘a sub-rogação, por ser vedada a vinculação ou imposição de cláusulas restritivas sobre os próprios bens, mesmo porque implicam em limitação de direitos de terceiros, v.g. credores de titular de domínio de imóvel gravado com cláusula de impenhorabilidade; cônjuge de proprietário de imóvel com cláusula de incomunicabilidade, à evidência, depende de apreciação judicial, sendo necessária a utilização do procedimento previsto no inc. II do art. 1.112 do CPC. A sub-rogação não se opera de pleno direito, é imprescindível a autorização judicial.’.”(Ap. Cív. n. 81.249-0/9 – j. 22.11.2001).

Na hipótese, como se percebe, não se admitindo a sub-rogação automática dos vínculos em questão e não se tendo observado o procedimento judicial próprio para tanto, o que houve, em verdade, na escritura de venda e compra apresentada a registro, foi, no final das contas, o estabelecimento de cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade pelo próprio Apelante sobre o imóvel por ele adquirido, o que, como visto, não se pode admitir.

E essa situação foi corretamente identificada pelo Oficial Registrador no exame de qualificação negativa do título. Observe-se que a re-ratificação da doação em ato notarial específico e a participação no negócio jurídico celebrado, com anuência na manutenção das cláusulas, por parte dos doadores e do cônjuge do Apelante, em nada altera o quadro acima descrito, já que imprescindível para a sub-rogação dos vínculos de incomunicabilidade e impenhorabilidade a chancela judicial obtida pela via do processo e do procedimento próprios disciplinados no art. 112, II, do CPC. Portanto, à luz das considerações que vêm de ser expendidas, bem como do entendimento firmado no âmbito deste Conselho Superior da Magistratura, não há como censurar a recusa do registro do título pelo Oficial Registrador, ratificada com acerto pelo Meritíssimo Juiz Corregedor Permanente.”

Em suma, por se tratar de limitação ao direito de propriedade, incluindo possível limitação de direito de terceiros (por exemplo do credor, no caso da cláusula de impenhorabilidade), necessária a autorização judicial para sub-rogação das cláusulas, sob pena de permitir ao interessado a eterna transferência das cláusulas entre diversos bens, culminando em escolha pessoal de quais os bens gravados, em detrimento da limitação legal a instituição de tais cláusulas, que somente se dá na propriedade de terceiros, como donatários e herdeiros.

Não basta que ambos os compradores concordem com a transposição de cláusulas, justamente porque não são os únicos interessados no ato, cabendo a apreciação judicial, em procedimento de jurisdição voluntária nos termos do Art. 725, II, do CPC, para que se analise se houve efetivo uso do mesmo numerário para aquisição do novo bem, se houve justa causa e se com a sub-rogação estará sendo cumprida a vontade do doador, bem como preservados interesses de terceiros, evitando a perpetuidade da limitação ao direito de propriedade com sucessivas sub-rogações.

Do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de G. de A. P. e K. P. L. de A. P., mantendo o óbice ao registro.

Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

(DJe de 03.04.2020-SP)

 

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