CGJ|SP: Mandato com poderes especiais e expressos outorgado por meio de procuração pública. Compreensão da determinação dos bens e seu objeto para fins de alienação ao interpretar a procuração pública. Regularidade da escritura pública de compra e venda realizada com a utilização do mandato. Seja como for, a existência de compreensão doutrinária em conformidade ao ato praticado exclui a possibilidade de ilícito administrativo ante a independência funcional do Notário – Recurso não provido.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Processo n° 2019/00106919

(506/2019-E)

Mandato com poderes especiais e expressos outorgado por meio de procuração pública. Compreensão da determinação dos bens e seu objeto para fins de alienação ao interpretar a procuração pública. Regularidade da escritura pública de compra e venda realizada com a utilização do mandato. Seja como for, a existência de compreensão doutrinária em conformidade ao ato praticado exclui a possibilidade de ilícito administrativo ante a independência funcional do Notário – Recurso não provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso administrativo em representação disciplinar apresentada pelos Srs. C. M. J. N. O. B. e C. G. B. O. referindo a prática de ilícito administrativo pelo Sr. Io Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de Bauru, que fora arquivada pelo MM. Juiz Corregedor Permanente, sustentando irregularidade na atuação do Notário em virtude da ausência de poderes especiais e determinados para venda de bem imóvel na procuração outorgada e utilizada em escritura pública de compra e venda (a fls. 104/113).

Contrarrazões à fls. 116/123.

A Douta Procuradoria Geral da Justiça declinou de sua atuação neste processo administrativo (a fls. 127/128).

É o relatório.

Opino.

A questão em exame envolve representação sustentando falha no serviço notarial e consequente responsabilidade administrativa disciplinar do Sr. Tabelião em razão da lavratura de escritura pública de venda de imóvel na qual os ora representantes, na condição de vendedores, foram representados por mandatária, nomeada por procuração pública, na qual não constou indicação específica do imóvel a ser alienado.

No referido instrumento público (a fls. 11) constou:

“Conferem ainda a mesma procuradora, poderes específicos, nos termos do artigo 661, parágrafos primeiro e segundo do Código Civil, para comprar, vender, ceder, transferir, compromissar, ceder ou receber cessão de direitos hereditários, permutar, doar com ou sem reserva de usufruto, receber doações, instituir usufruto, permutar, hipotecar apenhar, dar em pagamento ou qualquer forma alienar e onerar, bens móveis ou imóveis, situados neste ou em qualquer outro município deste país “. (grifos constantes na procuração pública)

De outra parte, o artigo 661 do Código Civil estabelece:

“Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.

§ 1º Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.

§ 2º O poder de transigir não importa o de firmar compromisso”.

Nessa perspectiva o conteúdo do mandato tratou de poderes especiais por ultrapassar os atos de administração ordinária referidos no artigo 661, caput, do Código Civil.

A determinação legislativa constante na parte final do artigo 661, parágrafo 1º, do Código Civil afirmando a necessidade de poderes especiais e expressos trata de noções diversas que não se confundem.

Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, v. 3. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 336 e 336) menciona a respeito:

“mandato expresso, específico daqueles casos que exigem procuração contendo poderes especiais (CC, art. 661, p. Io), pois a manifestação desses poderes deverá revelar-se de modo inequívoco”.

“mandato com poderes especiais, se envolver atos de alienação ou disposição, exorbitando dos poderes de administração ordinária (CC, art.661,p. 1°e2°)”.

Desse modo, a previsão normativa envolve a necessidade da concessão de poderes específicos para além da administração ordinária (especiais) e declarados de modo inequívoco (expressos).

Em momento algum o Código Civil estabeleceu a impossibilidade da concessão de poderes especiais e expressos, com indicação genérica dos imóveis abrangidos para a prática de atos negociais.

Inclusive, no caso concreto a causa do mandato envolveu justamente a concessão de poderes amplos, especiais e expressos em razão da necessidade dos mandantes se ausentarem do país por razões de ordem profissional. Registre-se ainda a realização de varias aquisições imobiliárias pela mesma mandatária em favor dos mandantes (a fls. 56/61, 64/67 e 73/76).

A compreensão de Pontes Miranda {Tratado de direito privado. T. XLVII, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 35), fundada em julgado da 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo de 20 de abril de 1944, no sentido de que os poderes especais “são os poderes outorgados para a prática de algum ato determinado ou de alguns atos determinados”, não exclui a possibilidade da concessão de poderes especiais e expressos para venda de imóveis a partir de indicação geral.

Note-se que o objeto do mandato com poderes especiais pode envolver bens “imóveis, situados neste ou em qualquer outro município deste país” não havendo necessidade de bem certo e determinado, sobretudo na situação concreta em que os mandantes residiam na Turquia por questões profissionais.

Cláudio Luiz Bueno de Godoy (Código civil comentado. Baueri: Manoel, 2007, p. 524) refere essa situação nos seguintes termos:

“É certo, porém, como Carvalho Santos adverte (Código Civil brasileiro interpretado, 5. Ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1952, v. XVIII, p. 163), que, se o mandato envolve a outorga de poderes para a venda de todos os imóveis do mandante, terá sido cumprida a exigência de poderes especiais “.

Pugnando pela desnecessidade da determinação do imóvel, sob a égide do Código Civil de 1916, cujo artigo 1.295 possuía a mesma redação do artigo 661 do Código Civil, Washington de Barros Monteiro (Curso de direito civil. v. 5o. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 254) afirma que “para hipotecar reclama-se do mandatário a obtenção de poderes especiais e expressos; dispensa-se, porém, a designação do bem a ser hipotecado”.

Esse também é o entendimento de Silvio Rodrigues (Direito civil. v. 3. Saraiva: São Paulo, 1990, p. 305) como segue:

“Por outro lado, enquanto alguns julgados são mais rigorosos, pois entendem que só valerá a autorização para hipotecar ou alienar quando as mesmas vierem acompanhadas de expressa menção dos bens objeto do negócio, outros se apresentam mais liberais e dispensam tal menção (cf. entre outros, do S.T.F., Arq. Jud., 58/375).

Esta última opinião é que está certa. Se o outorgante confere ao procurador poderes para vender ou hipotecar bens imóveis sem dizer quais os bens que o representante pode alienar ou onerar, assume o risco de que este venda ou hipoteque os que entender. O que é perfeitamente justificável, tendo em vista que o mandato é um negócio com base na confiança que o constituinte deposita no representante.

Querer interpretar de maneira excessivamente estrita às cláusulas do mandato constitui uma tentativa descabida e injusta de tutelar o interesse de pessoa capaz, que não encontra fundamento nem na lei, nem no interesse social”. (grifos meus)

No presente caso a questão é que os poderes especiais foram conferidos de molde a permitir a compreensão de seu objeto, ainda que não nominasse os imóveis especificadamente, como sugere Pontes de Miranda.

O precedente administrativo do C. Conselho Superior da Magistratura, consistente na Apelação n° 0001301-68.2016.8.26.0083, relatada por Vossa Excelência, j . 04.10.2018, tratou de questão pouco diferente da presente, ou seja, de que a concessão de poderes genéricos de alienação não engloba o poder de integralização de cotas de capital social por meio da transferência de imóvel, apesar de haver afirmado pela necessidade de determinação específica do objeto.

Além disso, o contexto desta situação é diverso em razão dos aspectos fáticos no qual houve a outorga de procuração.

Seja como for, é do corpo da referida decisão:

“Os poderes para “…outorgar contratos de quaisquer natureza, como contratos de locação ou fiança, compra e venda de bens móveis e imóveis…”, entretanto, são por demais genéricos e não equivalem a poderes expressos para vender imóvel determinado, ou a determinar, com fixação do preço da venda, no que, em tese, poderia ser compreendido o poder para alienar imóvel mediante negócio jurídico distinto consistente em integralização de capital social.

Portanto, embora ambos os contratos, de compra e venda e de integralização de capital social, sejam bilaterais, onerosos e comutativos, neste caso concreto os poderes genéricos para outorgar contratos de quaisquer naturezas, como os de compra e venda, não podem ser interpretados como poderes para alienar imóvel determinado ou a determinar, por valor diretamente ajustado pela mandatária.

E o valor da alienação, ainda neste caso concreto, corresponde ao das cotas sociais integralizadas em nome do alienante, o que também afasta a alegação de que na integralização de capital social haveria mero ato de administração ordinária.

Por seu lado, os contratos de execução de loteamento de imóvel com parceria, reproduzidos às fls. 52/62 e 78/87, não compõem o título apresentado para registro e, mais, disseram respeito a negócios jurídicos distintos, razão pela qual não alteram o resultado da dúvida “.

O outro precedente consistente na Apelação Cível n. 524-6/3, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, j . 03.08.2006, acolheu o entendimento da necessidade da determinação do imóvel a ser alienado, como se observa do seguinte:

“Conclui-se, pois, que os poderes especiais e os poderes expressos, referidos no § Io do artigo 661 do Código Civil, têm significados diversos.

Estes últimos são os referidos no mandato (exemplo: poderes para vender, doar, hipotecar, etc).

Já aqueles correspondem à determinação específica do ato a ser praticado (exemplo: vender o imóvel ‘A’, hipotecar o imóvel ‘B’, etc).

E o ordenamento jurídico, como já visto, exige a presença de ambos na procuração com o escopo de se alienar bens.

Isso mais se avulta quando a hipótese envolve a venda de imóveis, cujo alto valor que, em regra, tais negócios encerram, já impõe, por si só, redobrada cautela, ainda que outorgante e outorgado sejam entre si casados.

Daí decorre o entendimento de Carvalho Santos, citado por Arnaldo Marmitt:

Da necessidade dos poderes expressos e especiais para poder o mandatário alienar bens de propriedade do mandante resulta, também, a necessidade de constarem na procuração os bens a serem vendidos, devidamente individualizados, a não ser que os poderes abranjam todos os bens do mandante (Mandato, Aide Editora, 1″ edição, 1992, p. 182.3)”.

De tudo que foi exposto até aqui, ao se interpretar o mandato outorgado, compete concluir em consideração ao contexto no qual foi realizado o negócio jurídico: (i) a viagem dos mandantes ao exterior, (ii) a mandatária ser irmã da mandante e cunhada do mandante, (iii) os grifos constantes do instrumento público acerca da concessão de poderes especiais e expressos para alienação e (iv) a referência aos bens “imóveis, situados neste ou em qualquer outro município deste país”, que houve individualização dos bens objeto da outorga de poderes especiais.

Mesmo que se admitisse compreensão diversa, há corrente doutrinária, como se observa das citações supra, no sentido da não necessidade da determinação do bem imóvel objeto do mandato com poderes especiais.

Diante disso, considerada a independência funcional do Tabelião no exercício de sua profissão jurídica (lei n. 8.935/94, art. 3º) a eleição de determinado entendimento doutrinário, não obstante a existência de outros, impede a responsabilização disciplinar dada a inexistência de ilícito administrativo.

Ante o exposto, o parecer que, respeitosamente, submete-se à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido do não provimento do recurso administrativo.

Sub censura.

São Paulo, 11 de setembro

Marcelo Benacchio

Juiz Assessor da Corregedoria

CONCLUSÃO

Em 12 de setembro de 2019, faço estes autos conclusos ao Desembargador GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, DD. Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Eu, (Vanessa Gomes Caxito), Escrevente Técnico Judiciário do GATJ 3, subscrevi.

Aprovo o parecer do MM Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso.

Publique-se.

São Paulo, 12 de setembro de 2019.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça