CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Inventário extrajudicial – União estável formalizada por escritura pública com atribuição da propriedade exclusiva de imóvel em favor do companheiro falecido – Inaptidão da disposição para subtrair do companheiro supérstite sua condição de herdeiro universal, à falta de descendentes e ascendentes vivos – Regime sucessório dos conviventes definido por entendimento firmado pelo E. STF, em repercussão geral, a reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC 2002 – Desnecessária aquiescência dos colaterais para a lavratura de escritura pública de inventário e adjudicação do único imóvel integrante do monte mor – Presumível subsistência da união estável formalizada até a abertura da sucessão – Ausência de impugnação ou indícios de dissolução de fato da relação de convivência, expressamente referida por um dos irmãos do de cujus, declarante do óbito – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1003886-73.2018.8.26.0223, da Comarca de Guarujá, em que é apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO EST. DE SP, é apelado SEBASTIÃO COSTA.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Por maioria de votos, negaram provimento, nos termos do voto do Desembargador Pereira Calças, que fica como relator designado. Vencidos os Desembargadores Evaristo dos Santos e Pinheiro Franco, que votaram por dar provimento ao recurso. Declarará voto convergente o Desembargador Campos Mello.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA), vencedor, PINHEIRO FRANCO (CORREGEDOR GERAL), vencido, PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 27 de agosto de 2019

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Relator Designado

APELAÇÃO CÍVEL nº 1003886-73.2018.8.26.0223

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO EST. DE SP

APELADO: SEBASTIÃO COSTA

COMARCA: GUARUJÁ

VOTO Nº 30.169

Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Inventário extrajudicial – União estável formalizada por escritura pública com atribuição da propriedade exclusiva de imóvel em favor do companheiro falecido – Inaptidão da disposição para subtrair do companheiro supérstite sua condição de herdeiro universal, à falta de descendentes e ascendentes vivos – Regime sucessório dos conviventes definido por entendimento firmado pelo E. STF, em repercussão geral, a reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC 2002 – Desnecessária aquiescência dos colaterais para a lavratura de escritura pública de inventário e adjudicação do único imóvel integrante do monte mor – Presumível subsistência da união estável formalizada até a abertura da sucessão – Ausência de impugnação ou indícios de dissolução de fato da relação de convivência, expressamente referida por um dos irmãos do de cujus, declarante do óbito – Recurso não provido.

Vistos.

Cuida-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra r. sentença pela qual o MM. Juiz Corregedor Permanente da Serventia de Registro de Imóveis da Comarca do Guarujá, Dr. Gustavo Gonçalves Alvarez, refutou os óbices levantados pelo registrador em relação ao registro de escritura de inventário e adjudicação do imóvel matriculado sob o número 32.011.

O apelante reafirmou a incomunicabilidade causa mortis dos bens do autor da herança, tendo em vista a presença de cláusula nesse sentido na escritura pública de união estável celebrada pelos companheiros em vida.

O Desembargador Corregedor Geral da Justiça, em seu voto, rechaçou os argumentos deduzidos no apelo e manteve a solução adotada na sentença quanto a esse ponto. Todavia, levantou novo óbice para a realização do inventário extrajudicial no caso concreto:

Não se desconhece a equiparação do companheiro ao cônjuge sobrevivente, que, com o advento do novo Código Civil, foi elevado à posição de herdeiro necessário, em concorrência com eventuais descendentes e ascendentes.

Ocorre que, independentemente dessa equiparação, o fato é que a união estável deve existir à época da abertura da sucessão para fins de recebimento de herança pelo companheiro supérstite.

No caso dos autos, contudo, a escritura de inventário e adjudicação lavrada não conta com a participação dos outros possíveis herdeiros do falecido, não sendo cabível presumir que a união estável reconhecida pelos companheiros efetivamente perdurou até o óbito do autor da herança. A escritura de declaração de convivência homoafetiva apresentada serve para comprovar a qualidade de companheiro do apelado, mas não para comprovar que essa união estável ainda existia na data da abertura da sucessão.

Como ensina Euclides de Oliveira: ‘Da mesma forma como nasce, tipicamente informal, a união estável prescinde de reconhecimento judicial de sua existência ou de sua dissolução para que opere efeitos jurídicos entre os companheiros.

(…)

A união estável, diversamente do que acontece no casamento, não exige procedimento judicial para sua dissolução. (…) a dissolução se dá pelo simples rompimento da vida em comum, sem maiores formalidades’.

Daí porque, sem a anuência dos demais interessados na herança, isto é, dos irmãos do falecido, não há como se afirmar que os companheiros ainda viviam em união estável à época da abertura da sucessão, o que configura inafastável óbice ao registro da escritura de inventário e adjudicação lavrada pelo apelado”.

Em suma, o Desembargador Corregedor entende não haver prova de que a união estável perdurou até a morte de um dos companheiros, o que seria imprescindível para a realização do inventário extrajudicial e consequente registro da escritura de inventário e adjudicação lavrada pelo companheiro sobrevivente. Inexistente tal comprovação e ausente também manifestação de concordância dos possíveis interessados na herança com a adjudicação do imóvel ao apelado, reconheceu a impossibilidade de realização extrajudicial do inventário, dando, assim, provimento ao recurso.

Esta a síntese do necessário.

I – Pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

II – Inicialmente, não há necessidade de abordar mais a fundo a questão referente à existência de cláusula de inalienabilidade e a ausência de repercussão dessa circunstância nos direitos hereditários do apelado. Essa controvérsia foi bem decidida no voto do E. Corregedor Geral da Justiça, em solução com a qual aquiesço integralmente.

Transcrevo, no que de perto interessa ao equacionamento desta questão, as lúcidas ponderações lançadas pelo E. Corregedor Geral da Justiça:

“…. para qualificação do título apresentado a registro não há que se falar em interpretar ou supor a vontade do falecido, mas sim, é preciso observar os princípios e normas legais vigentes e aplicáveis ao caso concreto.

A propósito, cumpre anotar que o imóvel objeto da matrícula nº 32.011 não está gravado com cláusula de incomunicabilidade que, aliás, sequer poderia ser instituída pelo titular do domínio em seu próprio favor. Em verdade, a escritura indicada pelo registrador como motivo da recusa permite concluir que a intenção dos companheiros foi a de reconhecer que o imóvel era de propriedade exclusiva de Antônio Floriano, com instituição do direito real de usufruto em favor de Sebastião Costa. Por conseguinte, não seria partilhado em caso de eventual dissolução da união estável em vida, aplicando-se à hipótese as regras de Direito de Família.

Esse fato, porém, não implica vedação ao recebimento do imóvel pelo companheiro, por sucessão hereditária, que é causa distinta da submissão do patrimônio a determinado regime de bens decorrente da união estável. Nesse caso, devem ser aplicadas as regras do Direito das Sucessões”.

III – A divergência, assim, cinge-se à parte final de seu voto, na qual levantou óbice distinto do afirmado no recurso de apelação. Nesse particular, respeitada a orientação contrária do E. Corregedor Geral da Justiça, entendo não haver necessidade de exigir do apelado prova de que a união estável, nesse caso formalizada por escritura pública, perdurou até a abertura da sucessão, tampouco se justifica determinar a comprovação da anuência dos colaterais, integrantes da próxima classe da sucessão legítima. Essas exigências não encontram respaldo normativo e, mais que isso, não se justificam nem mesmo por cautela, diante das circunstâncias do caso concreto.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal igualou, em sede de repercussão geral, as regras do regime sucessório estabelecido entre cônjuges e entre companheiros. O v. acórdão foi assim ementado:

Ementa: Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Aplicação do artigo 1.790 do Código Civil à sucessão em união estável homoafetiva. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011) 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. 3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (STF, RE nº 646.721/RS, Tribunal Pleno, j. 10/05/2017, rel. p/ acórdão Min. Roberto Barroso).

Consequentemente, o companheiro, agora, é tratado como cônjuge, razão pela qual herda sozinho na falta de descendentes e ascendentes vivos do autor da herança, independentemente da existência de irmãos ou outros colaterais (art. 1.829, III, do Código Civil). É esse o caso dos autos.

Ao comentar o julgado do Supremo Tribunal Federal, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald [1] ressaltam que as regras sucessórias do casamento, assim, norteiam a sucessão da união estável em todos os seus diferentes níveis e consequências.

Nessa quadra, somente se justifica o estabelecimento de diferença de tratamento entre cônjuges e companheiros na esfera sucessória quando as particularidades da união estável em relação ao casamento trouxerem riscos à segurança jurídica ou ao direito de terceiros, notadamente em virtude da falta de formalidade e publicidade que normalmente são características inerentes à união estável.

No caso concreto, no entanto, tendo os companheiros optado pela formalização da relação de convivência em regime de união estável por escritura pública, declarando de comum acordo seu termo inicial e estabelecendo disposições patrimoniais, era de se presumir a permanência do vínculo à época da abertura da sucessão.

Notadamente porque, da detida análise dos autos nada se extrai a justificar desconsiderar-se a reivindicação do companheiro supérstite quanto à condição de herdeiro universal, consentânea, aliás, com a inércia dos colaterais que, passados mais de cinco anos da abertura da sucessão não tomaram qualquer providência em relação ao inventário dos bens deixados pelo de cujus.

Entendimento em sentido contrário, com a devida vênia, inverte a lógica da presunção de boa-fé que milita em favor do companheiro supérstite na espécie, tanto quanto a de que o ônus da reivindicação da herança pesa sobre o sedizente herdeiro tido por injustamente excluído da sucessão.

Em reforço a tais ponderações, impõe-se registrar que na certidão de óbito do de cujus compareceu como declarante seu irmão, João Aparecido Floriano, constando do documento, presume-se, por reconhecimento do declarante, que o falecido vivia em união estável com Sebastião Costa (fls. 15), circunstância a corroborar a presunção de boa-fé com que este se houve ao lavrar a escritura de inventário, declarando-se herdeiro universal.

Tenha-se presente ainda que, a despeito do regime formal do casamento, com reflexos na desconstituição do vínculo matrimonial, a exigir o divórcio, não se pode olvidar os efeitos da separação de fato sobre a legitimação sucessória do cônjuge supérstite, a teor do disposto no art. 1.830 do CC. Nem por isso se legitimaria, em contexto análogo, de inventário extrajudicial promovido por cônjuge supérstite, dizendo-se herdeiro universal, cogitar-se da necessária aquiescência dos colaterais, desnudando-se, pois, o desarrazoado discrímen que se pretendeu impor ao apelado, em contexto de união homoafetiva.

Definitivamente, houvesse o apelado ingressado com o inventário judicial, não haveria o menor sentido em cogitar-se da citação dos colaterais. Afinal, considerando-se que a sucessão legítima é estabelecida segundo uma ordem preferencial de classes de herdeiros (CC, art. 1829), precedendo o companheiro supérstite aos colaterais, estes últimos sequer ostentariam a condição de herdeiros, não concorreriam à herança e, portanto, não integrariam o litisconsórcio necessário que o art. 626 do CPC impõe no inventário judicial.

Resta assim, para lá de evidenciado, o acerto da ponderação lançada pelo D. Procurador de Justiça oficiante nos autos, no sentido de que “o Oficial extrapolou a análise dos aspectos extrínsecos do título e das regras previstas na Lei dos Registros Públicos, para examinar aspectos inerentes à sucessão hereditária” (fls. 306).

Ressalto, por fim, que não altera o entendimento desta Presidência a previsão abstrata do art. 18 da Resolução CNJ nº 35, de 24.4.2007, segundo o qual “O(A) companheiro(a) que tenha direito à sucessão é parte, observada a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável”.

Com efeito, para além da circunstância de o dispositivo regulamentar invadir competência material reservada da União, inovando o ordenamento jurídico onde não é dado ao C. Conselho Nacional de Justiça fazê-lo, sua releitura à luz do subsequente precedente vinculante do E. Supremo Tribunal Federal acima citado é de rigor, a tornar em tudo e por tudo desarrazoada a remessa obrigatória do companheiro supérstite à via judicial no caso concreto, vedando-lhe o acesso ao inventário extrajudicial.

Daí prevalecer, no contexto fático subjacente ao expediente, a norma preconizada pelo art. 26 do mesmo ato normativo, segundo a qual “Havendo um só herdeiro, maior e capaz, com direito à totalidade da herança, não haverá partilha, lavrando-se a escritura de inventário e adjudicação de bens”.

Uma última observação se impõe. Não se há cogitar de qualificação negativa da escritura de inventário, pela ausência de documentos concernentes ao óbito dos ascendentes do de cujus, aspecto sequer cogitado no expediente, exceção feita ao respeitável voto do E. Corregedor Geral da Justiça.

Isso porque por decorrência do dever de diligência que sobre a atividade notarial pesa, é de se presumir tenha sido verificada a inexistência de herdeiros necessários na linha ascendente, sem o que não seria viável a lavratura da escritura como se deu.

De mais a mais, embora não se olvide que a apelação devolve integralmente a análise da qualificação do título, dando ensejo, bem por isso, à possibilidade de recusa do registro por fundamento diverso do apresentado, não me parece razoável o provimento do recurso com base em questão em nenhum momento sequer ventilada, e na contramão da presunção de observância do dever de diligência do notário, mormente tendo em vista a possibilidade excepcional de regularização em nova nota devolutiva, ainda que prejudicada a prenotação precedente.

Salvo melhor juízo, a solução aqui propugnada considera a eloquência da lacuna quanto à menção ao passamento dos ascendentes, tendo em vista que o de cujus veio a óbito já em avançada idade, aos 68 anos, prestigia a qualificação notarial, fomenta a desjudicialização e a instrumentalidade registral, já que o registro não encerra um fim em si mesmo.

Acertada, pois, a decisão proferida pelo D. Juiz Corregedor Permanente da serventia extrajudicial, o desprovimento do apelo é medida de rigor.

IV – Diante do exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 30 de julho de 2019.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Presidente do Tribunal de Justiça

Relator Designado

VOTO 67979

DECLARAÇÃO DE VOTO CONVERGENTE

AP. 1003886-73.2018.8.26.0223

Acompanho o entendimento do e. Relator designado, para negar provimento ao recurso.

No caso em tela, foi interposto recurso de apelação contra a sentença que afastou a recusa ao registro de escritura pública de inventário e adjudicação envolvendo o imóvel matriculado sob o nº 32.011.

O apelante alega a impossibilidade de comunicabilidade do imóvel em favor do companheiro supérstite, pois ele foi agraciado, na escritura pública de união estável, com o usufruto vitalício do único bem que compõe a herança. Sustenta que o companheiro, ao aceitar o usufruto, concordou com a incomunicabilidade do bem e, agora, adota comportamento contraditório, em violação à boa-fé objetiva, ao pleitear a sua adjudicação.

A sentença do Juiz Corregedor Permanente já havia afastado o óbice apresentado pelo suscitado ao observar o entendimento do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade, em repercussão geral, do art. 1.790 do Código Civil ao distinguir o cônjuge e o companheiro para fins sucessórios:

É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.” (RE 646721/RS – j. 10/05/17, Relator Min. Marco Aurélio, e RE 878694/MG j. 10/05/17, Rel. Min. Roberto Barroso).

Em consequência, na ordem de vocação hereditária, o companheiro prefere aos colaterais como herdeiro universal, nos termos do art. 1.829, inciso III, do Código Civil.

Tampouco podem ser acolhidas as razões recursais trazidas pelo Ministério Público, pois, consoante o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, a cláusula de incomunicabilidade, inserida na escritura pública de união estável homoafetiva, não se confunde com a vocação hereditária:

Logo, a disposição patrimonial estabelecida entre os conviventes não poderia produzir efeitos após o falecimento de um deles, por ‘inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial’ (REsp 1.472.945/RJ).

Assim, ainda que pactuado tal cláusula de incomunicabilidade, o apelado não perde a condição de herdeiro do bem deixado pelo falecido, por força do disposto no art. 1.829, inciso III, do Código Civil, e do entendimento firmado pelo E. Supremo Tribunal Federal, nos Recursos Extraordinários nº 646.721 e nº 878.674 (…)” (fls. 306/307).

De fato, a cláusula de incomunicabilidade não pode privar o cônjuge ou o companheiro do direito hereditário que lhe cabe, na falta de ascendentes e descendentes. A incomunicabilidade dos bens refere-se ao regime desses bens na constância do casamento ou da união estável e não se confunde com a sucessão legítima, que regula a transmissão de bens causa mortis.

Por sua vez, no tocante à permanência da união estável à época do falecimento, vale lembrar que, segundo a escritura pública, a união estável entre os companheiros iniciou-se no ano 2002 e, em 2010, foi formalizada por escritura. O óbito do autor da herança ocorreu no ano 2015, ou seja, apenas cinco anos após a elaboração da escritura pública de união estável homoafetiva.

Após o óbito, os irmãos do falecido não ajuizaram ação de inventário nem impugnaram, extra ou judicialmente, a existência da união estável ou a condição do apelante de herdeiro universal.

Ao contrário, um dos irmãos do falecido, João Aparecido Floriano, foi o declarante na certidão de óbito e reconheceu que seu irmão vivia em união estável com o apelado no momento de sua morte (fl. 17).

É verdade que, embora equiparados o casamento e a união estável, aquele permanece vigente enquanto não houver o divórcio, ao passo que essa pode se extinguir ainda na pendência de escritura pública de união estável. Afinal, trata-se de uma situação de fato. No entanto, a existência de escritura pública, não revogada, faz presumir a manutenção dessa união. Não há nenhuma razão para se inverter tal presunção, transformando a união estável em instável, notadamente à falta de algum indício de dissolução dessa união.

Em tais circunstâncias, é de rigor a manutenção da decisão do Juiz Corregedor Permanente da serventia extrajudicial.

Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 12 de setembro de 2019.

Campos Mello

Presidente da Seção de Direito Privado

Notas:

[1] Curso de Direito Civil, Volume 6, 10ª Edição, pág. 528, Ed. Juspodivm, Salvador/BA, 2018.

(DJe de 25.09.2019 – SP)