1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Pedido de reconhecimento sobre bens próprios, incluindo área remanescente – Impossibilidade no caso concreto, necessidade de pedido de reconhecimento tão somente sobre a área remanescente – Dúvida procedente.

Dúvida – Notas

– S. J. D. I. 20 Ltda.

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 4º Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de S. J. D. I. 20 Ltda. A negativa se pauta na impossibilidade da realização do procedimento de usucapião nos moldes requeridos pela suscitada, uma vez que as áreas das matrículas nºs 152.077, 162.079, 54.992, 186.841, 171.064, 59.974, 174.875, 83.581, 35.608, 122.678, 119.126, 178.156, 133.114, 22.853, 21.623, 24.360, 25.529, 29.417 e 29.418, objeto da usucapião extrajudicial, já são de propriedade da suscitada. Esclarece o Registrador que o procedimento pretendido, inicialmente, deveria referir-se somente à área remanescente não matriculada, relativa às transcrições de nºs 32.224 e 32.696, em atendimento ao princípio da especialidade objetiva. Juntou documentos às fls. 04/743.

A suscitada apresentou impugnação às fls. 747/762. Afirma que não há óbice quanto ao fato de ser proprietária de parte do que hoje compõe a área total do imóvel usucapiendo, pois sua real pretensão é o reconhecimento não só dos terrenos relativos às matrículas apresentadas ou aos “corredores” não matriculados, mas ao imóvel como um todo, que não possui qualquer lastro ou origem registral, logo não faria sentido usucapir a fração remanescente das transcrições de nºs 32.224 e 32.696. Destaca que a situação dominial preexistente não pode ser invocada como óbice ao prosseguimento do processo de usucapião, que apenas dependeria de comprovação do estado de fato e da qualidade da posse sobre a área objeto da ação de usucapião. Por fim, requer que seja julgada improcedente a Dúvida, afastando o óbice apontado pelo Oficial, permitindo consequentemente o processamento do procedimento de usucapião extrajudicial.

O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida, com a manutenção do óbice apontado pelo Registrador (fls. 765/767).

É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir.

Com razão o Registrador, bem como a D. Promotora de Justiça. De início, cumpre dizer que no procedimento administrativo de dúvida suscitada em face de pedido extrajudicial de usucapião, a cognição do Juiz Corregedor é limitada e seu poder de decisão depende da razão que a motivou.

Assim, se a dúvida é suscitada ao final do procedimento extrajudicial em face de negativa apresentada referente ao mérito do pedido, quando, por exemplo, o Oficial não reconhece a existência da posse ou do tempo necessário para a prescrição aquisitiva, cabe ao Juiz Corregedor analisar o preenchimento dos requisitos para a usucapião, como verdadeiro órgão recursal a decidir a existência, ou não, do direito ali pleiteado.

No presente caso, a pretensão da suscitada vai de encontro ao procedimento registrário entabulado em nosso sistema legal. Segundo o disposto no artigo 13, parágrafo 2º do Provimento 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça, deve ser evitado o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários.

Não se pode registrar título de imóvel no qual não há identidade entre a futura configuração e a matrícula (registro) anterior, como regrado pelo artigo 225, parágrafo 2º da Lei 6.015/1973. Impossível se torna o registro de parte ideal demarcada de maior porção, sem a precisão delimitativa em comparação aos demais registros contíguos.

A ausência de descrição clara da metragem na gleba dividida abre margem de risco à ofensa de direitos de terceiro, assim faz sentido a diligência do Oficial na situação em tela. Ressalto que não deve ser considerado ilógico a usucapião de imóvel próprio em situações excepcionais, a serem analisadas pontualmente.

O artigo jurídico publicado pelos renomados Desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha e Juiz de Direito Alexandre Dartanham de Mello Guerra, abordando o assunto em destaque, elucida que:

“Não nos parece que deva prevalecer o entendimento invariavelmente contrário à usucapião de coisa própria. Não há, sistematicamente, ausência de interesse processual nessas circunstâncias. A utilidade da usucapião, em casos dessa ordem, reside justamente em pretender-se a declaração originária de propriedade imobiliária (própria da usucapião). Trata-se de situação excepcional, por certo, que exige análise prudente, criteriosa, mas que não deve ser negada indiscriminadamente. A hipótese em estudo revela a utilidade da aplicação concreta da segunda finalidade da usucapião: servir como forma de sanear aquisições derivadas imperfeitas” (g.N).

Nos autos de Apelação Cível nº 0005389-28.2011.8.26.0180, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua 4ª Câmara de Direito Privado, em voto do primeiro autor deste ensaio (voto nº 37.261), foi a questão das consequências jurídicas da usucapião como forma originária de aquisição de propriedade examinada. A questão foi assim ementada:

“Usucapião. Ação interposta 17 anos após a aquisição do bem via compromisso particular de compra e venda. Aplicação do artigo 1242 do Código Civil. Imóvel situado em loteamento irregular e sem inscrição em registro imobiliário. Irrelevância. Usucapião que suprime os vícios anteriores. Sentença mantida. Recursos improvidos”.

Logo, para a admissão da possibilidade da usucapião de coisa própria, deverá haver uma análise minuciosa do fato concreto ou seja, dependem dos fundamentos jurídicos invocados e consequentemente a possibilidade de um juízo de mérito, sob pena de conforme acima mencionado constituir burla a lei, especificamente em relação ao recolhimento tributário.

Feitas estas breves considerações, na presente hipótese, busca a suscitada como extraído do requerimento reproduzido nos documentos de fls. 183/217, a unificação de todos os imóveis matriculados sob os nºs 152.077, 162.079, 54.992, 186.841, 171.064, 59.974, 174.875, 83.581, 35.608, 122.678, 119.126, 178.156, 133.114, 22.853, 21.623, 24.360, 25.529, 29.417 e 29.418, assim como da área remanescente das transcrições nºs 32.224 e 32.690.

Para perseguição da pretensão acima explicitada, o pedido para usucapir as referidas matrículas não se demonstra apropriado. Como bem exposto pela D. Promotora de Justiça, os imóveis matriculados possuem escrituração, transações anteriores, logo deve obedecer ao princípio da continuidade, cujo encadeamento de titularidade confere segurança ao registro.

Destaco que, para a abertura da pretendida nova matrícula, deve primeiramente ser regularizada a situação relativa às áreas remanescentes das transcrições de nºs 32.224 e 32.696. Neste sentido o artigo 234 da Lei 6.015/1973 determina que para a abertura de nova matrícula pela fusão, é necessário averbar nas matrículas primitivas o encerramento de cada uma delas, noticiando-se a abertura de uma nova. Logo, a usucapião deve ater-se exclusivamente a área remanescente das transcrições nºs 32.224 e 32.690, e posteriormente poderá a suscitada pleitear a unificação das matrículas.

Ante o exposto, julgo procedente a dúvida suscitada pelo 4º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de “S. J. D. I. 20 Ltda.”, determinando o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que deverá arquivar o feito e cancelar a prenotação, cabendo à interessada iniciar o procedimento judicial se assim entender pertinente, podendo aproveitar-se dos documentos já apresentados.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Oportunamente remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

(DJe de 16.07.2019 – SP)