CSM|SP: Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Necessidade de instrução do requerimento com ata notarial – Art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 e art. 4º, inciso I, do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça – Alegação de incompatibilidade da exigência formulada com a natureza jurídica e a finalidade da ata notarial – Exigência legal e normativa que não pode ser afastada, em procedimento de natureza administrativa, pelos fundamentos apresentados pelo apelante – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1002887-04.2018.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são partes são apelantes ANTONIO DE MELO e NELEY DE MELO, é apelado 18 CARTORIO DE REGISTRO DE IMOVEIS DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 30 de outubro de 2018.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1002887-04.2018.8.26.0100

Apelantes: Antonio de Melo e Neley de Melo

Apelado: 18 Cartório de Registro de Imóveis da Capital

VOTO Nº 37.530

Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Necessidade de instrução do requerimento com ata notarial – Art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 e art. 4º, inciso I, do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça – Alegação de incompatibilidade da exigência formulada com a natureza jurídica e a finalidade da ata notarial – Exigência legal e normativa que não pode ser afastada, em procedimento de natureza administrativa, pelos fundamentos apresentados pelo apelante – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.

Trata-se de apelação interposta por Antonio de Melo e Nely de Melo contra r. sentença que manteve a recusa do Sr. 18º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo em promover o registro de aquisição da propriedade de imóvel por usucapião porque o procedimento extrajudicial não foi instruído com a ata notarial prevista no art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73.

Os apelantes, nas razões de recurso, tecem comentários sobre a natureza e a finalidade da ata notarial que não seria compatível com o efeito de atestar posse durante o período da prescrição aquisitiva. Asseveram que a exigência da ata notarial viola o princípio da economia porque o Conselho Nacional de Justiça não tem competência para a fixação de emolumentos. Requerem: “b) O reconhecimento da impossibilidade física do Tabelião de Notas atestar a posse e tempo; c) O reconhecimento da impossibilidade jurídica do Tabelião de Notas em declarar um direito decorrente de uma situação de fato; d) O reconhecimento da disfuncionalidade e desvirtuamento do instituto pelo art. 216-A, inciso I, da Lei nº 6.015/73; e) O reconhecimento da natureza jurídica da ata notarial no plano da eficácia ser considerado um ato-fato jurídico. f) O reconhecimento dos pressupostos da ata notarial serem a ocorrência de um fato presente e a presença pessoal do Tabelião de Notas no mesmo momento; g) O reconhecimento da inexistência de IMEDIAÇÃO NOTARIAL nas atas notariais pela incompatibilidade com sua natureza jurídica; h) O reconhecimento da impossibilidade de lavratura de ATA NOTARIAL EM SENTIDO ESTRITO no procedimento de usucapião administrativo; i) O reconhecimento do dever de julgamento do Oficial de Registro de Imóveis no exame das provas juntadas” (fls. 469/470).

A douta Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 487/489).

É o relatório.

Cuida-se de procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião de imóvel urbano, processado diretamente perante o Oficial de Registro de Imóveis, em que fundada a recusa do registro na falta da ata notarial prevista no art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73, assim redigido:

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:

I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);

(…)”.

Por constituir requisito do procedimento extrajudicial para reconhecimento da aquisição do domínio de imóvel por usucapião, destinado a atestar o tempo de posse pelo requerente e seus antecessores, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, em que dispõe sobre os elementos que devem constar da ata notarial:

Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos:

I – ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste:

a) a descrição do imóvel conforme consta na matrícula do registro em caso de bem individualizado ou a descrição da área em caso de não individualização, devendo ainda constar as características do imóvel, tais como a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo;

b) o tempo e as características da posse do requerente e de seus antecessores:

c) a forma de aquisição da posse do imóvel usucapiendo pela parte requerente;

d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base legal ou constitucional;

e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições;

f) o valor do imóvel;

g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes; (…)”.

O recurso interposto, em sua essência, visa o controle da legalidade do art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 e da norma oriunda da Eg. Corregedoria Nacional de Justiça.

Contudo, não se verifica a existência de inconstitucionalidade evidente, nem de antinomia jurídica decorrente de incompatibilidade entre as normas que regem a atividade do tabelião de notas a comportar, neste procedimento, a solução de conflito real ou aparente de normas.

Assim porque a exigência de apresentação de ata notarial para instruir o requerimento extrajudicial de reconhecimento da aquisição de imóvel por usucapião decorre de interpretação literal do inciso I do art. 216 da Lei nº 6.015/73, sem que exista outra norma que induza solução diversa.

Essa interpretação não se afasta pela finalidade da ata notarial atestar: “…o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias…”, pois são as provas sobre o tempo de posse que deverão ser indicadas segundo o que for apurado pelo Tabelião de Notas em conformidade com o caso concreto e as circunstâncias que identificar como elementos de caracterização do seu exercício.

Portanto, dessa norma não se extrai a conclusão de que a ata notarial somente é necessária nos casos em que não forem produzidas outras provas suficientes para o reconhecimento da aquisição do domínio pela usucapião.

Ao contrário, a ata notarial constitui requisito essencial do requerimento administrativo de reconhecimento da aquisição de imóvel por usucapião porque assim previsto em lei, e para que atenda essa finalidade o art. 4º, inciso I, alíneas “a” a “g”, do Provimento nº 65/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, especifica os requisitos mínimos que devem ser observados em sua lavratura.

Também não se constata a existência de incongruência entre a obrigatoriedade e a finalidade dessa ata notarial com o previsto no art. 384 do Código de Processo Civil:

Seção III

Da Ata Notarial

Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.

Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial“.

A atribuição do Tabelião de Notas para lavrar escrituras públicas em geral, e atas notariais de forma específica, está prevista no art. 7º, e incisos, da Lei nº 8.935/94 que não delimita os elementos de um ou de outro desses atos notariais.

Bem por isso, para a solução da dúvida é irrelevante verificar se a ata notarial prevista no art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 contém elementos puros de ato dessa natureza, ou se nela serão mesclados elementos próprios de escritura pública com finalidade diversa, pois em ambos se encontram presentes a exigência do instrumento público e o respeito à competência exclusiva do Tabelião de Notas.

Não se acolhem, em consequência, a pretensão de reconhecimento de que a natureza jurídica da ata notarial e os pressupostos para sua lavratura são dissonantes da finalidade prevista no art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73.

Por iguais razões afasta-se a alegação de que a ata notarial na forma como exigida seria incompatível com a natureza dessa espécie de ato que tem por finalidade conter a narrativa dos fatos presenciados pelo Tabelião de Notas, sem a sua intervenção no desenvolvimento desses fatos e nas manifestações de vontades que forem manifestadas em sua presença.

Reitero, neste ponto, que o art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 permite claro entendimento do conteúdo que deve ser contido na ata notarial a que se refere, razão pela qual o ato a ser lavrado pelo Tabelião de Notas deve observar esses requisitos independentemente da denominação que se lhe atribua.

Rejeitam-se, pois, as pretensões de reconhecimento da inexistência de imediação notarial nas atas notariais pela incompatibilidade com sua natureza jurídica e de reconhecimento da impossibilidade de lavratura de ata notarial em sentido estrito para instruir o procedimento de usucapião extrajudicial (fls. 470).

Ao prever a via extrajudicial para o reconhecimento da aquisição de domínio de imóvel por usucapião a atual legislação afastou anterior obrigatoriedade de ação de natureza contenciosa e inovou ao prever a necessidade de ata notarial destinada a instruir procedimento que tem curso perante Oficial de Registro de Imóveis, o que fez por considerar necessária a fé pública notarial no ato que é atribuído ao Tabelião de Notas.

E o Oficial de Registro de Imóveis, em atividade de natureza administrativa, não pode afastar requisitos legais e normativos sob o fundamento de que lhe compete qualificar de forma exaustiva os documentos que formam o título levado à registro.

Portanto, em outros termos, não pode o Oficial de Registro de Imóveis afastar a apresentação da ata notarial, que é requisito legal do procedimento extrajudicial de reconhecimento da aquisição de domínio de imóvel por usucapião, sob o fundamento de que outros documentos, embora não dotados de fé pública notarial, supririam essa exigência.

Em razão da expressa previsão legal dos requisitos do procedimento extrajudicial de usucapião, eventual recusa da apresentação de um dos documentos previstos em lei somente poderá ser contornada mediante recurso às vias ordinárias, ou seja, à ação jurisdicional para a declaração da aquisição do domínio do imóvel pela usucapião.

Por sua vez, e ainda considerando a finalidade e a natureza do ato notarial previsto no art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73, não há como reconhecer a impossibilidade física do Tabelião de Notas obter as informações necessárias à lavratura da ata notarial que são as previstas no art. 4º, inciso I, alíneas “a” a “g”, do Provimento nº 65/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça.

Afasta-se, igualmente, a alegação de impossibilidade jurídica do Tabelião de Notas em declarar direito que decorreria de situação de fato.

O inciso I do art. 216 da Lei nº 6.015/73 não atribui ao Tabelião de Notas a declaração do direito ao reconhecimento da aquisição do domínio do imóvel pela usucapião, mas somente a identificação e descrição dos fatos nele previstos, com atendimento da regulamentação promovida pela autoridade competente (art. 30, inciso XIV, da Lei nº 8.935/94).

Por iguais motivos, e porque decorrente de previsão legal, não há que se falar em ausência de funcionalidade e desvirtuamento do instituto pela exigência da ata notarial como requisito do procedimento extrajudicial de reconhecimento da aquisição de imóvel por usucapião.

Por fim, o procedimento de dúvida não se mostra adequado para a discussão sobre a incidência de emolumentos pela lavratura de ata notarial diante da competência atribuída à Corregedoria Geral da Justiça pelos arts. 29 e 30 da Lei Estadual nº 11.331/2002 e porque, ademais, neste procedimento não se discute sobre os valores efetivamente cobrados pela lavratura de ata, mas a recusa dos apelantes em apresentá-la ao Oficial de Registro de Imóveis.

Ante o exposto, pelo meu voto nego provimento ao recurso.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 06.03.2019 – SP)