CGJ|SP: Tabelião de Notas – Recurso administrativo – Pedido de providências – Ausência de indícios de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 a ensejar instauração de processo administrativo disciplinar – Lavratura de procuração a pessoa idosa – Limitação do poder da apuração do Notário – Critério etário que não pode significar impedimento ao ato – Recurso desprovido.

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Recurso Administrativo nº 1101300-86.2017.8.26.0100

CONCLUSÃO

Em 17 de abril de 2018, conclusos ao Excelentíssimo Senhor Doutor Paulo Cesar Batista dos Santos, MM. Juiz Assessor da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

(279/2018 -E)

TABELIÃO DE NOTAS. Recurso administrativo. Pedido de providências. Ausência de indícios de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 a ensejar instauração de processo administrativo disciplinar. Lavratura de procuração a pessoa idosa. Limitação do poder da apuração do Notário. Critério etário que não pode significar impedimento ao ato. Recurso desprovido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso administrativo interposto por S. A. D. contra r. sentença que determinou o arquivamento do pedido de providências movido em face do 2° Tabelião de Notas da Capital, alegando suposta irregularidade na lavratura de procurações públicas outorgadas por sua tia, I. D., já falecida.

Segundo o recorrente, é de rigor a abertura do processo administrativo disciplinar, diante das manifestas irregularidades ocorridas na serventia extrajudicial, quando da lavratura das referidas procurações, tendo em vista a idade e condições pessoais da outorgante.

Pretende o recorrente a reforma da r. sentença, para cancelamento das procurações lavradas, desde o falecimento da outorgante I. D., bem como declarada a irregularidade dos mandatos.

A D. Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento parcial do recurso, para que seja determinada a revogação das procurações desde a data do óbito da outorgante.

É o relatório.

Opino.

O recorrente é sobrinho da falecida outorgante, I. D., afirmando que ela era pessoa idosa, viúva e sem filhos, que apresentava saúde delicada, razão pela qual os sobrinhos ajustaram com o zelador J. R. S. L. e sua esposa E. da C. M. que esses prestariam todo o auxílio necessário à tia.

Em maio de 2017, depois do óbito de I. D., o recorrente, nomeado o inventariante do espólio, teve ciência que J. R. figurava como outorgado em diversas procurações públicas outorgadas por sua falecida tia, conferindo-lhe poderes para movimentar contas bancárias e alienar um imóvel.

A decisão recorrida foi tecnicamente precisa ao reconhecer os fatos relevantes para a apuração, em especial quanto à inexistência de elementos concretos a ensejar a instauração de processo administrativo disciplinar.

A outorgante era idosa, com 97 anos de idade, não possuía filhos e marido, com irmãos todos falecidos, recebendo os cuidados de sobrinhos.

Exercendo a função de inventariante, o recorrente se deparou com movimentações nas contas da falecida, com um saque no valor de R$ 5.000,00 e duas transferências eletrônicas, perfazendo o valor de R$ 31.000,00, em nome do zelador J. R..

As procurações outorgavam poderes de representação junto ao: (I) Banco Bradesco, lavrada em 24 de abril de 2017; (II) INSS, lavrada em 24 de abril de 2017; (III) Banco Citibank, lavrada em 10 de maio de 2017; (IV) outorga de poderes para a venda de imóvel localizado na cidade de Jundiaí, de propriedade da falecida, lavrada em 24 de abril de 2017; (V) escritura de venda e compra do referido imóvel, no valor de R$ 247.000,00, lavrada em 12 de maio de 2017.

O fato de o recorrente ter sido eventualmente lesado com a lavratura dos atos não pode ser considerado como elementar da hipótese de incidência da responsabilidade disciplinar.

Ou seja, embora a tipicidade disciplinar não seja tão restrita quanto à penal, a ocorrência de dano ao usuário e/ou seus parentes não é parte integrante das suas elementares.

Nunca é demais lembrar que a responsabilidade penal, civil e administrativa são, em regra geral, autônomas.

Independentemente da ocorrência ou não de dano, em matéria censória, o enfoque é outro: é preciso haver subsunção do fato à hipótese prevista como infração disciplinar, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.

Na hipótese, o fato da outorgante contar, à época, com 97 anos de idade não a tornava incapaz, por si só, para os atos da vida civil.

Aliás, a Lei n° 10.741/2003 assegura ao idoso todos os direitos inerentes à pessoa humana, não sendo possível privá-lo do acesso a todos os atos da vida civil, ressalvado manifesto risco de ofensa ou abuso contra a sua pessoa, nos termos do art. 2° do referido diploma:

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de iberdade e dignidade.

A mesma lei ainda veda a discriminação ao idoso, seja sob qual fundamento for:

Art. 4º Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

É verdade que o § 1° do referido artigo dispõe que: “É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso”. Contudo, essa prevenção ao risco somente poder ser levada a efeito quando houver, de fato, manifestos e fundados motivos para se negar o acesso do idoso à lavratura de atos que apenas instrumentalizam sua declaração de vontade.

Embora o recorrente informe que a outorgante não andava mais e respirava com a ajuda de aparelhos, não há qualquer documento médico atestando sua referida incapacidade ou limitação mental. E mais, se realmente incapaz estivesse, caberia ao próprio recorrente a propositura de ação para a decretação de sua interdição.

Os atos notariais foram praticados em diligência, o escrevente foi até à residência da outorgante, e constatou que não havia indícios manifestos de comprometimento mental, embora houvesse comprometimento físico.

Também não era exigível que fosse lavrado “termo de doação”, ao invés de procuração; a uma, porque a vontade declarada era de lavratura de uma procuração; a duas, porque não se poderia exigir fosse lavrada a suposta “promessa de doação”, o que sequer seria cabível.

O recorrente afirma supostos indícios de incapacidade da outorgante por sua “assinatura tremida” lançada no cartão de assinatura (fl. 139), o que também não é critério para que seja atestado comprometimento mental.

E não há nada nos autos que comprove que a vontade da outorgante não era aquela declarada, ou seja, que ela não queria outorgar as procurações para aquela determinada pessoa e com aqueles determinados poderes.

Fosse assim, entraríamos no terreno perigoso do relativismo, pois dificilmente saberíamos dizer qual é a idade limite para que se outorgue procuração livremente, não se sabendo se aos 90, 95, 85 anos ou outra idade qualquer.

Qualquer escolha que não fosse fundada em critérios previstos em lei significaria diferenciação injustificada e inconstitucional, por ofensa ao art. 5° da Constituição Federal, e poderia, em tese, caracterizar o tipo penal do art. 96, do Estatuto do Idoso.

E nem se diga que o Tabelião teria responsabilidade disciplinar por não dar preferência a parentes, ao invés de pessoas sem vínculos de consanguinidade.

Não existe qualquer disposição legal dando preferência a parentes no momento de outorga de mandatos. Ora, o outorgante outorga poderes a quem quiser, de acordo com seu grau de confiabilidade no fiel cumprimento dos poderes outorgados.

É comum, inclusive, que pessoas tenham mais afinidade e confiança com amigos sem vínculo de sangue do que em relação a parentes em linha reta ou colateral.

Esse foi o caso, já que o zelador cuidava da idosa há mais de 10 anos, pois, os sobrinhos não dispunham de tempo para tanto. Inclusive, o próprio recorrente confessa que o óbito foi comunicado pelo zelador (fl. 123).

Quanto ao Item 131 das Normas de Serviço, tal regra traduz uma recomendação que, é claro, deve ser seguida, mas especialmente quando insinuado risco concreto de comprometimento patrimonial do idoso, o que não estava claro na hipótese.

Ademais, o referido Item limita o prazo a 1 ano e a um negócio jurídico determinado, o que não faria qualquer diferença no caso, já que os atos foram praticados dias depois da lavratura das procurações.

Repita-se, as regras normativas acima descritas são cautelas que devem ser tomadas e observadas, mas a sua ausência, por si só, não poder servir para punir quase que automaticamente o Tabelião, sob risco de má interpretação dos institutos que dão fundamento à responsabilidade disciplinar administrativa.

Diz o art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994, que:

Art. 31. São infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às penalidades previstas nesta lei:

I a inobservância das prescrições legais ou normativas;

II a conduta atentatória às instituições notariais e de registro;

Já o item 1.3, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça tem a seguinte redação:

1.3. É seu dever recusar, motivadamente, por escrito, a prática de atos contrários ao ordenamento jurídico e sempre que presentes fundados indícios de fraude à lei, de prejuízos às partes ou dúvidas sobre a manifestação de vontade.

Uma vez declarado pelas partes a intenção de efetivarem o ato notarial sob a responsabilidade legal do notário, ele passa a ter o dever legal de atuação, somente podendo se recusar a fazê-lo em casos de impedimento legal, físico ou ético, dúvida quanto à identidade ou capacidade das partes, dentre outras hipóteses restritas.

Se não há impedimento legal manifesto, não cabe ao notário se recusar à pratica do ato, seja por achar que determinada pessoa não represente uma boa procuradora, seja por entender que os poderes conferidos deveriam ser mais ou menos amplos.

Cabe, sim, o aconselhamento jurídico, a qualificação do ato pretendido e a orientação das partes quanto a eventual invalidade ou ineficácia do ato, o que, pela prova trazida, ocorreu na hipótese.

Recusar-se a fazê-lo, sem que haja impedimento legal absoluto, não seria lícito.

E a ausência de critério legal para a recusa é que retira a culpa do ato do notário, ou mesmo a existência de ato contrário à normatização correcional, que justifique a instauração de procedimento administrativo disciplinar.

No dizer da doutrina:

Em ambos os quadros [dolo e culpa em sentido estrito] a culpa é um mal, porque sempre implica uma desordenação voluntária relativa aos fins exigíveis da conduta humana. É exatamente porque se poderia e deveria agir de outro modo, para assim cumprir os fins a que se tinham por devidos, que alguém pode dizer-se culpado em dada situação concreta. Se, pois, a culpa pressupõe a possibilidade de ter agido de outra maneira, são seus pressupostos indispensáveis (II) a contingência da ação e (II) a liberdade de agir ou não agir, bem como a liberdade de agir de um modo ou de outro. Assim sendo, não há culpabilidade possível quanto não haja contingência na conduta e liberdade no exercício (a de agir ou não agir) e de especificação (a de eleger os meios de agir)1

É claro que a repercussão dos atos lavrados na serventia pode ter gerado prejuízos a terceiros, mas isso é matéria de competência da esfera criminal e civil, não administrativa, pois tal repercussão diz respeito à conduta dos supostos fraudadores, esses sim, caso tenham agido com culpa ou dolo, devem ser responsabilizados.

O que não se pode é usar os prejuízos materiais como fundamento para apuração disciplinar do Tabelião.

Não é demais lembrar que a função notarial comporta certa independência e discricionariedade. Por outro enfoque, também não lhe é permitido se negar à prática do ato notarial apenas com base em impressões pessoais.

Além disso, apesar do Notário ser um aconselhador, ao mesmo tempo ele está vestido de neutralidade, não podendo tomar posição e assumir o que está reservado à liberdade de declaração de vontade das partes.

Assim, a prestação notarial é de caráter obrigatório e não pode ser recusada, ressalvadas as hipóteses legais de impedimento subjetivo, nulidade e manifesta impossibilidade física ou mental.

Ausente impedimento legal para o ato que se realizava, ou seja, ausente a ilicitude absoluta do objeto em si, eventual responsabilidade administrativa do notário pela lavratura do ato caracterizaria o reconhecimento da culpa pela falta de consideração de elementos que, em linhas finais, ligam-se apenas à eficácia legal do ato, seja por nulidade absoluta, seja por nulidade relativa.

A fé pública do instrumento notarial não diz respeito, como regra geral, ao conteúdo da vontade declarada pelas partes, mas sim quanto à existência da declaração em si e, naturalmente, seus efeitos.

Exigir-se-ia do notário a prévia apuração da veracidade das declarações dos comparecentes, a fim de se verificar a existência ou não de ato simulado ou anulável por erro ou dolo, o que, no sistema brasileiro, não se admite.

Não poderia o notário afirmar fraude à lei ou vício na manifestação de vontade tão somente com base na idade avançada, dificuldades de locomoção e inexistência de vínculo de parentesco entre as partes, sem que ultrapassasse os limites legais de sua atuação, já que não há vedação legal para a ocorrência de nenhuma dessas circunstâncias.

Eventual nulidade ou ineficácia declarada por iniciativa de qualquer interessado não significa o reconhecimento de culpa do notário. O objeto era lícito, as partes, ao menos ao tempo de sua prática, eram capazes e a forma estava sendo observada.

O elemento subjetivo, aqui, não pode ser relegado a um segundo plano, certo que:

O agente deve ter praticado o ato tido por ilícito com a intenção de realizar a conduta ou, ao menos, faltando com o dever de cuidado na vigilância dos atos praticados por seus funcionários ou mesmo por ter dado orientações errada ou incompatíveis com a boa e leal prestação da função pública.2

Em situação semelhante, a Câmara Especial deste E. Tribunal decidiu neste sentido, nos autos do Recurso Administrativo n° 0048142-07.2015.8.26.0100, em trecho do voto do E. Relator Desembargador SALLES ABREU:

Não se exige deste a investigação da veracidade das declarações, nem de eventual ineficácia por conta de nulidade a ser arguida e demonstrada por terceiro interessado. A possível existência de fraude, quando vinculada ao aspecto subjetivo da manifestação de vontade, como no caso de reserva mental, não permite a interferência do notário, por significar um julgamento da vontade final e dissimulada pela vontade declarada. A fraude apta à recusa de lavratura do ato é objetiva, verificável entre o objeto da declaração e o ordenamento jurídico, e não em relação à causa ou intenção das partes, isentos da investigação pessoal do notário. Nem se diga, em complemento, que a escolha do regime de bens para a união estável que seja vedado ao cônjuge idoso, aceita pelo notário no ato declaratório, caracterizaria sua culpa administrativa a justificar a punição impugnada. A uma porque a declaração de como desde o passado teriam os companheiros estabelecido o regime de bens não estaria impedido pela existência de um regime legal. É que, diversamente do casamento, o regime de bens declarado na escritura declaratória de união estável tem efeito ex tunc, refletindo algo que já é quanto à relação patrimonial escolhida pelos companheiros, desde quando iniciada a convivência, enquanto no casamento o regime de bens tem efeitos ex nunc. Não caberia ao notário, assim, questionar algo que já é, conforme a declaração dos interessados, embora orientando-os quanto à possível ineficácia da escolha dos companheiros. A duas porque de duvidosa constitucionalidade o dispositivo que impõe regime legal de bens aos cônjuges maiores de 70 anos (art. 1.641, II, CC) autorizando a pretensão ao afastamento pelos companheiros, os quais poderiam buscar a manutenção da eficácia externa em caso de questionamentos por terceiros. Por tais ângulos, não se vê, por parte do apelante, cometimento de ilícito administrativo culposo, seja pela inevitabilidade do ato pretendido pelos declarantes, seja pela ausência de quebra de um dever legal a caracterizar conduta culposa. E sem tal conduta culposa, não há que se falar em responsabilidade disciplinar. A responsabilidade disciplinar administrativa do notário ou do registrador não pode prescindir da verificação de conduta dolosa ou culposa do imputado.

Assim, tem-se que o ato notarial realizado não exige a instauração de processo administrativo disciplinar, por não poder ser qualificado como culposo, especialmente à míngua de vício ou divergência entre a vontade declarada e os atos lavrados.

Por fim, deve ser mantido o desbloqueio das escrituras determinado na r. sentença, já que não há previsão normativa para cancelamento de procurações pela via administrativa.

O próprio Código Civil prevê expressamente que a morte leva à extinção do contrato de mandato, nos termos do art. 682, inciso II. Como dito, se nulidade houve, isso somente poderá ser declarado em devido processo legal, com contraditório e ampla defesa.

Ante o exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de negar provimento ao recurso.

Sub censura.

São Paulo, 12 de julho de 2018.

Paulo Cesar Batista dos Santos

Juiz Assessor da Corregedoria

CONCLUSÃO

Em 12 de julho de 2018, conclusos ao Excelentíssimo Senhor Desembargador GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, DD. Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria, por seus fundamentos que adoto, e nego provimento ao recurso.

São Paulo, 26 de julho de 2018.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça

Assinatura Eletrônica

________________

1DIP, Ricardo. Conceito e natureza da responsabilidade disciplinar dos registradores públicos. São

Paulo: Quartier Latin, 2017. Fl. 12.

2LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 246.