1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Negativa por parte do oficial – Alegação de que a autora deveria ingressar com ação de adjudicação compulsória, vez que possui direitos de compromissária compradora registrados na matrícula – Descabimento – Oficial que só pode negar o prosseguimento do feito quando não preenchidos os requisitos previstos nos arts. 3° e 4° do Provimento n° 65/2017 do CNJ – Compromisso de compra e venda que é documento apto ao ingresso do pedido de usucapião extrajudicial – O fato de a autora poder ingressar com adjudicação compulsória não a impede de optar pela usucapião extrajudicial, quando preenchidos os requisitos normativos – Eventual cautela do Oficial em relação ao recolhimento do ITBI poderá ser sanada com notificação à Municipalidade narrando sua suspeita de irregularidades – Dúvida improcedente.

Processo 1070011-04.2018.8.26.0100

Dúvida

Notas

2º Oficial de Registro de Imoveis da Capital

E. V. dos S.

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de E. V. dos S. F., após negativa de processamento de pedido extrajudicial de usucapião, cujo objeto é o imóvel matrículado sob o nº 83.906 na mencionada serventia.

Alega o Oficial que a suscitada possui direitos de compromissária compradora registrados na matrícula do imóvel, não sendo possível o pedido de usucapião, uma vez que a autora poderia ajuizar ação de adjudicação compulsória. Aduz que a adjudicação seria o remédio apropriado, com respectivo recolhimento do ITBI, não sendo a usucapião meio substituitivo para aquisição de propriedade.

A suscitada não apresentou impugnação em juízo, mas perante a serventia (fls. 05/09) aduziu que a adjudicação compulsória não seria possível, por não ter localizado o proprietário tabular, além de não haver impedimento legal ao pedido de usucapião na presente hipótese, valendo o compromisso de compra e venda como justo título.

O Ministério Público opinou pela improcedência da dúvida (fls. 26/28).

É o relatório. Decido.

De início, novamente reforço a orientação dada no Proc. Nº 1008143-25.2018.8.26.0000, no sentido de que devem os Oficiais de Registro de Imóveis, nos pedidos de usucapião extrajudicial, autuar todos os pedidos apresentados, conforme o disposto no item 426 do Cap. XX das NSCGJ, podendo apenas negar a autuação quando não estiverem presentes os requisitos formais previstos nos arts. 3º e 4º do Provimento 65/17 do CNJ.

Não foi o que se verificou neste caso, em que o Oficial, após apresentação de requerimento pela interessada, negou o processamento do pedido, apresentando nota devolutiva (fls. 17/18) em que aduz não ser o procedimento de usucapião adequado para atingir suas pretensões.

Como já exposto, as questões relativas ao mérito devem se resolver ao fim do processo extrajudicial. Destaco novamente as dificuldades que a negativa de autuação traz à analise do pedido em sede de dúvida: aqui, não é possível esclarecer como se deu o pedido extrajudicial (ao que parece foi apresentada apenas a ata notarial, em discordância com o Prov. 65/17 do CNJ), dificultando ainda a prolação de sentença com dispositivo claro, uma vez que eventual improcedência para afastar o óbice não possibilita o seguimento do pedido extrajudicial, que não foi autuado, por falta de apresentação de outros documentos formalmente exigidos para o processamento do pedido.

Ainda, a autuação permite que eventual óbice quanto ao mérito, como o aqui apresentado, seja impugnado por dúvida na qual poderá ser analisado a totalidade do procedimento administrativo, possibilitando a análise da correção da negativa feita pelo Oficial com a presença de todos os elementos necessários para tanto. Dito isso, passo ao mérito.

Assim dispõe o art. 13, §2º do Prov. 65/17 do CNJ:

“Art. 13 (…) § 2º Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.”

Do que se lê, há uma vedação normativa ao pedido de usucapião extrajudicial quando este se dá com os fim de burlar os requisitos legais exigíveis para os negócios jurídicos imobiliários. A leitura isolada de tal dispositivo, portanto, daria razão ao Oficial.

Todavia, o caput do art. 13, bem como seu §1º, permitem concluir que a mera existência de compromisso de compra e venda não justifica, por si só, óbice a usucapião. Diz o caput do art. 13 que o requerente pode apresentar justo título acompanhado de prova de sua quitação como forma de dispensar o consentimento do titular do domínio, e o inciso I do §1º menciona que o compromisso de compra e venda é um exemplo de justo título. Ou seja, o compromisso de compra e venda, acompanhado de prova de sua quitação, pode ser apresentado no pedido extrajudicial de usucapião, havendo previsão expressa de que a apresentação de tais documentos é benéfica ao requerente, por dispensar a notificação do titular do domínio. Se a apresentação do compromisso de compra e venda quitado é prevista em norma específica relativa a usucapião extrajudicial, não se pode dizer que tais documentos impediriam o pedido por permitirem o ajuizamento de ação de adjudicação compulsória.

A análise conjunta das normas citadas permite concluir, portanto, que a existência do compromisso de compra e venda quitado só seria óbice à usucapião extrajudicial quando houvesse a possibilidade de ser lavrada escritura definitiva do negócio realizado.

Todavia, nos termos do §2º, a parte requerente pode justificar a impossibilidade de tal lavratura (sujeita a sanções em caso de falsidade), abrindo caminho para o pedido extrajudicial de usucapião. Entendo que, ao mencionar os “requisitos legais do sistema notarial e registral”, a norma visa a impedir que haja pedido de usucapião quando a parte pode, pelos meios tradicionais, realizar a transmissão de propriedade.

A possibilidade de ajuizar uma ação de adjudicação compulsória, contudo, não se encontra dentro destes meios tradicionais, uma vez que tal ação se dá justamente quando os meios notariais e registrais se mostram insuficientes à pretensão.

Em outras palavras, se a parte está impossibilitada de lavrar a escritura definitiva de compra e venda, e devidamente justificar as razões para tanto, poderá optar pela adjudicação compulsória ou pedido de usucapião, a depender do preenchimento dos requisitos de cada uma destas opções, não havendo impeditivo, contudo, que opte pela usucapião quando entender não ser a adjudicação caminho viável para obter seu direito.

Ainda, relevante a posição da D. Promotora:

“[É] bem verdade que o referido dispositivo normativo não veda o prosseguimento da análise dos documentos, nem impede a procedência do pedido, mas apenas impõe a necessidade de um alerta, resguardando-se, entre outros, eventual direito do Fisco. E isso se dá, pois a Lei civil não estabelece como condição à aquisição originária da propriedade pela usucapião que o interessado não seja compromissário comprador, limitando o reconhecimento à presença do tempo necessário, da posse com o fito de adquirir a propriedade e do justo título, em determinados casos.”

Sendo esta a hipótese destes autos, em que a requerente justifica a impossibilidade de ajuizar pedido de adjudicação compulsória no fato do proprietário tabular se encontrar em lugar incerto e não sabido, não pode a mera existência de compromisso de compra e venda impossibilitar o prosseguimento do pedido administrativo de usucapião.

Com o prosseguimento do pedido, em especial quando intimada a Municipalidade, poderá haver ainda impugnação específica quanto a este ponto (uma vez que o Município é o interessado em eventual simulação ou fraude para não pagamento do ITBI), com nova análise pelo Oficial das ponderações trazidas pelo impugnante que impediriam o reconhecimento extrajudicial do direito da requerente. Se o Oficial entende haver indícios de irregularidade, poderá, com o fim de proteger-se de eventual responsabilidade tributária, fazer constar na notificação ao Município sua suspeita.

Todavia, havendo justificativa da impossibilidade de transmissão da propriedade pelos meios tradicionais, e não havendo impugnação ou suspeita de que a justificativa é falsa, o Oficial não pode negar o pedido única e exclusivamente por existir compromisso de compra e venda registrado, e tampouco pode negar-se a autuar o requerimento.

Assim, é caso de afastar-se o óbice apresentado. Tal afastamento, contudo, não representa automático reconhecimento da usucapião, que deverá ser processada nos termos legais. O início do processamento, contudo, deverá se dar com o preenchimento das exigências do art. 2º e 3º do Prov. 65/17 do CNJ, que, do que consta nestes autos, não foram observadas.

Do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis em face de E. V. dos S. F., determinando o seguimento do pedido de usucapião extrajudicial, observado o acima disposto quanto a necessidade de apresentação de petição que respeite os requisitos exigidos legalmente para o processamento. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

(DJe de 11.09.2018 – SP)