CSM/SP: Escritura relativa à doação de numerário para a compra da nua-propriedade de imóveis com imposição, pelos doadores, de cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade e à compra, pelos donatários, da nua-propriedade e, pelos doadores, do usufruto vitalício. Possibilidade. Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 78.532-0/3, da Comarca de SÃO JOSÉ DO RIO PRETO, em que é apelante DORIVAL ANTONIO BIANCHI e apelado o 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da mesma Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em dar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores MÁRCIO MARTINS BONILHA, Presidente do Tribunal de Justiça, e ALVARO LAZZARINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 30 de agosto de 2001.

(a) LUÍS DE MACEDO, Corregedor Geral da Justiça e Relator

V O T O

REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública relativa à doação de numerário para a compra da nua-propriedade de imóveis com imposição, pelos doadores, de cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade e à compra, pelos donatários, da nua-propriedade e, pelos doadores, do usufruto vitalício. Possibilidade. Negócios jurídicos que não afrontam a ordem pública e os bons costumes. Dúvida procedente. Recurso a que se dá provimento.

Trata-se de apelação (f. 54/5) interposta da sentença (f. 41/49) que julgou procedente dúvida imobiliária relativa a escritura pública de doação de valor pecuniário para aquisição da nua-propriedade imobiliária com imposição, pelos doadores, de cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, e de compra, pelos doadores, do usufruto vitalício e, pelos donatários, seus filhos, da nua-propriedade.

Assentou-se o “decisum” na impossibilidade de aquisição de usufruto não instituído previamente e por pessoa diversa do nu-proprietário e de imposição das cláusulas restritivas sobre a nua-propriedade em contrato de compra e venda e, ainda, por quem não figura como titular do direito de propriedade e, finalmente, na necessidade de nomeação de curador especial a uma das donatárias, menor púbere, adquirente da nua-propriedade.

Sustenta o recorrente a possibilidade da alienação, em um mesmo título, pelo proprietário, do usufruto a uma pessoa e da nua-propriedade a outrem, vedada a alienação do usufruto a pessoa diversa do nu-proprietário apenas após sua constituição; da imposição de cláusula restritiva à nua-propriedade feita pelos doadores do numerário destinado especificamente aos donatários à compra da propriedade; e, finalmente, a desnecessidade de nomeação de curador especial a uma das donatárias, menor púbere, que está adquirindo a nua-propriedade com dinheiro que lhe foi doado pelos pais para tal fim.

A Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo não provimento (f. 76/78).

É o relatório.

O recurso merece ser provido.

A escritura pública retrata (a) doação de dinheiro, feita por Dorival Antonio Bianchi e sua mulher Elaine Rocha de Freitas Bianchi, a suas filhas Simone de Freitas Bianchi e Lilian de Freitas Bianchi, com destinação específica à aquisição da nua-propriedade dos imóveis e imposição, pelos doadores, das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade; e b) venda e compra dos imóveis, em que figuram, na qualidade de alienante, Indústria e Comércio Metalúrgica Atlas S/A, como adquirentes do usufruto vitalício os doadores e, da nua-propriedade, as donatárias.

A propriedade plena pode ser alienada simultaneamente e de modo bipartido com transferência a uma pessoa do usufruto e a outra da nua-propriedade. Essa transmissão simultânea e bipartida da propriedade basta à constituição do usufruto, não incidindo, nesse caso, a impossibilidade de sua transferência a outra pessoa que não o nu- proprietário (Código Civil, art. 717), proibição a ser observada após sua constituição.

Bem lembra, a propósito, Ademar Fioranelli que: “Há de se ter muito cuidado na análise da proibição da alienação do usufruto, pois esta passa a vigorar com força legal a partir de sua constituição. Assim, nada impede que, na constituição, o titular de domínio aliene a nua-propriedade para A e o usufruto para B, por exemplo…” (in “Direito Registral Imobiliário”, IRIB e safE, 2001, pág. 403).

Grassa ainda, não se desconhece, polêmica sobre a possibilidade de o doador, na doação de dinheiro com a finalidade de o donatário comprar determinado bem, clausular o bem a ser adquirido pelo beneficiário da doação com inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.

Admitem-na Afrânio de Carvalho (“Registro de Imóveis”, Forense, 1998, pág. 91) e Ademar Fioranelli (op. cit., pág. 161), que caracterizam a doação pecuniária com destinação específica à compra de imóvel e imposição das cláusulas restritivas como modal.

Serpa Lopes (“Tratado dos Registros Públicos”, vol. III, Ed. A Noite, 2ª edição, 1950, pág. 396) e Sérgio Jacomino (“Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas”, in “Estudos de Direito Registral Imobiliário – XXV e XXVI Encontros dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil – São Paulo/1998 – Recife/1999”, IRIB e safE, 2000, págs. 281 a 295) sustentam a impossibilidade de o doador, nesse caso, clausular o bem a ser adquirido pelo donatário, porque (a) o donatário adquire o bem a título oneroso, não gratuito; (b) o doador do dinheiro, por não ser o proprietário do bem adquirido pelo donatário, não pode impor as restrições de poder; (c) o donatário, comprador do bem, não pode, outrossim, onerá-lo com as cláusulas restritivas de poder; e (d) a imposição de tais cláusulas na doação pecuniária se configura mera recomendação, simples conselho ao donatário, não encargo.

Tal divergência, não se olvida, se espraia também na jurisprudência. Sérgio Jacomino, em seu estudo supra mencionado, aponta dois julgados deste E. Tribunal de Justiça: um deles (AI nº 39.925-1, rel. Des. Sydeny Sanches) não considerou as cláusulas de inalienabilidade e de impenhorabilidade como encargo para fins de aceitação da doação e o outro (Ap. Civ. nº 135.598-1, rel. Des. Leite Cintra) não admitiu, em caso similar ao ora examinado, a imposição pelo doador do numerário das cláusulas restritivas de poder sobre o bem adquirido pelo donatário.

“Tal assunto – como bem observa Elvino Silva Filho (“Efeitos da Doação no Registro de Imóveis”, in “Revista de Direito Imobiliário”, nº 19/20, janeiro/dezembro de 1987, IRIB e RT, pág. 19) -, mereceu decisões divergentes do E. Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Em uma primeira decisão, entendeu-se não ser possível a vinculação do imóvel com a cláusula de inalienabilidade em uma escritura de compra e venda, em que o dinheiro para a aquisição tivesse sido doado por terceiro, mesmo que comparecente na escritura de compra e venda. Posteriormente, o mesmo Conselho, integrado pelos mesmos membros, em decisão relativa ao mesmo assunto, apenas alterada a natureza da cláusula que passou a ser a de incomunicabilidade, modificou sua orientação, entendendo ser essa espécie de doação uma doação modal. A ementa desse acórdão é bastante expressiva e nela se lê: “Doação modal – Não se confunde com o instituto de sub-rogação de vínculo – Doação de dinheiro destinado à aquisição de determinado bem imóvel, gravado com cláusula de incomunicabilidade, atos esses realizados simultaneamente e na mesma escritura – Validade e legitimidade do título – Registro deferido.”

Posta, assim, a cizânia que ainda perdura sobre tal questão, entendo que a solução deve ser pela validade da imposição, pelo doador, das restrições de poder sobre o bem a ser adquirido pelo donatário com o dinheiro recebido em doação para adquiri-lo.

E isso porque, ainda que, segundo os doutos, tais restrições, que não encerram nenhuma obrigação ao donatário, se distingam dos encargos, não vislumbro em sua imposição, pelo doador, no bem a ser adquirido pelo donatário com o dinheiro recebido em doação, nenhuma ofensa à ordem pública ou aos bons costumes, limites à autonomia da vontade dos contratantes.

A origem de tal imposição repousa na doação do dinheiro, não na compra do bem pelo donatário e a doação do numerário acoplada à compra do bem legitima a imposição das restrições pelo doador, apesar de não ser ele o transmitente do bem onerado.

Entender-se que o doador deva primeiro adquirir a propriedade do imóvel para, em seguida, como titular do domínio, doar a nua-propriedade com as cláusulas restritivas aos donatários, reservando a si o usufruto, reflete exegese por demais formalista, apegada à letra fria da lei (Código Civil, art. 1.676), que onera em demasia os contratantes com duplicação dos atos notariais e registrários.

Tal norma permite outra interpretação, mais consentânea com os princípios que regem o direito contratual, em que se destaca o da autonomia da vontade dos contratantes limitada, apenas pelos preceitos imperativos e pelos bons costumes, a possibilitar que, no caso ora em apreço, o doador, embora não seja o titular do direito real de propriedade, possa impor as cláusulas restritivas ao bem adquirido, pelos donatários, simultaneamente à doação pecuniária destinada a tal aquisição.

Lembre-se com o saudoso Orlando Gomes que os contratantes têm o poder “de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei imponha seus preceitos indeclinavelmente… Prevalece, desse modo, a vontade dos contratantes. Permite-se que regulem seus interesses por forma diversa e até oposta à prevista na lei. Não estão adstritas, em suma, a aceitar as disposições peculiares a cada contrato, nem a obedecer às linhas de sua estrutura legal. São livres, em conclusão, de determinar o conteúdo do contrato, nos limites legais imperativos” (“Contratos”, Forense, 12ª edição, 1990, pág. 26).

Finalmente, dispensável a nomeação de curador especial à donatária e adquirente da nua-propriedade relativamente incapaz, assistida no negócio jurídico por seus pais. “Porque contrato benéfico, o donatário não precisa ter capacidade de fato para aceitar a doação, embora se suponha necessário o consentimento do seu representante legal” (Orlando Gomes, op. cit., pág. 236). A imposição da cláusula restritiva não se traduz em obrigação a ser cumprida pela donatária, mas, sim, em proibição de alienação, penhora ou comunicação do bem que a beneficia.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso para que a escritura de doação de numerário, acoplada a compra e venda de usufruto e da nua-propriedade imobiliária, seja registrada.

(a) LUÍS DE MACEDO, Relator e Corregedor Geral da Justiça (D.O.E. de 08.10.2001)