CSM|SP: Registro de Imóveis – Escritura Pública de Conferência de Bens – Regime da separação convencional – Ausência de outorga uxória – Exigência do disposto no art. 235 do CC/1916 combinado com o art. 2.039 do CC/2002 – Desnecessidade – Formalidade legal que não afeta ou modifica o regime de bens – Regra não específica do regime adotado – Incomunicabilidade expressa dos aqüestos – Incidência da regra prevista no artigo 1.647, I, do Código Civil atual – Recurso improvido para manter a determinação do registro.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL Nº 323-6/6, da Comarca da CAPITAL, em que é apelante o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO e apelado PAULO SETÚBAL NETO.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do relator que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores LUIZ TÂMBARA, Presidente do Tribunal de Justiça e MOHAMED AMARO, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 14 de abril de 2005.

(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura Pública de Conferência de Bens – Regime da separação convencional – Ausência de outorga uxória – Exigência do disposto no art. 235 do CC/1916 combinado com o art. 2.039 do CC/2002 – Desnecessidade – Formalidade legal que não afeta ou modifica o regime de bens – Regra não específica do regime adotado – Incomunicabilidade expressa dos aqüestos – Incidência da regra prevista no artigo 1.647, I, do Código Civil atual – Recurso improvido para manter a determinação do registro.

1. Cuida-se de apelação interposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO contra a r. sentença, proferida em dúvida inversa, que afastou a recusa do 10º Oficial de Registro de Imóveis da Capital e determinou o registro da Escritura Pública de Conferência de Bens lavrada perante o 26º Tabelião de Notas de São Paulo, sob o fundamento de que é desnecessária a outorga uxória da mulher, em face da inexistência de lei que a exija.

Sustenta, em síntese, o apelante que, por força do disposto no artigo 2.039 do Código Civil, devem ser aplicadas as disposições relativas ao regime de bens previstas no Estatuto Civil de 1916, exigindo a regra contida no artigo 235 daquele diploma legal, que para alienar ou gravar de ônus real bens imóveis, há a necessidade de autorização da mulher, pouco importando o regime de bens adotado; que a prática do ato sem a anuência do cônjuge fere ato jurídico perfeito e acabado; que a sua ausência gera nulidade; e, por fim, que, nos termos da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam, mesmo no regime da separação obrigatória de bens, não se prestando o procedimento de dúvida a solucionar questões relativas à existência, ou não, de esforço comum dos cônjuges à aquisição do bem ou de outras que exigem produção de provas, as quais deverão ser dirimidas em outra via judicial.

Requer, com tais argumentos, a reforma da r. sentença atacada.

O recurso foi contra-arrazoado, pugnando o recorrido pela manutenção da r. decisão atacada.

O representante do Ministério Público proferiu parecer, pronunciando-se pelo não acolhimento do apelo, mantendo-se a r. sentença em seus termos.

É o relatório.

2. Não é de ser acolhida a irresignação recursal.

A questão controvertida nos autos diz respeito à necessidade de outorga uxória para o registro de Escritura Pública de Conferência de Bens lavrada perante o 26º Tabelião de Notas de São Paulo, envolvendo imóvel localizado nesta Capital.

Impede o registro, segundo o Oficial, o disposto no artigo 2.039 do Código Civil que impõe sejam respeitadas as disposições do Código Civil de 1916, relativa aos bens imóveis, caso o casamento tenha sido celebrado sob a égide do referido diploma legal e o marido pretenda gravar bem dessa natureza sem autorização da mulher.

Pesem embora as razões deduzidas em apelação, o recurso interposto pelo representante do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO não prospera.

Com efeito, muito embora o casamento entre o outorgante do imóvel e sua esposa tenha sido realizado na vigência do Código Civil de 1916, é inaplicável ao caso a disposição contida no artigo 235 desse diploma legal, combinada com a do artigo 2.039 do Estatuto Civil em vigor.

O Código Civil revogado dispunha, em seu artigo 235, que o marido não podia alienar e gravar bens imóveis, sem o consentimento da mulher, qualquer que fosse o regime de bens adotado no casamento. A exigência de outorga era, como se vê, endereçada de forma absoluta e indistintamente a todos os regimes.

Em disposição geral relativa ao regime de bens entre os cônjuges o artigo 1.647, I, do Código Civil atual, em vigor a partir de janeiro de 2003, estabeleceu a dispensa do consentimento mencionado somente para os casamentos realizados com pactos que convencionem a separação absoluta do patrimônio, não o dispensando para os demais regimes.

Assim, poder-se-ia concluir que os negócios jurídicos realizados na vigência do Código Civil anterior obedecem às regras por ele estabelecidas, enquanto que aqueles celebrados sob a vigência do novo Estatuto Civil, ainda que as pessoas envolvidas tenham se casado anteriormente por pacto de incomunicabilidade patrimonial, respeitarão as normas previstas neste último, dispensando a autorização do outro cônjuge, nos casos de alienação e oneração de bens imóveis.

A respeito do disposto no artigo 2.039 do Código Civil atual a doutrina e a jurisprudência têm firmado o entendimento de que o dispositivo apenas determina que, para os casamentos anteriores ao Código Civil de 2002, não poderão ser utilizadas as regras do novo Código Civil referentes às espécies de regime de bens, para efeito de partilha do patrimônio do casal. Ou seja, somente, as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil.

Neste sentido as lições de LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, em Direitos Fundamentais do Direito de Família, livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2004, p. 220, EUCLIDES DE OLIVEIRA, em Questões controvertidas no novo Código Civil, Coordenação de Jones Figueiredo Alves e Mário Luiz Delgado, Método, São Paulo, p. 394 e 395 e MÁRIO LUIZ DELGADO, citado por Euclides de Oliveira na obra ora mencionada.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confere a mesma interpretação ao disposto no referido artigo 2.039 do Código Civil atual, ao analisar pedidos de alteração de regime de bens em casamento ocorridos antes da vigência deste diploma legal. Veja-se a propósito os seguintes arestos: Apelações Cíveis números 317.906-4/6, São Paulo, 2ª. Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Boris Kauffmann, j. 28.09.2004 e 334.074-4/2, São Paulo, 1ª. Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Elliot Akel, j. 20.04.2004.

No caso dos autos, a regra que dispõe sobre a necessidade de outorga uxória da mulher para que o marido aliene ou grave os bens imóveis, prevista no artigo 235 do Código Civil de 1916, ora exigida pelo oficial do registro, encontra-se no título II do referido diploma legal que trata dos efeitos jurídicos do casamento, não se localizando entre as disposições gerais ou específicas dos regimes de bens, que se encontram nos artigos 256 e seguintes deste diploma legal.

O dispositivo do Estatuto Civil anterior refere-se, a bem da verdade, à outorga uxória, sem a qual determinados atos não podem ser praticados por um dos cônjuges sem a autorização do outro. A disposição legal não atinge, nem importa modificação do regime de bens, tendo a formalidade por finalidade, como bem ressaltado na r. decisão recorrida, viabilizar uma proteção à instituição da família, à sua manutenção e eventualmente, à prole (fl. 49). Tudo a concluir que a regra do artigo 235 do Código Civil de 1916 não é específica do regime de bens, qualquer que seja ele.

Destarte, forçoso é concluir que não tem incidência no caso a regra do artigo 2.039 do Código Civil atual, devendo em conseqüência prevalecer o disposto no artigo 1.647 do mesmo diploma legal, em relação ao contido no artigo 235 do Código Civil de 1916, pois esta última disposição não constitui regra específica de regime de bens, a exigir a aplicação da lei vigente à época da celebração do casamento.

Euclides de Oliveira conclui que é exatamente neste sentido que deve ser interpretado o mencionado artigo 2.039, em consonância com o sistema jurídico e adequação à “mens legis” (ob. cit. p. 395).

Importante ressaltar ainda que no caso em exame consta expressamente da convenção antenupcial de fls. 39/v. que não se comunicarão ao casal os aqüestos, realidade que obsta a alegação de eventual prejuízo da mulher, ao mesmo tem que dá força a aplicação da regra prevista no artigo 1.647, I, do Código Civil atual e afasta a incidência daquela oriunda do Código Civil de 1916.

Por fim, vislumbrando a mulher a prática de eventual ilícito que acoberte o negócio jurídico realizado, em seu prejuízo, poderá, nas vias próprias, postular a sua invalidade.

Diante do exposto, nego provimento ao recurso.

(a) JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE, Corregedor Geral da Justiça e Relator