A Lei nº 13.460/17 e o Decreto nº 9.094/17 e os Serviços Notariais e Registrais

João Pedro Lamana Paiva [1]

Tiago Machado Burtet

1. Introdução

Quando foi publicada a Lei nº 13.460/17 tratamos imediatamente de apresentar alguns pontos relevantes sobre seu impacto nos serviços notariais e registrais. Agora, necessária sua adequação em face da publicação do Decreto nº 9.094/17.

2. Aplicabilidades da Lei nº 13.460/17 e do Decreto nº 9.094/17

À primeira vista a Lei nº 13.460/17 representa grande impacto nas atividades notariais e registrais. Dispõe, ela, “sobre a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública”.

Por seu turno, o Decreto nº 9.094/17 dispôs “sobre a simplificação do atendimento prestado aos usuários dos serviços públicos, ratifica a dispensa do reconhecimento de firma e da autenticação em documentos produzidos no País e institui a Carta de Serviços ao Usuário.”

Necessário enfatizar que o Decreto nº 9.094/17 não regulamentou a Lei nº 13.460/17. Tal Decreto, por ser lançado com espeque no art. 84, caput, inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, alcança status similar ao de lei federal, integrando o rol dos Decretos Autônomos. Assim, embora refiram-se a temas similares, não guardam vínculo entre si.

Apenas como reflexão introdutória, o uso de Decreto Autônomo pela Presidência da República não pode implicar no aumento de despesas para a Administração Pública. Infere-se se passar os atos de reconhecimento de firmas e de autenticações dos Notários para a Administração não importará no incremento de despesas para esta através de maior volume de material humano para a execução dos serviços e para a qualificação desta mão-de-obra, sem falar na responsabilidade civil avocada pela Administração.

No cotejo entre a Lei e o Decreto é necessário identificar três pontos relevantes de distinção entre as citadas normas.

O primeiro refere-se aos destinatários das normas. Enquanto a Lei nº 13.460/17 destina-se à administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 1º, §1º), o Decreto nº 9.094/17 é destinado única e tão somente para os órgãos e as entidades do Poder Executivo federal (art. 1º, caput).

O segundo diz respeito à sua vigência. O art. 25 da Lei nº 13.460/17 apresentou uma escala de vigência em face da população dos Municípios, ao passo que o Decreto nº 9.094/17, pelo seu art. 24, entrou em vigor na data da sua publicação.

E, ainda, os casos de dispensa de reconhecimento de firmas e autenticações, que são os que realmente dizem respeito às atividades notarial e registral. De um lado, o art. 5º, IX da Lei nº 13.460/17 explicita: autenticação de documentos pelo próprio agente público, à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade”. De outro, o art. 9º do Decreto nº 9.094/17 primeiro indica a dispensa de reconhecimento de firma e de autenticação para os documentos expedidos no País e destinados a fazer prova junto a órgãos e entidades do Poder Executivo federal; todavia, no art. 10, §1º explicita que a autenticação poderá ser feita pelo servidor público. Então, a Lei nº 13.460/17 mantém o ato de autenticação e explicita que será o servidor a fazê-lo, enquanto o Decreto nº 9.094/17 o dispensa, mas indica que poderá ser feito pelo servidor. Em que pese o art. 7º, V, da Lei nº 8.935/94, ato de autenticação não é nova atribuição da Administração Pública; já era possível se compreender tal autorização em decorrência dos atributos dos atos administrativos (presunção de legitimidade, legalidade e veracidade; autoexecutoriedade; imperatividade; e, tipicidade).

Tais fatores de diferenciação servem de baliza para o agir da Administração Pública. Hoje, por exemplo, o INSS, sujeito ao Decreto nº 9.094/17, já pode dispensar o reconhecimento de firmas e autenticações se passar a fiscalizar o usuário quando da utilização do serviço público. Porém, as Secretarias Estaduais ou Municipais, por não estarem sujeitas ao Decreto nº 9.094/17, mas à Lei nº 13.460/17, deverão observar os prazos em que a lei entrará em vigor, dependendo da população de cada Município.

Sobre este aspecto, o art. 25 da Lei nº 13.460/17 estabelece o seguinte:

Art. 25.  Esta Lei entra em vigor, a contar da sua publicação, em:

I – trezentos e sessenta dias para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de quinhentos mil habitantes;

II – quinhentos e quarenta dias para os Municípios entre cem mil e quinhentos mil habitantes; e

III – setecentos e vinte dias para os Municípios com menos de cem mil habitantes.

Da análise dos prazos previstos constata-se a situação peculiar de se relacionar a entrara em vigor da lei em face da população existente em cada Município. De qualquer modo, impõe-se a sua observância.

Com isso, a dispensa de reconhecimento de firmas e de autenticações na Administração Pública (exceto a Federal, sujeita à observância do Decreto nº 9.094/17) parece que ainda levará algum tempo para ser efetivamente aplicada.

Sobre o critério populacional utilizado pela lei, será preciso conhecer a população de cada Município para que se defina o marco legal de operação de efeitos da lei. Qual o critério para se saber a população de um Município? Acredita-se que será preciso buscar a informação proveniente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ainda, interessante analisar se o art. 25 não gera uma desigualdade de tratamento em face da população de cada Município. Quando se produz um documento num Município para gerar efeito em outro de população diversa, como se operará o controle da incidência da legislação em comento? Tais questões precisarão ser enfrentadas pelos operadores do Direito e, melhor, regulamentadas pelo Poder competente.

3. Da profilaxia alcançada pelos atos notariais extraprotocolares

São atos notariais extraprotocolares os reconhecimentos de firmas e as autenticações.

Reconhecimento de firmas e autenticações no Brasil são medidas profiláticas, que evitam muita incomodação para o usuário e para o Estado, embora pouco se compreenda a respeito disso. Num primeiro momento pode parecer mera burocracia; todavia, em face das incontáveis falsidades e irregularidades que se tentam praticar diariamente perante a Administração Pública e entre os particulares tais medidas se prestam para prevenir litígios e alcançar segurança jurídica sem a necessidade de processo judicial.

Com muita frequência o Estado Brasileiro gasta vultosos recursos para recadastrar beneficiários de programas em face da frequência com que se operam as falsidades. As Juntas Comerciais enfrentaram sérios problemas ao tempo em que não exigiam reconhecimento de firmas. E tantos outros casos podem ser citados como problemáticos em face da flexibilização da exigência de cautelas mínimas como as ora em comento.

Com efeito, não são os Tabeliães que procuram os usuários para a prática de tais atos, mas são estes que procuram os Notários ou para atender interesse pessoal, ou para satisfazer exigência legal, ou no interesse privado ou de repartição pública.

Incontroverso que a Administração Pública direta e indireta se adaptará ao texto legal e regrará sua forma de atuação com fundamento nesta nova realidade. Deverá inclusive preparar e treinar servidores para a prática de atos de autenticação de documentos mediante a realização de cursos de documentoscopia, inclusive porque passará a ter responsabilidade por tais atos. Quando o custo com tal ato antes cabia ao usuário, ficando a responsabilidade civil com o Notário que realizava a autenticação, agora o custo decorrente das falsidades será custeado por todos, para sustentar a responsabilidade estatal.

4. Incidência nos serviços notariais e registrais

Os serviços notariais e registrais, para agirem, também precisarão observar a Lei nº 13.460/17? Poderão ser caracterizados como integrantes da Administração Pública indireta, em face do exercício via delegação? Pela forma como atuam, via delegação, suas rotinas igualmente serão afetadas e alteradas?

A análise da natureza jurídica dos serviços notariais e registrais pela jurisprudência é extremamente vacilante: Ora se verifica a presença do caráter empresarial (incidência tributária do Imposto Sobre Serviço e inexistência de aposentadoria compulsória), ora entende-se como serviço público latu sensu (teto remuneratório para os interinos, acesso à função por concurso público, serviço remunerado por emolumentos etc.). Nunca houve uma definição precisa sobre a aplicação do art. 236 da Constituição Federal (CF), quando explicita que “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Ainda não se sabe, com precisão, qual a parte pública e qual a privada decorrente da prestação dos aludidos serviços.

De qualquer modo, quanto à aplicação da Lei nº 13.460/17 acredita-se que o Poder Judiciário, a quem compete a fiscalização e orientação dos serviços notariais e registrais, irá entender que compreendem-se, no caso, dentro da Administração Pública prestada de forma indireta, por delegação. O §3º do art. 1º justifica tal consideração e o art. 2º, II e III parecem incluir tacitamente os serviços delegados do art. 236 da CF.

Em que pese tal consideração, conforme §2º do art. 1º da Lei nº 13.460/17, sua aplicação não afasta a necessidade de cumprimento do disposto em normas específicas (inciso I do §2º do art. 1º da Lei nº 13.460/17). Igualmente, o art. 9º do Decreto nº 9.094/17 dá respaldo às leis que explicitam a obrigatoriedade de atos de reconhecimento de firma e de autenticações.

Com fundamento em tal dispositivo legal deverão continuar sendo exigidos reconhecimentos de firmas para (i) se registrar uma procuração no Registro de Títulos e Documentos, como prevê o art. 158 da Lei de Registros Públicos (LRP); (ii) recepcionar títulos particulares no Registro de Imóveis (art. 221, II c/c art. 250, II, ambos da LRP); e, (iii) recepção de requerimentos em geral (art. 246, §1º da LRP).

Necessário refletir pela manutenção, ou não, de tal exigência para os casos de aplicação de medidas de desjudicialização, como ocorre para a retificação de registro imobiliário (art. 213 da LRP) e para a usucapião extrajudicial (art. 216-A). Hoje ditas regra mencionam apenas a necessidade de anuência dos lindeiros e titulares de direitos reais, por medida de segurança na aplicação destes institutos impõe-se que as firmas estejam reconhecias.

Será que o Brasil já evoluiu a ponto de dispensar tal formalidade nestes casos específicos? A presunção de boa-fé do usuário prevista no art. 5º, II, da Lei nº 13.460/17 e no art. 1º, I do Decreto nº 9.094/17 não sofrerá nenhum controle ou modulação, inclusive nos casos complexos que se referem a definição do direito de propriedade?

É preciso analisar esta questão com a moderação e o equilíbrio esperados. O Estado Brasileiro está devidamente aparelhado para coibir e reprimir as inúmeras falsidades que ocorrerão a partir de tal “flexibilização”. A quem interessa esta abertura? Não serão raros os casos de responsabilização da Administração Pública pelos atos praticados por seus servidores.

Não se está aqui defendendo interesse da classe notarial, mas o da sociedade em geral, que conta com o menor custo de seguro para estar protegida através do instituto do reconhecimento de firma. Aqui, a diretriz do inciso XI, que trata da “eliminação de formalidades e de exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido”, sustenta a necessidade de se manter o reconhecimento de firma nos casos de retificação de registro imobiliário e de usucapião extrajudicial porque o custo econômico de tal medida para a sociedade será infinitamente menor do que na resolução de litígios gerados se tal formalidade for dispensada. Quem está regularizando seu imóvel sabe que terá certos custos para enfrentar, proporcional à valorização alcançada em face da regularização da propriedade. Logo, melhor que ao interessado caiba este custo do que repassá-lo à sociedade como um todo pelos inúmeros problemas que irão surgir pela generalizada flexibilização.

Ademais e salvo melhor juízo, a presunção de boa-fé do usuário deve ser analisada em compasso com outra diretriz do art. 5º, qual seja, a do inciso IV, que explicita a adequação entre meios e fins. Ora, é razoável e proporcional manter o reconhecimento de firma para determinados casos, em especiais os que encetam, por exemplo, as retificações imobiliárias, a usucapião extrajudicial e as transações econômicas como a transferência de veículos.

Trazendo outro caso de exigência normativa de reconhecimento de firmas e de autenticação é possível citar o art. 10 e parágrafos do Provimento nº 58 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina procedimentos das autoridades competentes para a aposição de apostila (Apostila de Haia). Por tal regulamento foram previstos mecanismos de proteção da confiança antes de se realizar o apostilamento. Com isso, evitam-se fraudes como as apresentadas no programa “Bom Dia Brasil”, da Rede Globo, do dia 24 de julho do corrente [2].

5. Da necessária regulamentação pelo CNJ ou Corregedorias

Com a maior brevidade esperada o Conselho Nacional de Justiça ou as Corregedorias-Gerais de Justiça precisarão adequar suas normas administrativas as citadas normas, para que com segurança os Notários e Registradores possam atuar. Curial que se esclareça a amplitude dos seus efeitos.

Em face das novéis legislações será preciso que se defina quando manter ou não as exigências (legais) de reconhecimento de firmas e de autenticações para a prática de atos perante a Administração Pública em geral (direta ou indireta).

6. Conclusão

As mazelas enfrentadas pelos usuários de serviços públicos no Brasil não decorrem dos serviços notariais e registais, os quais servem de exemplo de atuação do serviço público e encontram-se em primeiro lugar em índices de satisfação.

Espera-se que os efeitos principais decorrentes da Lei nº 13.460/17 e do Decreto nº 9.094/17 sejam sentidos pelos usuários nas áreas de saúde, educação e segurança pública, cujos índices estão muito aquém da contribuição custeada pela sociedade em geral e sem a devida contraprestação por parte do Estado.

Importante que o foco da Administração Pública mire o alvo correto, alterando sim o que precisa ser alterado, mas preservando o que ainda funciona muito bem no nosso País, que são os serviços notariais e registrais.

Numa época em que nem os Passaportes estão sendo emitidos regularmente [3] por falta de estruturação do Estado Brasileiro, esta breve exposição é feita a título de considerações iniciais para gerar melhores reflexões, oportunidade em que almeja-se ver o fiel cumprimento dos textos normativos pela Administração Pública em geral, diferentemente do que ocorreu em outras épocas (ver Decreto nº 63.166/68 e Decreto nº 6.932/09), com a modulação em casos específicos (mormente os relacionados com as atividades notariais e registrais), porque de grande valia para o usuário do serviço público.

Por fim, espera-se que não tenhamos mais normas escritas sem a observância pelo seu destinatário final, no caso, o próprio Estado Brasileiro, mormente porque a desburocratização não é assunto novo na Administração Pública nacional. Igualmente, almeja-se que no tocante à aplicação da Lei nº 13.460/17, mais abrangente, que haja a publicação indicada no art. 3º, que os princípios do art. 4º sejam respeitados, que todos os direitos do usuário previstos no art. 6º sejam honrados.

Porto Alegre – RS, 24 de julho de 2017.

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1 Oficial Titular do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre, Membro Efetivo da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI, Presidente da Fundação ENORE-RS, Vice-Presidente do Colégio Registral do RS e Ex-Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB.

2 http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/videos/t/edicoes/v/diplomas-falsos-sao-vendidos-livremente-na-internet/6027750/ (acesso em 24.07.2017)

3 http://g1.globo.com/politica/noticia/policia-federal-anuncia-suspensao-da-emissao-de-novos-passaportes.ghtml (acesso em 24.07.2017)

http://g1.globo.com/economia/noticia/casa-da-moeda-deve-retomar-nesta-segunda-confeccao-de-passaportes.ghtml (acesso em 24.07.2017)