STJ: Usufruto vidual. Dívidas que recaem sobre o bem. Causa de extinção. Procedência.

Jurisprudência (Superior Tribunal de Justiça)

Direito civil – Usufruto vidual – Pedido de extinção formulado por nu-proprietário, com fundamento em acúmulo, por parte do usufrutuário, de dívidas incidentes sobre o imóvel – Procedência – O CC⁄16 prevê, em seu art. 1.611, §1º, como causa para a extinção do usufruto vidual, apenas a ‘cessação da viuvez’ – Contudo, o usufruto, como gênero, subdivide-se nas espécies de convencional e legal – O usufruto vidual nada mais é que uma sub-espécie do usufruto legal, de modo que, além da hipótese de extinção disciplinada no art. 1.611, §1º, aplicam-se a ele também aquelas previstas no art. 739 do CC⁄16 – O inc. IV do art. 739 do CC⁄16 determina a extinção do usufruto quando o usufrutuário “aliena, deteriora ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação” – O acúmulo de dívidas de responsabilidade do usufrutuário sobre o imóvel inclui-se entre as causas de extinção descritas nesse inciso, notadamente na hipótese em que a desídia do usufrutuário chega a ponto de permitir a propositura de ação de execução pelos credores, da qual resultaria o praceamento do bem – A perda do imóvel em alienação judicial não se diferencia, do ponto de vista substancial, de sua deterioração ou de sua ruína – Recurso especial não conhecido.

EMENTA

DIREITO CIVIL. USUFRUTO VIDUAL. PEDIDO DE EXTINÇÃO FORMULADO POR NU-PROPRIETÁRIO, COM FUNDAMENTO EM ACÚMULO, POR PARTE DO USUFRUTUÁRIO, DE DÍVIDAS INCIDENTES SOBRE O IMÓVEL. PROCEDÊNCIA. – O CC⁄16 prevê, em seu art. 1.611, §1º, como causa para a extinção do usufruto vidual, apenas a ‘cessação da viuvez’. Contudo, o usufruto, como gênero, subdivide-se nas espécies de convencional e legal. O usufruto vidual nada mais é que uma sub-espécie do usufruto legal, de modo que, além da hipótese de extinção disciplinada no art. 1.611, §1º, aplicam-se a ele também aquelas previstas no art. 739 do CC⁄16. – O inc. IV do art. 739 do CC⁄16 determina a extinção do usufruto quando o usufrutuário “aliena, deteriora ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação”. O acúmulo de dívidas de responsabilidade do usufrutuário sobre o imóvel inclui-se entre as causas de extinção descritas nesse inciso, notadamente na hipótese em que a desídia do usufrutuário chega a ponto de permitir a propositura de ação de execução pelos credores, da qual resultaria o praceamento do bem. A perda do imóvel em alienação judicial não se diferencia, do ponto de vista substancial, de sua deterioração ou de sua ruína. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp nº 1.018.179 – RS – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 05.09.2008)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora.Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Ari Pargendler.

Brasília (DF), 21 de agosto de 2008.(data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI – Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Trata-se de recurso especial interposto por F S L impugnando acórdão exarado pelo TJ⁄RS no julgamento de recurso de apelação.

Controvérsia: A ora recorrente foi casada com J. C. C. L., filho da ora recorrida, falecido em 7⁄10⁄1995. O falecido recebera, pelo inventário de seu pai, a propriedade um imóvel, no qual habitava. Ao falecer, tal propriedade foi transferida a sua mãe, Z J C, ora recorrida, já que o de cujus não deixou filhos. Porém, estabeleceu-se usufruto vidual em favor de sua viúva, sobre a metade do bem. Ela permaneceu, portanto, residindo no imóvel. É sobre tal usufruto que se estabeleceu toda a controvérsia. Duas ações foram propostas.

Ação de extinção de usufruto vidual: A ora recorrida, Z J C, propôs em face da ora recorrente uma ação de extinção de usufruto vidual, em 8⁄9⁄2000, sob dois fundamentos. O primeiro deles é o de a ora recorrente após o falecimento de seu marido, teria vivido no imóvel em união estável com outro homem, com quem inclusive veio a constituir prole. O segundo fundamento é o de que a recorrente acumulou significativo débito condominial no imóvel, débito esse que que teve de ser saldado pela recorrida para evitar a perda do bem. Tal displicência em relação à obrigação de quitar os condomínios e IPTU equivaleria a permitir a deterioração do bem, autorizando a extinção do usufruto vidual.

Ação de consignação em pagamento: Durante o trâmite da ação de extinção do usufruto, a ora recorrente, usufrutuária, propôs em face da ora recorrida uma ação de consignação em pagamento, mediante a qual ofereceu o valor que entendia ser devido pelos débitos acumulados. Pretendia, com isso, impedir a extinção do usufruto. A recorrida contestou o pedido argumentando que o valor oferecido era muito menor que a dívida acumulada.

Sentença: julgou procedente o pedido de extinção de usufruto e improcedente o pedido de consignação em pagamento. A improcedência da consignação decorreu da insuficiência do valor depositado. A extinção do usufruto foi fundamentada pelo fato de que as dívidas acumuladas, relativas ao condomínio e ao IPTU, podem ser equiparadas à deterioração da coisa.

A sentença foi impugnada por recurso de apelação, interposto pela usufrutuária, ora recorrente. Entre outros fundamentos, argumenta ela que a sentença promoveu indevida ampliação dos conceitos de “alienar”, “deteriorar” ou “deixar arruinar” (art. 739, VII do CC⁄16).

Parecer do MP, na origem: pelo provimento do recurso, com a manutenção do usufruto em favor da ora recorrente.

Competência: antes do julgamento do recurso, estabeleceu-se controvérsia no Tribunal a quo acerca da competência recursal, para julgá-lo.

Alegação de perda de objeto: nesse ínterim, a ora recorrente afirmou que, nos autos de ação de execução para a cobrança das parcelas devidas pelos condomínios não pagos, as partes fizeram acordo. Desse acordo decorreria a perda de objeto da ação de extinção do usufruto, já que não existiria mais a dívida que lhe deu fundamento.

Acórdão: negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:

“APELAÇÃO CÍVEL. 1) EXTINÇÃO DE USUFRUTO VIDUAL. Não é só o término do estado de viuvez da usufrutuária que cessa o usufruto vidual, porque este também está sujeito a qualquer das causas extintivas do usufruto em geral. O não pagamento das cotas condominiais do imóvel gravado, que são da responsabilidade da usufrutuária, representam descumprimento ao disposto no art. 733, I, do CC⁄16, sendo causa de extinção do usufruto na forma como dispõe o art. 739, VII, do CC⁄16. Precedentes. Procedência da ação confirmada. 2) AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. Mantém-se a improcedência da ação de consignação em pagamento, se não aceito pela autora o montante do valor indicado pela ré, é impossível pelos elementos contidos nos autos determinar-se o montante devido “art. 899, §2º, do CPC).”

Embargos de declaração: opostos, argumentando com a perda de objeto da ação de extinção do usufruto, foram rejeitados pelo Tribunal a quo. Novos embargos foram opostos insistindo na questão, novamente rejeitados.

Recurso especial: interposto com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional. Alega-se violação: (i) ao art. 535, incs. I e II do CPC; (ii) aos arts. 267, VII e 462 do CPC, porque o parcelamento do débito que motivou o pedido de extinção do usufruto deveria ter sido levado em consideração pelo acórdão, do que resultaria a perda de objeto da ação; (iii) art. 739 do CC⁄16 (art. 1.410 do CC⁄02), porquanto entre as hipóteses em que se autoriza a extinção do usufruto, não está a inadimplência do usufrutuário quanto ao condomínio ou impostos incidentes sobre o imóvel; (iv) arts. 111 e 113 do CPC, porquanto o processo tramitou, em primeiro grau de jurisdição, perante uma vara cível, e não perante uma vara de família.

O recurso também foi fundamentado em divergência jurisprudencial.

Admissibilidade: O recurso não foi admitido na origem, motivando a interposição do Agravo de Instrumento nº 945.616⁄RS, a que dei provimento para melhor apreciação da controvérsia.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

I – Delimitação da controvérsia

Cinge-se a controvérsia a definir: (i) se é possível pleitear a extinção do usufruto vidual com base no inadimplemento do usufrutuário quanto ao pagamento de cotas de condomínio e tributos incidentes sobre a propriedade; (ii) se o acordo, firmado antes do julgamento da causa entre a usufrutuária e a nu-proprietária, pelo qual a devedora parcela o saldo de sua dívida, implica a perda do objeto da ação de extinção do usufruto.

Também se discute, no processo, a violação ao art. 535 do CPC e a competência, em primeiro grau, para o julgamento da ação.

O segundo fundamento pelo qual a extinção do usufruto foi requerida – de que a recorrente viveu, no imóvel sub judice, em união estável no imóvel, não foi abordado e não é objeto do recurso especial.

II – Preliminarmente:

II. a) Arts. 111 e 113 do CPC: Alegação de incompetência absoluta do juízo de primeiro grau.

A alegação de incompetência absoluta do juízo de primeiro grau não foi objeto de decisão pelo acórdão recorrido, nem foi abordada nos primeiros embargos de declaração opostos pela ora recorrente. Assim, não há prequestionamento da matéria. Vale observar, inclusive, quanto a este aspecto, que não há como conhecer de tal pedido de ofício em sede de recurso especial. Nesse sentido, os seguintes precedentes: EDcl no AgRg no Ag 256814, Rel. Min. Waldemar Zveiter, 3ª Turma, DJ de 10⁄4⁄2000; REsp 332982⁄PA, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 3⁄6⁄2002.

II. b) Art. 535 do CPC: a rejeição dos embargos de declaração

Os primeiros embargos de declaração opostos pela ora recorrente (fls. 451 a 454), abordam apenas o fato de que foi feito acordo na ação de execução dos valores pagos pela recorrida, a título de despesas condominiais e IPTU, o que, em sua opinião, implicaria a perda do objeto da ação. Posteriormente, foi apresentada complementação a esses embargos (fls. 456 a 461), na qual outras matérias foram abordadas, mas o Tribunal a quo, corretamente, não recebeu referida complementação por falta de previsão legal (fls. 463). A mesma matéria foi ainda alegada em novos embargos de declaração (fls. 470 a 478), opostos após o julgamento colegiado dos primeiros embargos.

Não há omissão do Tribunal a quo, à medida que a matéria objeto dos embargos foi enfrentada no acórdão de fls. 493 a 495. Com efeito, nessa oportunidade a Corte de origem afirmou que “o acordo feito entre a ora agravante e a agravada (o qual, efetivamente, foi colacionado aos autos às fls. 400⁄401) em ação de execução de sentença (oriunda da cobrança de taxas condominiais) não tem o condão de, em sede de embargos de declaração, modificar o acórdão que julgou a apelação (fls. 442⁄447), até porque não há sequer notícia de que tal acordo envolva a presente ação, tendo nele constado expressamente que ficava extinto aquele feito” (fl. 494 e 494, vº).

II. c) Arts. 267, inc. VII e 462, do CPC: A perda do objeto da ação

No recurso especial, a recorrente reitera seu pedido, já abordado em sede de embargos de declaração, para que seja reconhecida a perda do objeto da ação de extinção de usufruto. Como observado acima, a matéria foi prequestionada nos segundos embargos de declaração opostos, de modo que pode ser reapreciada nesta sede.

A celebração de acordo para quitação, em 142 parcelas, do débito acumulado no imóvel durante o período de inadimplência, nada mais faz do que evidenciar que, de fato, a recorrente acumulara referida dívida enquanto ocupou o imóvel. Assim, tal acordo não pode implicar a perda de objeto da ação em que se pleiteia a extinção do usufruto vidual. Ao contrário, o reconhecimento do débito apenas torna indubitável que o fundamento alegado pela nua-proprietária é verdadeiro. A discussão, portanto, deve se concentrar apenas em identificar se tal inadimplência pode, ou não, dar lugar ao pedido de extinção do usufruto, nos termos do art. 739, VII, do CC⁄16. Disso decorre que não há violação aos arts. 267, VII e 462 do CPC.

III – Mérito: art. 739, VII, do CC⁄16 e a extinção do usufruto vidual.

Solucionadas as questões preliminares, cabe analisar o mérito do recurso especial, para o fim de definir se é possível incluir, entre as causas de extinção do usufruto vidual, a inadimplência do usufrutuário quanto ao condomínio e aos tributos incidentes sobre a propriedade.

A primeira questão a ser solucionada, neste passo, diz respeito a saber se o usufruto vidual, por ser disciplina específica, comporta apenas extinção nas hipóteses cessação da viuvez (art. 1.611, §1º, do CC⁄16), ou sujeita-se também às hipóteses genéricas de extinção previstas pelo art.  739 do CC⁄16.

O usufruto, quanto à causa, é gênero do qual são espécies o usufruto legal e o usufruto convencional (MONTEIRO, WASHINGTON DE BARROS, Curso de Direito Civil – Direito das coisas, 24ª edição, São Paulo: Saraiva, 1985, pág. 305). Obedecendo a essa divisão, o usufruto vidual inclui-se entre as espécies de usufrutos legais, ou seja, estabelecidos por força de Lei. Não se trata, portanto, de uma categoria autônoma de direito real sobre coisa alheia, mas de uma espécie incluída no amplo gênero do usufruto. Sendo assim, a ele se aplicam todas as disposições que regulam, de maneira ampla, o instituto, notadamente a regra que disciplina sua extinção. No mesmo sentido, como bem notado pelo acórdão recorrido, é a opinião de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (Instituições de Direito Civil – Direito das Sucessões, 9ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1994, pág. 102). Assim, não há restrição à aplicação do art. 739 do CC⁄16 à espécie.

Definida a aplicabilidade dessa norma jurídica a espécie, observa-se que, entre as hipóteses de extinção por ela prevista, de fato não está a inadimplência quanto às obrigações pecuniárias que oneram o imóvel. Ciente da inexistência de tal previsão específica, o Tribunal a quo valeu-se do inc. VII do art. 739, que autoriza a extinção do usufruto na hipótese de “culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação”. Para o Tribunal, não arcar com as despesas de condomínio e de IPTU seria o mesmo que deixar arruinar-se o bem.

Neste ponto, inicialmente cabe observar que é pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de atribuir ao usufrutuário a responsabilidade pelo pagamento das despesas, inclusive impostos, incidentes sobre o imóvel. Nesse sentido, por todos, citem-se os seguintes precedentes: REsp 425.015⁄SP (Rel. i. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 30⁄6⁄2006) e REsp nº 202.261⁄SP (Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 27⁄3⁄2000).

Ora, sendo da responsabilidade do usufrutuário tais despesas, não há como argumentar que o respectivo inadimplemento não implique compactuar com o abandono do bem. O débito acumulado pela usufrutuária, na hipótese dos autos, chegou a ponto de motivar a propositura de uma ação de execução que, se tivesse prosseguido, conduziria à alienação judicial do imóvel. Ou seja, se a recorrida, pessoa de idade que vive em casa alugada, não tivesse retirado de suas economias o montante necessário para pagar as dívidas acumuladas pela recorrente, que habita gratuitamente o imóvel sub judice, ambas, tanto a nu-proprietária como a usufrutuária, teriam perdido o bem em favor dos credores. A omissão quanto ao adimplemento das despesas, portanto, é clara hipótese de abandono. Procede, portanto, o pedido de extinção do usufruto fundado no art. 739, VII, do CC⁄16.

IV – Dissídio

A alegação de divergência jurisprudencial é dirigida às mesmas matérias que também foram abordadas pela recorrente no capítulo relativo à violação. Portanto, a rejeição do apelo quanto à alínea “a” do permissivo constitucional, torna prejudicada a apreciação da alínea “c”. Isso porque, ainda que estivesse presente o dissídio, de um modo ou de outro o julgamento da causa necessariamente convergirá para a correta aplicação da lei, já abordada na primeira parte deste especial.

Forte em tais razões, não conheço do recurso especial.

Fonte: Boletim Eletrônico Informativo Notarial e Registral n. 3851 – Serac. Data de publicação: 09/04/2010.