TJ|MG: Apelação Cível – Família – Código Civil de 1916 – Direito das Obrigações – Regime de Bens: Comunhão Parcial – Casamento: Dissolução – Partilha – Imóvel adquirido antes do Casamento: Incomunicabilidade – Mútuo para aquisição de imóvel contraído antes do Casamento – Prestações: Pagamento – Presunção – Incomunicabilidade – Interpretação: negativa de vigência ao Código Civil: Impossibilidade.

EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL – FAMÍLIA – CÓDIGO CIVIL DE 1916 – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES – REGIME DE BENS: COMUNHÃO PARCIAL – CASAMENTO: DISSOLUÇÃO – PARTILHA – IMÓVEL ADQUIRIDO ANTES DO CASAMENTO: INCOMUNICABILIDADE – MÚTUO PARA AQUISIÇÃO DE IMÓVEL CONTRAÍDO ANTES DO CASAMENTO – PRESTAÇÕES: PAGAMENTO – PRESUNÇÃO – INCOMUNICABILIDADE – INTERPRETAÇÃO: NEGATIVA DE VIGÊNCIA AO CÓDIGO CIVIL: IMPOSSIBILIDADE. 1. Bem imóvel adquirido de forma exclusiva por um dos nubentes antes do casamento e a respectiva obrigação decorrente de contrato de mútuo, com garantia hipotecária pelo mesmo imóvel, não integram a comunhão patrimonial quando a sociedade conjugal é estabelecida sob o regime da comunhão parcial de bens (art. 269, 270 e 272 do CCB/1916 e art. 1.659, II, III e VI e 1.661 do CCB/2002). 2. As prestações do mútuo pagas durante a constância do casamento, sem prova eficiente da participação do cônjuge não devedor, não constituem acréscimo patrimonial passível de ser partilhado ao cabo da relação conjugal, pois delas não resulta aquisição de bens ou direitos, mas apenas solvência de dívida particular, cuja relação obrigacional de caráter pessoal foi estabelecida antes do casamento, não alcançando, por isso, o cônjuge. 3. A presunção que advém do disposto nos art. art. 269, 270 e 272 do CCB/1916, repetida nos art. 1.659, II, III e VI e 1.661 do CCB/202, é a de que o devedor, ao se tornar cônjuge de outrem, ainda assim permanece único devedor e responsável exclusivo pelo débito, e deve pagá-lo sozinho, com as forças de seus bens particulares e salário. 4. Interpretação que pretenda estender a teoria de esforço comum aos casos em que a dívida paga refira-se a débito contraído antes do casamento, e à ausência de prova bastante de contribuição do cônjuge não devedor, nega vigência a lei federal que trata do regime matrimonial de bens (Código Civil). (TJMG – Apelação Cível nº 1.0702.08.501436-4/001 – Uberlândia – 7ª Câmara Cível – Rel. Des. Oliveira Firmo – DJ 19.12.2013)
ACÓRDÃO
(SEGREDO DE JUSTIÇA)
Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, por maioria, em DAR PROVIMENTO AO RECURSO, VENCIDO PARCIALMENTE O REVISOR.
DES. OLIVEIRA FIRMO – Relator.
RELATÓRIO
DES. OLIVEIRA FIRMO (Relator):
1. Trata-se de APELAÇÃO interposta por L. P. S. da sentença (f. 125-129) proferida em AÇÃO DE PARTILHA DE BENS contra si ajuizada por C. C. B. dos S. O pedido foi julgado parcialmente procedente, para “Reconhecer a participação do autor em relação à aquisição de parte dos direitos relativos ao imóvel sito nesta cidade à Rua João Limírio dos Anjos, no 2065, apartamento 02, bairro Santa Mônica, matrícula 54.578, do 1o CRI local, bem como o direito à partilha, cabendo ao postulante 14,16% (quatorze vírgula dezesseis por cento) do bem e o remanescente à suplicada”. Pela sucumbência recíproca, as partes foram condenadas a pagar, cada uma, 50% (cinqüenta por cento) das custas processuais, compensando-se os honorários advocatícios, suspensa a condenação na forma da Lei no 1.060/50.
2. A apelante alega que, durante o matrimônio com o apelado, entre nov./2002 e jan./2007, o saldo devedor do mútuo relativo ao imóvel que adquiriu antes do enlace não teve seu valor reduzido, demonstrando, por meio de planilha de evolução do financiamento (documento novo), que não houve acréscimo ao seu patrimônio a justificar a partilha determinada na sentença. Requer a reforma da decisão para que seja julgado improcedente o pedido inicial. Junta documentos (f. 136-143).
3. Contrarrazões pela manutenção da sentença (f. 148-152).
4. O Ministério Público denegou manifestação (f. 160).
5. Preparo: parte isenta (art. 10, II da Lei no 14.939/2003)
É o relatório.
VOTO
JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE
6. Vistos os pressupostos de admissibilidade, conheço da APELAÇÃO.
MÉRITO
III – a) – Epítome do caso
7. Na espécie, discute-se a divisão de bens que as partes teriam adquirido na constância do casamento celebrado em 22.11.2002, sob o regime de comunhão parcial de bens (f. 15), regido à época pelas normas do Código Civil de 1916 (CCB/1916). A sociedade conjugal foi dissolvida por sentença prolatada em 2.7.2007 (f. 14), restando na oportunidade sem solução a partilha.
8. O apelado/requerente pretende a partilha de um imóvel residencial (apartamento) que alega ter sido adquirido pela apelante 3 (três) meses antes do casamento, mediante financiamento obtido junto à Caixa Econômica Federal (CEF), ao fundamento de que as parcelas do empréstimo foram pagas pelo casal em união de esforços. Além, quer ainda partilhar dívida oriunda de empréstimo no valor de R$1.736,00 (mil setecentos e trinta e seis reais), que, alega, contraiu junto ao Banco BMG.
9. A seu turno, a apelante sustenta que adquiriu o referido imóvel em 8.8.2001, 1 (um) ano e 3 (três) meses antes do casamento, e que acordou, de forma exclusiva, o pagamento das prestações do empréstimo contraído junto à CEF, utilizando recursos do seu fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS) e acerto trabalhista, não havendo, durante a sociedade conjugal, acréscimo ao seu patrimônio particular. Diz, ainda, indevida a partilha do débito que o apelado alegou contraído junto ao Banco BMG, pois nem sequer foi comprovada a formalização do empréstimo.
10. Do que restou decidido na sentença, só há uma irresignação, da ex-esposa – ora apelante -, e é quanto à partilha do seu imóvel, contrária mesmo à tese de qualquer auxílio do ex-marido para pagar as prestações do mútuo contratado por ela antes do casamento, e vencidas e pagas durante o conúbio.
III – b) – Objeto do recurso
11. Enfim, o novelo de “complexidade” processual se desenrola primeiro pela enunciação do puntum saliens a se enfrentar em sede de apelação.
12. Em poucas palavras e minguadas linhas, tem-se que a apelante quer se desvencilhar nesta instância da pretensão do apelado, precisamente a de dividir o imóvel de propriedade exclusiva dela, apelante, trazido ao casamento e adquirido ainda antes deste. Tal pretensão do ex-marido se dá porque ele alega ter participado, na vigência do matrimônio, do adimplemento das prestações de mútuo contratado pela ex-esposa mesmo ainda antes do enlace, justamente para adquirir o imóvel. O varão não se sustenta, porém, em qualquer presunção; funda-se em que contribuiu para o pagamento.
13. Destaque-se que toda a questão há de ser analisada à luz do CCB/1916, sob cuja égide casaram-se os ora litigantes, e assim estipulado seu respectivo regime de bens.
III – c) – Do regime de comunhão parcial
14. O regime de bens está para o casamento exatamente como uma válvula de regulação de hipocrisias que a jurisprudência ao curso dos tempos demonstra: há sempre interesses particulares, exclusivos, daqueles que participam da individualidade ínsita a cada um, que, mesmo na união – durável ou não -, não se confundem com as emoções, quereres e afetos; na promiscuidade das vidas nem tudo se partilha, havendo bens exclusivos e pensamentos secretos, tudo insondável. Quanto aos pensamentos, que se depositam nos cofres recônditos da intimidade sob chave privativa, para serem sabidos hão de se permitir revelados; quanto aos bens e direitos, se exclusivos, só se compartem por vontade deliberada de quem os detenha solitária e individualmente, ou se, por comprovada colaboração, o outro cônjuge imiscuir-se onerosamente nessa relação material.
15. No regime da comunhão parcial excluem-se, dentre outros, os bens adquiridos e as obrigações contraídas antes do casamento (art. 269 e 272 do CCB/1916):
Art. 269. No regime de comunhão limitada ou parcial, excluem-se da comunhão: (Redação dada pela Lei no 4.121, de 1962).
I – Os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do matrimônio por doação ou por sucessão; (Redação dada pela Lei no 4.121, de 1962).
II – Os adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares; (Redação dada pela Lei no 4.121, de 1962).
III – Os rendimentos de bens de filhos anteriores ao matrimônio, a que tenha direito qualquer dos cônjuges em consequência do pátrio poder; (Incluído pela Lei no 4.121, de 1962).
IV – Os demais bens que se consideram também excluídos da comunhão universal. (Incluído pela Lei no 4.121, de 1962).
Art. 270. Igualmente não se comunicam:
I – As obrigações anteriores ao casamento.
II – As provenientes de atos ilícitos. (destaquei)
16. E a propósito do que prescreve o inciso IV do art. 269, é-se remetido ao art. 263, XIII, que exclui da comunhão “os frutos civis do trabalho ou indústria de cada cônjuge ou de ambos”, incluído no CCB/1916 pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei no 4.121, de 27 de agosto de 1962), com isso derrogando o conteúdo do art. 271, VI, que até então incluía tais frutos.
17. A disciplina da incomunicabilidade das obrigações mereceu importante trato de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:
A comunicação das dívidas na constância do matrimônio atende à natureza do regime, e deve ter em consideração as duas circunstâncias especiais: a época em que foram contraídas e a sua causa ou finalidade.
Os débitos anteriores não se comunicam, pois que os patrimônios dos cônjuges, existentes à época, conservam-se separados, e as dívidas integram o patrimônio. [1]
18. No vigente Código Civil Brasileiro (CCB/2002), permanecem excluídos da comunhão parcial de bens aqueles adquiridos e as obrigações contraídas antes do casamento, a afastar, assim, qualquer pretensão de interpretação atualista:
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III – as obrigações anteriores ao casamento;
IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
19. Vê-se que, ao contrário do que ocorre no regime da comunhão universal de bens (inciso VII do art. 263 do CCB/1916 e inciso III do art. 1.668 do CCB/2002), na comunhão parcial as obrigações contraídas por um dos cônjuges antes do casamento excluem-se da comunhão ainda que revertidas em proveito do casal. A única exceção a essa regra se aplica no caso das obrigações provenientes de ato ilícito e, nesse caso, é inovação trazida pelo vigente CCB/2002 (inciso IV do art. 1.659).
20. Por tudo, está certo que o regime de bens é institucionalizado como um mecanismo de regulação de relações de cunho material tão próprias de um casamento e sempre um fértil campo de litigiosidade. E por isso, com propriedade, contempla o antes, o durante e o depois sob o aspecto exclusivamente material dos teres e haveres. De outra forma, de que valeria dizer a lei, no regime de bens, incomunicável isso ou aquilo? Em especial, qual seria o sentido de destacar, discriminando dívidas se, fatalmente, o pagamento, por presunção, dar-se-ia na conjugação das forças individuais acasaladas, no esforço comum? Tal presunção, assim como posta, deixa no limbo, no nada, o dizer expresso de uma regra que remonta às Ordenações com eco e tinta na contemporaneidade do século XXI.
III – d) – Da casuística: o imóvel
21. Volvendo à casuística, verifica-se que, em 24.8.2001, a apelante adquiriu de REALIZA CONSTRUTORA LTDA. o imóvel descrito na certidão do 1o Ofício de Registro de Imóveis de Uberlândia/MG (f. 40), pelo valor total de R$28.000,00 (vinte e oito mil reais), integrando esse montante a quantia de R$1.143,09 (mil cento e quarenta e três reais e nove centavos) advinda da utilização de seu FGTS. Na mesma oportunidade, registrou-se a dação do referido imóvel em hipoteca à CEF, como garantia do mútuo celebrado pela apelante com a CEF para aquisição do bem.
22. Assim, ao se casar, a apelante trouxe na bagagem particular duas situações distintas, porque juridicamente assim consideradas. Ainda antes, solteira, celebrou dois contratos com pessoas distintas, embora enfeixados num só documento. Celebrou um contrato de compra e venda, mercê do qual, repise-se, antes do casamento (mais de um ano), adquiriu um imóvel de REALIZA CONSTRUTORA LTDA. Por este imóvel pagou R$28.000,00 (vinte e oito mil reais) e recebeu escritura, dando-lhe plena e irrevogável quitação. Esse imóvel no seu patrimônio é bem, é um compósito positivo. No mesmo instrumento, embora com pessoa distinta da vendedora daquele imóvel, celebrou contrato de mútuo com a CEF, pelo qual ofereceu e foi aceito o dito imóvel como garantia, na forma de hipoteca, bastante averbada no registro próprio do imóvel.
Chegou, pois, a ora apelante, ao casamento, portadora de duas situações jurídicas com registro público no Cartório de Registro de Imóveis de Uberlândia/MG: proprietária de um imóvel (i) e devedora de um mútuo, representando uma obrigação de dar, em pagamentos sucessivos, parcelas com valor estabelecido naquele contrato (ii).
23. Casou-se 1 (um) ano, 3 (três) meses e 14 (quatorze) dias passados da celebração daqueles negócios acima descritos. O noivo, tornado marido, pelo regime de bens a que aderiu, não teve – ou não deveria ter – qualquer expectativa quanto a ser partícipe ou responsável por nada do que se processou antes do casamento em termos patrimoniais e obrigacionais.
24. Decerto que o imóvel foi adquirido antes do casamento; e ainda que não fora, a obrigação contraída para a sua aquisição precedeu o enlace, atraindo a hipótese de exclusão do bem, por incomunicabilidade, prevista no CCB/1916:
Art. 272. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.
25. Sobre tal incomunicabilidade, é lição antiga de CLOVIS BEVILAQUA:
Exclui o Código da comunhão os bens cuja aquisição se realize na constância do casamento, porém por título anterior. O cônjuge, por exemplo, vendeu antes de se casar, a sua propriedade a crédito. Antes do vencimento da dívida contrai casamento. Quando vier a embolsar o que, por essa causa lhe é devido, embora casado no regime da comunhão de bens não se comunicam, porque se consideram partes integrantes do patrimônio particular do cônjuge antes de casar, ainda que a sua entrada efetiva no ativo estivesse adiada. [2]
26. À vista desses fatos e considerando que o casamento religioso das partes com efeito civil foi celebrado em 22.11.2002 (f. 41), conclui-se que o imóvel adquirido pela apelante está excluído da comunhão patrimonial, por expressa aplicação do disposto no inciso I do art. 269 do CCB/1916 (com réplica idêntica ao art. art. 1.659, I, CCB/2002).
27. Assim, nada tem o apelado, ex-marido, a pleitear quanto ao bem imóvel descrito na inicial, reconhecidamente de propriedade exclusiva da apelante, ex-esposa, como revela o registro no Cartório de Registro de Imóveis competente.
III – e) – Da casuística: o contrato de mútuo
28. Também excluído da comunhão, embora nem sequer integre o pedido da ação, mas por força do disposto no inciso I do art. 270 do CCB/1916, o empréstimo tomado para aquisição desse bem, pois advindo de obrigação contraída em 8.8.2001 (f. 16-25), antes do enlace.
III – e.1) – Da casuística: da única devedora do mútuo
29. No ponto, oportuno situar a apelante, ex-esposa, na relação jurídica estabelecida com a CEF. Na condição de sujeito passivo da relação obrigacional, ela detém a legitimidade exclusiva para pagar as prestações do empréstimo ou mesmo exigir que a credora as receba, se efetuado o pagamento nas condições contratadas. E quanto ao apelado, ex-marido, não integra essa relação obrigacional estabelecida antes do casamento. Nesses termos, ele, é apenas terceiro sem qualquer interesse jurídico.
30. No aspecto, vale uma digressão: o cônjuge casado sob o regime de comunhão parcial de bens somente ingressará na relação obrigacional estabelecida pelo marido ou esposa com terceiro credor, anteriormente ao casamento, se ele se tornar coobrigado dessa mesma obrigação. Nesse caso, o fim do casamento nem sequer extinguiria a obrigação do cônjuge/coobrigado que aderiu voluntariamente à relação obrigacional, permanecendo ele, ex-cônjuge, então, obrigado ao pagamento das prestações posteriores até quitação completa do débito. É que a previsão de se excluírem as obrigações contraídas antes do casamento configura verdadeira blindagem legal (inciso I do art. 270 do CCB/1916 e inciso III do art. 1.659 do CCB/2002), protetiva do patrimônio do cônjuge que não figurava originariamente como sujeito passivo da relação obrigacional estabelecida antes do casamento.
31. Ora, a presunção legal, em matéria de obrigação, é a de que o devedor salde seus compromissos, suas dívidas, suas obrigações. E no caso de obrigação contraída antes do casamento não há, nem pode haver, presunção alguma a respeito, visto que tal obrigação é excluída da comunhão patrimonial por expressa previsão na lei. Não se insere na “presunção do esforço comum”, advinda da comunhão parcial de bens, nem pode ser por ela regida.
III – e.2) – Da casuística: as prestações do mútuo
32. Evidenciado que a aquisição do imóvel e o empréstimo tomado pela apelante, ex-esposa, estão excluídos da comunhão de bens, resta perquirir se o pagamento das prestações do mútuo, na constância do união, geraram algum direito patrimonial a ser objeto de partilha.
33. Aliás, esse torna-se ponto importante deste recurso, a ser resolvido à luz do regime de bens adotado pelas partes (comunhão parcial) quando do casamento. Sua compreensão soluciona a dúvida quanto à extensão de um eventual contributo do ex-marido no pagamento das prestações do mútuo contratado pela ex-esposa ainda antes do casamento. E tudo para concluir-se acerca do direito do ex-marido a parte do imóvel da ex-esposa, que é o pedido da inicial.
34. Pela comunhão parcial, a aquisição onerosa de bens na constância do casamento constitui fenômeno que os faz integrar o patrimônio comum do casal e, por consequência, submetê-los à partilha por força da eventual dissolução da sociedade conjugal.
35. No caso, o pagamento do empréstimo tomado pela apelante antes do casamento não é resultado nem forma de aquisição originária ou derivada de nenhum bem; é, isto sim, objeto (prestação) da relação obrigacional estabelecida entre a ex-esposa, ora apelante, e a CEF. Trata-se, pois, de matéria a ser dirimida a partir dos ditames de direito obrigacional.
36. Decerto, pois, que a quitação futura do mútuo não gerará a aquisição do referido imóvel, que já integrava o patrimônio particular da apelante, ex-esposa, ainda antes do casamento, e constituiu-se em garantia (hipoteca) da obrigação tomada por ela junto à CEF.
37. Não é difícil concluir que a prestação referente ao mútuo sempre foi ônus exclusivo assumido pela apelante, ex-esposa, não pelo casal. Sob essa ótica, ainda que o apelado tenha contribuído de alguma forma com o pagamento das prestações, tal não lhe gerou, por absoluta impossibilidade legal, qualquer direito no imóvel que possa ser objeto de divisão em sede de partilha, à vista da absoluta ausência de prova cabal da sua contribuição no particular.
O pagamento das prestações, se deveras e quando adimplidas mercê do “esforço comum”, é questão fática a ser provada à saciedade, e não presunção que se extraia do só fato da convivência. É que, como visto, o dever de pagar dívida contraída ainda antes do casamento, seja para que fim for, é obrigação exclusiva e individual do devedor particular.
38. Aqui, o ex-marido, discute e pleiteia meação do imóvel, nitidamente equivocado. Destaque-se que as demais pretensões dele foram devidamente afastadas e não mereceram contrariedade recursal de sua parte.
39. Postas as coisas em ordem, a discussão fica apenas na partilha das prestações de obrigação de mútuo particular da ex-esposa, pagas na constância do casamento, muito embora essa discussão se arraste para um campo estranho ao objeto do pedido declinado na inicial.
40. A despeito disso, mas em assim sendo, o caso não pede, em absoluto, a presunção que lhe quis emprestar a sentença como um subterfúgio, muito embora sem qualquer laivo de má-fé, senão eivado de preconceito ou, dada vênia, de vesga leitura e repetição impensada, tomando por indefectível equivocada jurisprudência.
41. Assim, a interpretação a que se deve dar cobro, a propósito da comunicabilidade excepcional de obrigações assumidas antes do casamento, vem a propósito não de garantir ao cônjuge que não pagar o débito, mas àquele que, assumindo solitariamente a obrigação, dela não se tenha de desincumbir sozinho, porque o outro usufruiu dos benefícios do negócio geratriz da obrigação. Isso vale, naturalmente, para obrigar ao cônjuge que se beneficie da obrigação sem tê-la contraído, já então num quadro de cobrança ou execução da obrigação. Jamais se poderá, em indevida interpretação extensiva, afirmar que, em não havendo ambiente de cobrança ou execução, o cônjuge que não participou do negócio venha pleitear indenização ao término do casamento, com base em presunção – contra legem – de que tenha pago dívida (mesmo parcial) do outro cônjuge devedor. Assim, o dispositivo vem é ao socorro do cônjuge devedor apenas para impor obrigação ao outro cônjuge, e não como se fora uma presunção de comunicabilidade. A regra é: o dever de pagar é apenas e exclusivo do devedor, que, embora casado, presume a lei, solverá a obrigação com seu recurso particular. Se algo houve de diferente, deve ser provado É exatamente o que ensina PONTES DE MIRANDA, ao comentar o art. 263, VII, do CCB/1916 (correspondendo ao art. 1.659, III, do CCB/2002):
2. ÔNUS DA PROVA. – O princípio geral é de que as dívidas anteriores não se comunicam. Devem entender-se, portanto, não-comunicadas todas essas obrigações. Ao interessado incumbe provar a vantagem auferida pelo outro cônjuge, e da virtus probandi de seus argumentos e meios de convencer (testemunhas, documentos e o mais de direito) depende a comunicação ou incomunicação das referidas dívidas.
A incomunicação não fica dependente de prova. Houve ou não houve a não-comunicação. Apenas, uma vez que se trata de fato, é preciso assentar-se, probatòriamente, ter existido, quer se trate de destinação das dívidas, conforme o art. 263, VII, aos aprestos matrimoniais, quer se trate de auferência de vantagem por parte do outro cônjuge. Enquanto não passa em julgado a decisão sobre a destinação da dívida, ou sobre o locupletamento por parte do outro cônjuge, nada se sabe ao certo sobre a comunicabilidade ou incomunicabilidade de tais dívidas. De qualquer modo, a comunicabilidade ou incomunicabilidade começou quando devia começar, com todas as conseqüências da irrevogabilidade do regime matrimonial de bens: data do casamento. [3]
III – g) – Interpretação, hermenêutica e presunção
42. Algumas considerações aqui se fazem oportunas acerca da interpretação, esta que muito auxilia na aplicação da lei para solucionar os casos judiciais. E em especial quando haja, primeiro, lacuna na lei, o que definitivamente não se nos afigura ser o caso da espécie.
43. Como não nos é dado a excelência na exposição doutrinária, e no afã de fazê-lo não sob a perspectiva acadêmica, socorremo-nos dos mais autorizados e hábeis, como foi o jurista magistrado Min. OROZIMBO NONATO, do Supremo Tribunal Federal (STF), quando da relatoria da Representação no 95/DF. São palavras de Sua Excelência, hoje tomadas por página clássica da jurisprudência de todos os tempos:
(…)
Verificada a lacuna da lei, exauridos todos os recursos – e mais são eles amplíssimos – da analogia, ascende o intérprete aos princípios gerais, que lhe rasgam prospectivas indefinidas, e em que sua atividade atinge as fronteiras da criação, segundo Nast:
Aujourd’hui on constate qu’en fait la jurisprudence a trois fonctions très nettes, que se sont peu à peu develops pées: une function, un peu automatique, consistant à “apllliquer la loi”; une fonction “d’adaptation”, que consiste a mettre la loi em harmonie avec les idèes contemporaines et les necessites modernes; une fonction “créatrice”, distinèe a combler les lacunes de la loi et à établir, la ou la loi est muette, “des règles juridiques nouvelles”.
Se a lei não é suficiente para revelar as regras jurídicas todas, e se a analogia, em qualquer de seus graus (e, na sua expressão mais elevada, a analogia juris, ela forma, segundo Windscheid, a parte mais nobre da interpretação), falha, há que procurar solução em região ainda mais soberba e cuja designação varia – direito natural, a unidade orgânica do direito (Savigny), a natureza das coisas (Stoble, Regelsberger), “Superlegalidade” (Josserand), princípios gerais, etc., tudo sem fazer da jurisprudência, como dizia Jhiering, a matemática do direito e sem relegar a oblívio o fim social das leis e das instituições, o “bem comum”, que o Doutor Angélico inseria na noção mesma da lei. Para reconhecê-lo, não se faz mister atribuir tamanha preponderância à “jurisprudência de interesses” sobre a “construção conceitual”, que se chegue, com Stampe, a atribuir ao juiz a faculdade de alterar a lei, em nome do “salus populi”. O primeiro dever do juiz continua a ser o da fidelidade à lei. Mas, na interpretação desta, seria erro maior de marca olvidar que o direito é, do mesmo passo, uma expressão de justiça, e, como diz Vander Eycken, uma “organização de utilidade social”, eliminar, enfim, entre os dados da interpretação, a idéia de causa final, o dado teleológico.
Se o aplicador da lei não deve tomar o “chemin glissant” do “bon juge”; se os delírios do “freies recht” levam a sorvedouros mortais; se a “sequitas cerebrina” é o veículo de formas extremas do arbítrio judicial, é certo que, exaurida a fonte mais próxima do direito, a lei, em sua letra e em sua lógica, terá o intérprete que tomar do alfazar dos princípios gerais, mundo maravilhoso em que vivem, para lembrar uma expressão de Geny, “inspirações e sugestões de todas as ciências técnicas”. O direito, em suma, está principalmente na lei, que o exprime, e que traduz a vontade média dos cidadãos a que o juiz se acurva, ainda que haja de conter os impulsos de sua vontade pessoal. É um mal o excesso de subjetivismo na aplicação do direito; é ele vitando, ainda quando, por deficiência da lei, tenha o juiz, para guiá-lo, suas noções de direito e de injusto (vide Benjamin Cardoso, A Natureza do Processo e a Evolução do Direito, trad. Lêda Boechat Rodrigues, PP. 70-71). Posto que deva e possa o juiz vitalizar a lei com as insuflações da “consciência social”, deve fazê-lo, na advertência de Degni, na medida em que eles receberam reconhecimento, ainda que indireto no sistema da legislação. Em suma: o sacratíssimo dos deveres do juiz é transformar-se em guarda sereno e circunspecto, mas intransigente e indobrável, da lei. Deve amá-la com todas as veras, mas de um amor esclarecido, lúcido, e não com a inconsciência de um amouco, ou com a cegueira de um obcesso. É por isso mesmo que seus desvelos miram a dar-lhe a realeza, deve compreender-lhe a índole profunda e não se contentar com uma preeminência puramente nominal ou simbólica. Sem a elasticidade normal na aplicação da lei, não se realiza o verdadeiro direito. E já se disse que a legítima interpretação da lei apoia-se sempre no texto, mas ultrapassa-o, assaz das vezes, às mais das vezes. Não se pode, como dizia Saleilles, ver num código um todo que se basta a si mesmo, vazio de vida orgânica, uma construção abstrata, e que nada recebe da vida exterior. O juiz deve, em síntese, guardar fidelidade à lei, como expressão do direito, examinando-a em sua letra e procedendo a sondagens proferidas em seu espírito. Se a pesquisa é infrutuosa em dada hipótese, restam-lhe as regiões nunca vindimadas à última, dos princípios gerais, como apresenta Del Vecchio, sem relegar a olvido que, no direito, não troneja, apenas, o “demiurgo do princípio”, porque ele deve ser, antes de tudo, um instrumento de felicidade humana. (…) [4]
44. Certamente aqui não é sede de divagações maiores acerca do processo hermenêutico, até porque nenhum dos pares julgadores dá-se a ser discente em matéria de interpretação, máxime nesta altura de suas vidas, na agudeza de sua maturidade jurídico-judicial.
45. Trata-se mais de elementos de importante lembrança para contextualizar o caso em estudo, muito embora, ao final, cada caso seja um caso, e nem aqui se pretende que toda situação envolvendo o regime de comunhão parcial, com situações patrimonial e obrigacional determinadas antes do casamento, se vá solucionar nos estreitos espartilhos da decisão que hoje aqui se toma.
46. No plano da presunção, em regime de comunhão parcial, se se está em face das exceções legais dispensa-se qualquer esforço probatório a favor de quem pelo regime seja contemplado, invertendo o ônus para o cônjuge que alegue um benefício em contrário.
A doutrina não dissente quanto a que não se partilham bens e obrigações anteriores ao matrimônio, quando desfeito o casamento celebrado sob o regime de comunhão parcial, seja sob o Código Civil de 1916, de BEVILAQUA e RUI, seja sob o vigente diploma de 2002 de MIGUEL REALE. Já por quase um século a regra permanece convincente porque parece justa.
47. Ora, a presunção jurídica existe, em direito, por força de conclusão de imperativo legal, de circunstância antes contemplada pela lei. E a lei, no caso do regime de comunhão parcial, quando impõe ao ex-cônjuge como particular o débito de pagamento do mútuo, erige a presunção de que o adimplemento se dê por renda ou valores particulares desse mesmo ex-cônjuge. In casu, a ex-esposa é profissional com atividade remunerada, cujo salário, nos termos do art. 269, IV c/c art. 263, XIII, do CCB/1916, não se comunica.
48. Está em causa, a meu sentir, uma questão de legalidade como fonte do direito, para a qual a norma jurídica se compraz num ditame explícito, afastando qualquer complacência que clame, no processo hermenêutico, também pela integração por equidade.
49. Não se tenha, por essas palavras, a tese de que seria proibida a interpretação do dispositivo legal claro, pois absolutamente a isso não se chega. E nem mesmo me pretendo assecla da “Escola da Exegese”. É certo que ninguém mais crê na máxima justinianeia in claris cessat interpretatio, contagiante até os autócratas modernos, na lembrança de OLIVEIRA ASCENÇÃO, que disso advêm “absurdas posições (…) pelas quais se proíbe a interpretação da lei. Faz-se assim porque o legislador histórico desconfia do intérprete, e tem a pretensão de que na lei ficou transparente a vontade que quis impor”. [5] A propósito, é lição do mestre português:
I – Toda a fonte necessita ser interpretada para que revele a regra que é o seu sentido. Assim acontece com a lei, que será seguidamente o nosso objecto precípuo.
Há uma certa tendência para confundir “interpretação” e “interpretação complexa” e supor que se a fonte é clara não ocorre fazer interpretação. Há mesmo um brocardo que traduz esta orientação: in claris non fit interpretatio. Perante um texto categórico da lei, por exemplo, o intérprete limitar-se-ia a tomar conhecimento.
Mas esta posição é contraditória nos seus próprios termos. Até para concluir que a disposição legal é evidente foi necessário um trabalho de interpretação, embora quase instantâneo, e é com base nele que se afirma que o texto não suscita problemas particulares. Se toda a fonte consiste num dado que se destina a transmitir um sentido ou conteúdo intelectual, por mais simples que seja, como condição para extrair da matéria o espírito que a matéria encerra. [6]
III – h) – Do retorno à casuística: a presunção aplicável
50. E aqui reside exatamente aquilo que me ocorre perante este “caso concreto”. A espécie alberga, num dado momento cognitivo, o processo de interpretação, como sói de acontecer, de modo a que se possa alcançar a mais apropriada subsunção do fato à norma. E em encontrando uma norma aplicável, como deveras ocorre: jazem no Código Civil Brasileiro de 1916, reproduzidas com fidelidade no Código Civil Brasileiro vigente, as normas legais aplicáveis. E sobre elas não vejo nem sequer possibilidade de dissenso neste julgamento. O que ocorre é que, dada vênia, as posições incoincidentes com a solução por mim encontrada lançam mão do processo de integração, socorrendo-se de uma absurda presunção, renovada vênia, para um caso cujas circunstâncias fáticas não dão azo à integração, não clamam por ela, pois não há lacuna na lei a respeito da espécie.
51. A perseverar esse entendimento, uma presunção contra legem se estabelece para deturpar ditames legais estabelecidos e inequívocos, lúcidos e claros, por uma “jurisprudência da compaixão”. Com isso devo dizer que as convicções pessoais de julgadores que se agitam em dizer que aceitam ou não aceitam isso ou aquilo (STJ – REsp. no 246.613/SP – Rel. RUY ROSADO DE AGUIAR – j. 6.4.2000; 4a T – REsp. no 134.108/DF – DJ 19.12.1997) ofendem à boa e republicana aplicação da lei, num especioso sentimento de justiça que se traduz, ao cabo, numa desmerecedora prática de complacência.
52. Na espécie, a “presunção” de que muito se fala e em que se demora a doutrina, e por vezes a jurisprudência, reside na ilação extraída da própria lei, que estabelece para o casamento o estatuto dos bens na comunhão parcial. Se se delibera legislativamente (art. 269-275 do CCB/1916) que tudo quanto amealhar o casal na constância do conúbio pertença aos dois esposos, a presunção será, para o período que mediar entre o início e o fim do casamento, de que a aquisição de quaisquer bens no interregno pertença a ambos. A partir daí, discutir-se-á sobre as circunstâncias particulares da aquisição, sempre, acompanhada de exibição de provas de diversos matizes, justamente para se desconstruir tal presunção.
53. Porém, a mesma lei donde provém a referida presunção inverte as coisas ao excepcionar a regra. E proclama o CCB/1916 (como o de hoje – 2002): “excluem-se da comunhão” (art. 269) ou “não se comunicam” (art. 270). Ao dizer isso a lei civil criou a presunção de que em circunstâncias tais, pela regra, é de que não haja “esforço comum”. E, se porventura houver, de tal modo a derrubar a presunção, isso há de ser provado e bastante discutido no bojo de um processo judicial sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.
54. Para o caso em apreço, mesmo se houver alguma contribuição por parte do ex-marido, é de se questionar de quanto terá sido, desde que ele, como confessa, esteve desempregado por algum tempo (f. 4), de 15.2.2003 a 20.3.2004 (f. 111). Também deve-se ter em conta a quitação de várias parcelas com o montante de R$15.000,00 (quinze mil reais) da rescisão trabalhista da ex-esposa (f. 37 e 49).
55. Se se considerar que a ex-esposa, ora apelante, ainda na constância do matrimônio possuía renda oriunda do trabalho pessoal, incomunicável (art. 269, IV c/c art. 263, XIII, do CCB/1916), e, além, que a par disso, possuía dívida pessoal particular anterior ao casamento, incomunicável também (art. 270 do CCB/1916), qual a presunção se deve extrair? Presunção comum mesmo, ainda antes de considerá-la uma presunção jurídica relativa (juris tantum), é a resposta a se obter. É de se presumir, dizemos nós, que a única devedora de dívida particular incomunicável (art. 270 do CCB/1916), em se casando pelo regime de comunhão parcial de bens e tendo renda particular, mercê de seus proventos profissionais, também particulares e incomunicáveis (art. 269, IV c/c art. 263, XIII, do CCB/1916), vá solver solitariamente seus débitos.
A presunção é, pois, de que dispense, a toda evidência, qualquer auxílio do cônjuge. É a seu favor, então, a presunção de pagadora de seus débitos particulares. A eventual sub-rogação na espécie é excepcionalidade, e como tal há de ser provada, e bem provada, eficaz e satisfatoriamente provada.
56. Haverá a se nos impingir, do contrário, prevalente, um senso comum imoral, preconceituoso e nefasto, a desconsiderar qualquer regulamento legal bastante (art. 269-275 – Cap. III – Tít. III – Livro I – Parte Especial – CCB/2016) para, ignorando o comando da lei, que, in casu, dispensa qualquer pacto antenupcial, forçar uma interpretação de cunho eminentemente caritativo, complacente, nada jurídico.
57. Tratando de espécie análoga à destes autos, o Min. BARROS MONTEIRO, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relator do REsp. no 108.140/BA (j. 8.2.2000, DJ 2.5.2000), tangencia a questão naquilo que aproxima os dois processos em cotejo (este e o REsp.). Isso, muito embora se afaste de nosso interesse, porque o STJ, naquele caso, não enfrentará o debate por impediente processual de que ali, em sede de recurso especial, se reaprecie matéria fática (art. 541, parágrafo único, do CPC, art. 255 do RISTJ e enunciado no 7 da Súmula do STJ). Mas mesmo assim, o ministro relator faz considerações – obiter dictum – sobre a matéria ao apreciar as razões do recorrente no tocante aos comandos do CCB/1916 (art. 269, I e II; 270 e 272), com escólios de CARVALHO SANTOS e JOÃO LUIZ ALVES, clássicos na sua especialidade.
58. Ora, a presunção comum socorre, em colmatação, onde a lei falece. E quando é o caso, pede a analogia, os princípios gerais, o bom senso e a presunção na análise dos fatos sob circunstâncias abertas, na presença de fatos que clamam por enquadramento jurídico. Não prevalece o apelo a tais recursos embora, se suficiente o ordenamento em contemplá-los, a tais fatos. Assim prescreve o art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC – Dec.-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942), hoje denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (redação dada pela Lei no 12.376, de 30 de dezembro de 2010). Tais mecanismos de integração socorrem-nos apenas para os casos de lacuna.
59. Por tudo, deve-se ter que o caso destes autos não enfrenta qualquer lacuna da lei; pelo contrário, a regência da espécie no campo legislativo é coincidente seja com o CCB/1916, seja com o CCB/2002, ou mesmo na legislação anterior, como se pode colher nos comentários de JOÃO LUIZ ALVES (Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil Anotado, Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia. Editores Livreiros, 1917, p. 225-228).
III – i) – Da norma (lei) inequívoca para o caso
60. Enfim, para o caso decidendo, dívida é dívida, obrigação é obrigação, independentemente de seu objeto ou de sua causa. O que aqui se quer aclarar com esta demora é mesmo afastar a sombra do senso comum simplista ou do justiceirismo, que, sob o brado da “presunção do esforço comum”, ousa afastar expressa disposição legal da incomunicabilidade das obrigações contraídas antes do casamento. É que o disposto no art. 270, I, do CCB/2002, de estreito encerro, serve para alguma ou qualquer obrigação, não se desconstituindo a pretexto de alguma ou qualquer presunção, mesmo aquelas que possam soar ao leigo ou até ao julgador como justas. Pois, como dirá OLIVEIRA ASCENSÃO, referindo-se à letra da lei, esta “não é só um ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer isto dizer que o texto funciona também como limite da busca do espírito”. [7]
61. Ainda, se isso possa parecer injusto ou indevido, o caminho apropriado e legal é mudar a lei (de lege ferenda). E em sede judicial, por se tratar de exceção à regra legal, a circunstância do “esforço comum”, à vista de que o devedor particular que tenha como pagar o débito por suas forças particulares incomunicáveis (salário v. g., art. 269, IV c/c art. 263, XIII, do CCB/1916 ou art. 1.659, VI, do CCB/2002), a questão de fato há de ser muito evidente.
62. Assim, se a pessoa, ainda antes do casamento, contrai obrigação de pagar um empréstimo de R$100.000,00 (cem mil reais), em nada afeta a incomunicabilidade dessa dívida o fato de saber-se em que fora aplicada tal quantia, se consumida em coisas fúteis, etéreas e fugazes ou se com objetos duráveis como os diamantes ou bens de raiz. Para o regime da comunhão parcial de bens a lei foi taxativa e dura: tais obrigações são incomunicáveis, assim pelo CCB/1916 (art. 270, I), sob o qual se casaram as partes ora litigantes, seja pelo vigente CCB/2002 (art. 1.659, III). E aqui não há espaço para divagações hermenêuticas, principiológias, que para tudo servem como solução, ou qualquer sentimentalismo vulgar e atécnico. É que o legislador deixou sua marca e seu sinal na sistemática da elaboração da lei civil em pauta (de ontem e de hoje) quando, ao tratar do regime de comunhão universal de bens, expressamente adverte que se comunicará a obrigação se se aproveitar dela o outro cônjuge estranho (terceiro) ao negócio (art. 263, VII). Ao atento vale o aviso: essa exceção absolutamente não se aplica ao regime de comunhão parcial de bens. Será por quê? E a resposta é simples: porque não há tal previsão nesse regime de bens.
63. Para além, deve-se considerar não haver sentido pensar-se numa obrigação sem a natural e esperada condição de que será saldada, a tempo e a modo pelo devedor, nos termos do avençado. Isso se dará, como mesmo já previa o CCB/1916, depois do casamento, no curso deste. Aqui reside, já então muito esclarecidas as circunstâncias legais e fáticas que emolduram a espécie, a questão a se decidir: eventual contribuição do cônjuge-terceiro-na-obrigação para pagar as parcelas do respectivo débito, na constância do casamento que se desfez. Há para o caso quem possa especular uma presunção de que esse estranho ao negócio, mas depois íntimo do devedor – a esposa -, tenha contribuído para o pagamento. A presunção pretendida reside no fato exclusivo de estarem casados. Pergunta-se, pois, de que valeria a determinação legal de incomunicabilidade, se se erige, no contexto, uma presunção contra legem (!)? É que há, no arroubo de um senso comum simplista, a impressão – falsa – de pressupor que o cônjuge – qualquer deles – não tenha como solver suas dívidas pessoais e particulares sem evitar a participação do outro. Mas isso não é verdade, pois o casamento, máxime nos tempos hodiernos, não é uma promiscuidade dos teres e haveres, menos ainda sob o regime de comunhão parcial. Reserva-se, nessa comunhão de afetos e/ou patrimônios, um espaço ao particular, ao pessoal, ao incomunicável. Então, a presunção é – por força da lei que não permite se comunicarem sob o regime de comunhão parcial as obrigações adquiridas antes do casamento -, de que o devedor de referidas obrigações vá quitá-las com parte da sua renda destinada a atender seus compromissos particulares, pessoais, exclusivos. Isso, no entanto, não afasta a possibilidade de que o outro cônjuge estranho ao negócio participe do pagamento do débito oriundo daquele negócio; e como excepcionalidade, há de provar eficazmente a sua participação para pretender, ao depois, qualquer ressarcimento.
64. E no caso, a ex-esposa tinha renda própria e particular (assalariada), independente, portanto, para honrar, sozinha, suas dívidas pessoais – v. g. anteriores ao casamento.
III – j) – Da sub-rogação
65. Dessarte, o pagamento das prestações do empréstimo não poderia aproveitar ao ora apelado, ex-marido. E ainda que ele houvesse pago as prestações com recursos próprios – o que não foi comprovado nestes autos – não se sub-rogaria nos direitos do credor. Sobre o conceito de terceiro sem interesse jurídico e o efeito advindo do pagamento que ele faz da prestação, trago observações de NELSON ROSENVALD:
(…) … o terceiro não interessado também pode figurar como solvens. Aquele pode ser conceituado como o estranho à relação obrigacional, a princípio sem interesse jurídico no débito, mas que em virtude de um interesse moral exerce a pretensão de resgatar a obrigação.
Duas são as formas de intervenção concedidas ao terceiro não interessado: a uma, poderá pagar por conta e em nome do devedor (art. 304, parágrafo único, CC), hipótese que em seus efeitos traduz verdadeira doação incondicional, extinguindo-se a dívida, sem direito a reembolso. Seria o caso de um pai que se diirige ao credor de seu filho para efetuar o pagamento; a duas, se o terceiro não interessado efetua o pagamento em seu próprio nome, terá direito ao reembolso, sem que isto importe em sub-rogação legal (art. 305 do CC). Vale dizer, o terceiro não vai incorporar a qualidade creditória do credor originário, pois não havia qualquer motivação jurídica para ter efetivado o pagamento, aliás, muitas vezes sua intervenção tem o objetivo moral de constranger o devedor ao expor a sua situação de insolvência no meio social. Portanto, o terceiro desinteressado apenas pleiteará a quantia efetivamente despendida através da actio in rem verso, para evitar o enriquecimento injustificado do devedor (art. 844, CC), eis que não absorve as garantias decorrentes do vínculo obrigacional originário. A única possibilidade de o terceiro não interessado que paga em seu próprio nome se sub-rogar na posição do antigo credor será nos casos de sub-rogação convencional, ou seja, quando o credor original expressamente lhe transferir as suas garantias contra o devedor (art. 347, I, CC) – destaquei. [8]
66. Nesses termos, ante a impossibilidade de o apelado, ex-marido, se sub-rogar no direito da CEF, ainda que tivesse efetuado os pagamentos das prestações do empréstimo, o que, repita-se, não está comprovado nos autos, não seria pela via da partilha a discussão de eventual ressarcimento.
III – k) – Da presunção do “esforço comum”
67. Para o caso, o ex-marido, ora apelado, muito embora sem explicitamente pedir, quer fazer prevalecer, e como tal ver aplicada, a chamada “presunção do esforço comum”, teoria que, de alguma maneira, é muito agitada na doutrina e na jurisprudência, ainda que em casos específicos, muito bem delineados (espera-se).
68. Há, no entanto, um evidente equívoco nessa pretensão do ex-marido. A presunção que se deve extrair do regime de comunhão parcial de bens não há de ser em prestígio ao “esforço comum” (art. 271 e 273 do CCB/1916) para o resultado das conquistas patrimoniais no curso da convivência, na constância do casamento (art. do CCB/1916), à vista de exceções prescritas na mesma lei (art. 269, 270 e 272 do CCB/1916). É que tais exceções vêm exatamente para afastar a referida presunção (“esforço comum”). Nos casos excepcionados há a inversão da presunção, que então passa a militar a favor do cônjuge que traga para o casamento imóvel ou dívida adquiridos antes do enlace.
69. Acrescento, ainda, que aqui a solução prescinde da análise da presunção de esforço comum advinda do regime de comunhão parcial de bens, pois há no caso absoluta incomunicabilidade de direitos e obrigações, visto que adquiridos e contraídos antes de se estabelecer a sociedade conjugal.
70. A título de ilustração e para facilitar o raciocínio desenvolvido, trago a hipótese de o apartamento objeto desta ação ter-se perdido, por um incêndio que o destruísse completamente. Nesse caso seria mais evidente o absurdo da pretensão do apelado de partilhar metade das prestações do empréstimo pagas durante o casamento. Ou seja, ainda mesmo com o perecimento da coisa, a obrigação da apelante com a CEF permaneceria intacta, acrescendo-se a ela outra obrigação, agora tendo também o ex-marido como credor, pelo só fato de ter havido pagamento das prestações do empréstimo na constância do matrimônio.
A hipótese bem ilustra o equívoco de se misturarem relações jurídicas autônomas (aquisição de bem, empréstimo e casamento), cujas obrigações e direitos não podem se comunicar, máxime quando estabelecidas em momentos distintos e sem previsão legal para tanto, tudo sob pena de se chegar a conclusões absurdas.
III – l) – Da dívida do ex-marido
71. Também, verifica-se que o apelado sabe bem divisar os efeitos de obrigações contraídas antes e durante a relação conjugal, pois deduziu pretensão de partilha de empréstimo que alegou tomado durante o casamento, mas que, por ausência absoluta de provas, não foi acolhida na sentença. E nem mesmo foi objeto de qualquer recurso.
III – m) – Da utilização comum do imóvel particular de um dos cônjuges: economia do aluguel
72. Ad argumentandum tantum, a se tomar que o pagamento das prestações durante o casamento se presumiria como resultado de contribuição de ambos os cônjuges, independentemente de ser obrigação exclusiva de apenas um deles, por contraída antes mesmo do casamento, cumpre considerar, a partir do caso em análise, que o imóvel de propriedade da ora apelante, adquirido com recursos exclusivos seus, obtidos antes do casamento, foi utilizado como moradia do casal durante o matrimônio, eximindo as partes de eventual pagamento de aluguel.
73. Nessa linha, não havendo prova de o apelado ter suportado o pagamento das referidas prestações – ou parte delas – é de se considerar os pagamentos – se havidos – como despesas cotidianas de qualquer casal, confundido-se com aquelas ordinárias da vida (supermercado, contas de água e luz etc.), que não são objeto de partilha ao cabo da relação conjugal.
III – n) – Da ofensa a lei federal
74. Tendo em vista que não houve aquisição de qualquer direito ou obrigação durante a relação conjugal mantida entre as partes, não há o que se partilhar, devendo a sentença ser integralmente reformada para se julgar improcedente o pedido inicial.
75. E nesses termos, tenho que a sentença, ao fixar-se no art. 1.658 do CCB/2002 (regra geral), para além de aplicar equivocadamente a lei na espécie, porque a regência está no CCB/1916, brada contra o direito posto, em evidente ofensa a lei federal, especialmente os ditames do Código Civil Brasileiro – seja de 1916 ou de 2002 -, naquilo que regulamentam o regime de comunhão parcial de bens para o casamento.
IV – CONCLUSÃO
76. POSTO ISSO, DOU PROVIMENTO À APELAÇÃO, PARA REFORMAR A SENTENÇA, JULGANDO IMPROCEDENTE O PEDIDO DE PARTILHA FORMULADO POR C.C.B.S. CONTRA L.P.S. Pela sucumbência, condeno o requerente nas custas e honorários advocatícios, estes que arbitro em R$2.000,00 (dois mil reais), tomando em consideração a pouca complexidade da causa; o tempo curto da duração do processo, decorrido mais de 3 (três) anos do ajuizamento da ação até a sentença; e a prestação do serviço na Comarca onde o advogado se estabelece. Fica suspensa a exigibilidade dessa condenação face à isenção que beneficia o apelado (art. 10, II da Lei no 14.939/2003).
É o voto.
VOTO REVISOR
DES. WASHINGTON FERREIRA (Revisor):
Senhor Presidente,
Em que pese os fundamentos expostos no voto condutor, ouso divergir do eminente Relator, por possuir entendimento diverso quanto ao tema posto em juízo.
No “regime da comunhão parcial de bens”, em linhas gerais, devem ser partilhados igualitariamente todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do enlace matrimonial, independente de qual tenha sido a contribuição de cada cônjuge para a consecução do resultado patrimonial, pois, presume-se que a aquisição seja produto do esforço comum dos nubentes, passando, então, a pertencer a ambos em parte iguais.
Em acréscimo, a Desembargadora MARIA BERENICE DIAS, que compõe o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sua obra “Manual de Direito de Família”, 8ª Edição – 2011, tece comentários quanto à desnecessidade de se comprovar o esforço comum para a partilha dos bens adquiridos na constância do casamento, salvo as hipóteses do art. 1660 do Código Civil, in verbis:
“A comunhão do patrimônio comum atende a certa lógica e dispõe de um componente ético: o que é meu é meu, o que é teu é teu e o que é nosso, metade de cada um. Assim, resta preservada a titularidade exclusiva dos bens particulares e garantida a comunhão do que for adquirido durante o casamento. Nitidamente, busca evitar o enriquecimento sem causa de qualquer dos cônjuges. O patrimônio familiar é integrado pelos bens comuns, que não se confundem com os bens particulares e individuais dos sócios conjugais. Comunica-se apenas o patrimônio amealhado durante o período de convívio, presumindo a lei ter sido adquirido pelo esforço comum do par” (pág. 236).
Nesta mesma perspectiva, o civilista ROLF MADALENO, ao discorrer sobre a desnecessidade de se comprovar a contribuição do convivente na aquisição do patrimônio comum do casal, esclarece que:
“decorre do artigo 1.725 do Código Civil uma presunção plena de comunhão dos bens amealhados durante a convivência estável, com a aplicação literal dos dispositivos pertinentes ao regime da comunhão parcial de bens previsto para o casamento, só não integrando a comunhão dos bens aquelas situações regulamentadas no artigo 1.659 do Código Civil, e no sentido oposto ingressam na partilha dos conviventes os bens provenientes das hipóteses descritas no artigo 1.660 do Diploma Substantivo Civil. Igualmente não se comunicam os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento, ou á união estável, como, por exemplo, um contrato de compra e venda de bem imóvel quitado antes do relacionamento e escriturado na constância da convivência” (in Curso de Direito de Família; Editora Forense; 2011; pág. 1074). (grifei)
Porém, no regime da comunhão parcial, todos os bens adquiridos (móveis e imóveis) durante o casamento são considerados fruto do trabalho comum do casal, passando a pertencer a ambos em parte iguais.
Retornando ao acervo probatório, resta incontroverso que os litigantes contraíram matrimônio no dia 22 de novembro de 2002, sob o “regime de comunhão parcial de bens” (f. 15), vindo a se separarem na data de 02 de julho de 2007 (f. 15).
Inconteste, também, que na data de 08 de agosto de 2001, a Apelante / Autora adquiriu um imóvel localizado na Rua João Limírio dos Anjos, nº 2.065, apartamento nº 02, no bairro Santa Mônica, nesta capital, sob a matrícula nº 54.578, do 1º Cartório de Registro de Imóveis, com financiamento junto à Caixa Econômica Federal (f. 40).
Consoante o “Contrato de Compra e Venda” nº 8.1910.0000434-4, com constituição de mútuo em favor da Caixa Econômica, constata-se que o bem objeto da partilha foi comprado pela Autora / Apelante por R$ 28.000,00 (vinte e oito mil reais), com integralização do valor de R$ 6.152,28 (seis mil, cento e cinqüenta e dois reais e vinte e oito centavos), restando R$ 21.847,72 (vinte e um mil, oitocentos e quarenta e sete reais e setenta e dois centavos), com prazo de 240 (duzentos e quarenta) meses de amortização, com vencimento da primeira parcela em 08 de setembro de 2001.
Nota-se, ainda, que as partes viveram no imóvel desde o casamento até 01 de fevereiro de 2007 (f. 42), sendo certo que 51 (cinquenta e uma) parcelas do financiamento foram adimplidas durante a convivência conjugal.
Diante de tal circunstância, entendo que os valores referentes às prestações do financiamento pagas durante o enlace matrimonial deverão ser rateados entre os litigantes, muito embora o bem, que inclusive foi utilizado como moradia do casal, tenha sido adquirido pela varoa antes da convivência conjugal.
Conquanto o Apelado / Autor não tenha figurado na relação jurídica com a instituição financeira, como também não integrou o mútuo habitacional, afastando-se, assim, eventual responsabilidade solidária em relação às obrigações conferidas ao imóvel junto à Caixa Econômica Federal, os nubentes, maiores e capazes, no ato do enlace patrimonial, optaram pelo “regime de comunhão parcial de bens”.
No caso, não se discute a natureza do contrato firmado pela Apelante / Ré junto à Caixa Econômica Federal, mas apenas o direito por parte do cônjuge varão quanto às parcelas do financiamento quitadas durante a vida conjugal que, na verdade, passaram a integrar o patrimônio comum do casal.
Portanto, os valores quitados ao longo da vida em comum, considerado a data e a data estabelecida na origem (01/02/2007), embora entenda que o marco final deveria ter sido a data da separação judicial (02/07/2007), deverão ser rateados, em partes iguais, entre os litigantes, especialmente porque a presunção é de que as parcelas quitadas atinentes ao financiamento se deram mediante esforço comum do casal.
Registra-se, também, oportunamente, que não tendo os cônjuges celebrado pacto antenupcial dispondo sobre questões patrimoniais, estes devem suportar os efeitos das regras do “regime da comunhão parcial de bens”, no momento da partilha.
Nessa linha de entendimento, peço vênia ao Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, para transcrever a ementa do REsp 246.613/SP, de sua relatoria, julgado em 06/04/2000, com publicação 22/05/2000, p. 117:
COMUNHÃO PARCIAL. Partilha. Meação. Imóvel adquirido pelo marido antes do casamento. O fato de o marido ter adquirido o imóvel antes do casamento não elimina o direito da mulher de ver incluída na comunhão a parcela paga a título de financiamento, durante o casamento. Recurso conhecido em parte e parcialmente provido.
Outro não é o raciocínio do Ministro BARROS MONTEIRO, no julgamento do REsp 108.140/BA, realizado em julgado em 08/02/2000, com publicação no dia 02/05/2000:
DIVÓRCIO. PARTILHA DE IMÓVEL ADQUIRIDO PELO VARÃO ANTES DO CASAMENTO PELO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. PRESTAÇÕES CONCERNENTES AO FINANCIAMENTO SOLVIDAS COM O ESFORÇO COMUM DO CASAL. ADEQUADA SOLUÇÃO ENCONTRADA PELO ACÓRDÃO RECORRIDO: A MULHER FICA COM O DIREITO À METADE DAS PRESTAÇÕES PAGAS NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO, MAIS AS BENFEITORIAS REALIZADAS. – Reconhecido pelo V. Acórdão que a aquisição do imóvel se dera com a contribuição, direta ou indireta, de ambos os cônjuges, justo e razoável que a mulher fique com o direito à metade dos valores pagos na constância da sociedade conjugal, acrescido das benfeitorias realizadas nesse período, respeitado o direito de propriedade do varão.
Aliás, é o posicionamento desta egrégia CASA DE JUSTIÇA:
CIVIL E PROCESSO CIVIL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. PARTILHA DE BENS. ESFORÇO COMUM. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL. PAGAMENTO DE PARCELAS DE FINANCIAMENTO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. Determina-se a partilha de imóvel proporcionalmente à quitação de parcelas do financiamento na constância do casamento, mesmo que a aquisição do bem tenha iniciado por um dos cônjuges quando solteiro. Dá-se provimento ao recurso. (Apelação Cível 1.0024.06.035965-0/002, Rel. Des.(a) Almeida Melo, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/11/2008, publicação da súmula em 18/11/2008)
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE PARTILHA DE BENS – PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO PRINCIPAL – REJEITADA – VALOR DA ALIENAÇÃO JÁ DECOTADO O VALOR DEVIDO À EMPRESA DE EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS – IMÓVEL FINANCIADO – PATILHA DOS VALORES DAS PARCELAS PAGAS DURANTE O CASAMENTO – FIXAÇÃO DE ALUGUEL INDEFERIDO – SOCIEDADE – LIQUIDAÇÃO EM JUÍZO PRÓPRIO – RECURSO PRINCIPAL PARCIALMENTE PROVIDO – RECURSO ADESIVO IMPROVIDO. – No que tange ao imóvel alienado de Lagoa Santa/MG, deve ser esclarecido que deverá ser partilhado, 50% para cada parte, do valor da alienação constante da declaração de imposto de renda da requerente, do qual já foi decotado o valor devido à empresa Nova União Empreendimentos Imobiliários Ltda – Como o imóvel foi adquirido pelo réu antes do casamento, sob o regime de comunhão parcial de bens, caberá à autora apenas a partilha dos valores das parcelas do financiamento pagas na constância do casamento, visto que a presunção é de que os pagamentos do financiamento se deram mediante esforço comum dos cônjuges. – Mantém-se a decisão primeva quanto ao indeferimento da fixação dos aluguéis em favor da autora, uma vez que o apartamento é de propriedade do réu e não se trata de patrimônio comum do casal, como também, em relação à empresa, há a necessidade da liquidação, em juízo próprio, pelas partes. (Apelação Cível 1.0024.09.679022-5/001, Relator(a): Des.(a) Hilda Teixeira da Costa , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 05/06/2012, publicação da súmula em 25/06/2012).
Logo, eventual pagamento por uma das partes de valor do financiamento adimplido pela outra, durante a convivência conjugal, acarreta acréscimo do montante correspondente a sua meação.
Destarte, o Apelado / Autor, na verdade, faz jus a metade do valor correspondente às parcelas do financiamento do imóvel quitadas durante a convivência conjugal, pois, embora desnecessária, não há sequer prova da utilização de recursos exclusivos da varoa destinados à quitação do financiamento.
Nesta linha de raciocínio, o ato sentencial merece um pequeno reparo, pois apesar de o ex-marido ter pretendido a meação do imóvel, este faz jus apenas à divisão igualitária do numerário pago das parcelas do financiamento durante a convivência conjugal, e não sobre o percentual sobre o bem no percentual de 14,16% (quatorze vírgula dezesseis por cento), já que a propriedade é exclusiva de sua ex-esposa, pois, o imóvel foi adquirido por ela antes do casamento.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO, para determinar que o quinhão do cônjuge varão corresponda a metade do valor referente as parcelas pagas do financiamento durante a convivência conjugal (22.11.2002 a 01.02.2007), o que deverá ser apurado em liquidação de sentença.
Custas recursais, pela Apelante, suspensa a exigibilidade nos termos do artigo 12 da Lei nº 1.060, de 1950.
É como voto.
DES. BELIZÁRIO DE LACERDA
Acompanho o judicioso voto do eminente Des. Relator Oliveira Firmo forte nos seguintes articulados de fundamentos.
Tanto o Código Civil de 1.916 quanto o vigente Código Civil de 2.002 mantiveram fiéis à teoria da imutabilidade do regime de bens entre cônjuges, repelindo a qualquer pretexto toda investida que objetive a flexibilização do regime legal de bens entre cônjuges adrede normatizado.
Neste diapasão jurídico é que nenhum patrimônio ativo ou passivo do cônjuge adquirido por este antes do “conjugo vobis” será levado em conta de patrimônio ativo ou passivo do casal para efeito de partilha.
E tal ocorre justo porque a entender partilhável tais acervos certamente não garantir-se-ia aos cônjuges aquela referida imutabilidade de regime pelos mesmos eleito ou imposto por lei.
Ademais disso cumpre observar que a aquisição do imóvel e o contrato de hipoteca deste se deu antes da contração de matrimônio do casal e considerando que a aquisição do imóvel mediante mútuo hipotecário ocorreu em nome da mulher apenas, pois à época ainda não havia matrimônio, põe-se referido imóvel à cavaleiro de qualquer partilha.
Desse modo é forçoso concluir que nem o imóvel e tampouco o mútuo hipotecário redundariam em benefício do casal já que à época inexistia matrimônio das partes.
Por fim se pagamento eventual de algumas prestações do mútuo hipotecário fora feito pelo cônjuge varão, este o fez simplesmente como terceiro não obrigado que paga por outrem, independentemente de qualquer direito de recobrar o que pagou.
SÚMULA: “POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, VENCIDO PARCIALMENTE O REVISOR”
Notas:
[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 8 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 126.
[2] BEVILAQUA, Clóvis. Código civil dos estados unidos do brasil comentado, atual. Achilles Bevilaqua, 11ed., Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda., vol. II, p.151.
[3] PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, 4 ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, Parte Especial, Tomo VIII (dissolução da sociedade conjugal. eficácia jurídica do casamento), § 897, no 2, p. 302 – grafia original.
[4] LEAL, Roger Stiefelmann. Memória jurisprudencial: ministro orozimbo nonato, Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2007 (Série memória jurisprudencial), p. 180-182.
[5] ASCENSÃO. José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral, 13 ed., refundida, Coimbra: Almedina, 2005, parte, I, tít. VII, cap. II, § 219 , p. 392.
[6] Idem, p. 391.
[7] ASCENSÃO. José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral, 13 ed., refundida, Coimbra: Almedina, 2005, parte, I, tít. VII, cap. II, § 222 , p. 396.
[8] ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações e responsabilidade civil, 2 ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2003. p. 72-73.
Fonte: Boletim INR nº 6268 – São Paulo, 06 de Fevereiro de 2014.