1º VRP|SP: Registro de imóveis – Dúvida procedente – Escritura pública de união estável com eleição de regime de separação total de bens e estipulação de efeitos retroativos – Impossibilidade – Ausência de contrato escrito anterior à data da escritura – Aplicação do regime legal da comunhão parcial de bens até a formalização – Impossibilidade de retroação dos efeitos patrimoniais do pacto – Prevalência do entendimento do STJ e do Provimento CNJ nº 141/2023 quanto à eficácia ex nunc – Manutenção do óbice registrário.
Sentença
Processo nº: 1072208-82.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: Décimo Cartório de Registro de Imóveis
Suscitado: Minka Ilse Bojadsen e outro
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 10º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Eduardo May Zaidan e Minka Ilse Bojadsen, diante da negativa em se proceder ao registro de escritura pública de união estável, envolvendo o imóvel da matrícula n. 97.464 daquela serventia.
O Oficial informa que foi apresentada pela interessada, por intermédio da plataforma eletrônica do ONR, digitalização da escritura pública de união estável de Eduardo May Zaidan e Minka Ilse Bojadsen, lavrada pelo 11º Tabelião de Notas de São Paulo, em 06 de junho de 2023 (livro 6.024, fls. 283), acompanhada de digitalização da certidão de registro de contrato de união estável efetuado no Livro “E” do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito – Sé, desta Capital, sob a prenotação n. 646.015; que o título foi devolvido, conforme nota de devolutiva emitida com exigências; que, dentro do prazo de validade da prenotação, os interessados promoveram o reingresso do título, acompanhado de requerimento solicitando o registro da união estável no Livro n. 3 – Registro Auxiliar e também a averbação na matrícula n. 97.464, em atendimento das exigências do item 1 e alínea “b” do item 2 (documentos devidamente formalizados nos moldes do artigo 209, do Provimento CNJ n. 149/2023), e pedido expresso de reconsideração da exigência “a” do item 2 e, caso mantida, fosse suscitada dúvida.
O Oficial esclarece que, no título apresentado, Eduardo May Zaidan e Minka Ilse Bojadsen declararam conviver em união estável desde meados do ano de 1998, e que, doravante (a partir da lavratura da escritura), elegeram o regime da separação total de bens, com efeitos retroativos (item III da escritura); que, contudo, a cláusula que tenta dar efeito retroativo ao regime de separação total de bens carece de validade, pois, durante o período de convivência sem contrato escrito, prevaleceu o regime legal da comunhão parcial de bens, tal como previsto no artigo 1.725 do Código Civil; que, com efeito, no período anterior à lavratura da escritura pública (06/06/2023) vigorou o regime da comunhão parcial de bens, ocasionando, inclusive, a comunicação dos imóveis adquiridos onerosamente nesse período (artigo 1.658, do Código Civil), como o matriculado sob n. 97.464 na serventia, ressalvadas as hipóteses do artigo 1.659 do Código Civil; que, nesse sentido, menciona precedentes do STJ; que acolher o registro da escritura com tal estipulação seria admitir a modificação do regime de bens, sem o devido processamento, prejudicando a segurança jurídica, além de potencial prejuízo a terceiros em relação a negócios pretéritos; que, outrossim, não obstante a omissão da lei, a alteração do regime de bens na união estável está regulamentada pelo Provimento n. 141/2023 do CNJ, fixando expressamente os efeitos ex nunc, ou seja, não retroativos, conforme artigos 9º-A, § 4º, da norma, que se aplica ao caso; que o imóvel objeto da matrícula 97.464 foi adquirido pela requerente em 2004, no estado civil de divorciada; que os companheiros declararam conviver em união estável desde 1998, portanto, não havendo notícia de contrato escrito, aplica-se o regime legal de bens previsto no artigo 1.759 do Código Civil, presumindo-se que os imóveis passaram a integrar o patrimônio comum dos conviventes, que, nestes termos, deve ser mantida a exigência formulada na nota devolutiva para consignar na escritura de união estável que predomina o regime da comunhão parcial de bens no período anterior à lavratura da escritura (fls. 01/04).
Documentos vieram às fls. 05/26.
Em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu que a exigência formulada e mantida pelo Oficial é excessiva e extrapola os limites legais da atividade registral; que o artigo 1.725 do Código Civil dispõe que, salvo contrato escrito, aplica-se à união estável o regime da comunhão parcial, logo, havendo pacto expresso, como no presente caso, o regime convencionado deve ser respeitado; que a jurisprudência citada pelo Registrador – REsp 1.597.675/SP – apenas afastou a presunção tácita de retroatividade, mas não vedou a pactuação expressa com efeitos pretéritos, o que foi feito na escritura pública; que, ademais, referida jurisprudência trata de um caso específico, em que não havia pacto escrito prévio, e a tentativa de retroagir o regime foi feita para excluir partilha, o que não é o caso em questão; que a recusa do registro, sob pretexto de que deveria constar na escritura ressalva quanto à ausência de efeitos retroativos, configura exigência sem base legal; que a escritura foi registrada perante outra serventia predial, o que reforça que não há ilegalidade; que, deste modo, requer o afastamento do óbice, determinando-se o registro do título (fls. 13/16 e 27/29). Juntou documentos (fls. 30/39).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice (fls. 43/45).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117, Cap. XX, das NSCGJ: “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.
No mérito, a dúvida é procedente.
No caso concreto, o dissenso envolve a registrabilidade da escritura pública de união estável lavrada pelo 11º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 6.024, fls. 283), que, acompanhada da certidão de registro de contrato de união estável efetuado no Livro “E” do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito – Sé, desta Capital, foi apresentada pela parte, visando o registro da união estável no Livro n. 3 – Registro Auxiliar e também a averbação na matrícula n. 97.464, do 10º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 19/22 e 23/24).
Consta da referida escritura lavrada em 06 de junho de 2023, que os contratantes Eduardo May Zaidan e Minka Ilse Bojadsen declararam conviver em união estável, desde meados de 1.998, elegendo o regime da separação total de bens, ao qual atribuíram eficácia retroativa à data de início do vínculo de convivência no ano de 1.998 (fls. 20).
Pela certidão da matrícula n. 97.464, vê-se que o imóvel foi adquirido pela requerente Minka Ilse Bojadsen em 20 de janeiro de 2004, no estado civil de divorciada (fls. 10).
É cediço que a união estável, como situação de fato, não se sujeita a nenhuma solenidade.
Conquanto não haja exigência legal de formalização da união estável como pressuposto de sua existência, a ausência dessa formalidade poderá implicar consequências aos efeitos patrimoniais da relação mantida pelas partes, sobretudo quanto às matérias que são prescritas pelo próprio legislador.
A regra disposta no artigo 1.725 do Código Civil disciplina sobre as relações patrimoniais entre os companheiros, nos seguintes termos:
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
O dispositivo citado determina que se aplicará às relações patrimoniais entre os companheiros o regime da comunhão parcial de bens, na ausência de convenção em contrário formalizada, por meio de contrato escrito. Ou seja: autoriza os companheiros a conferir às relações patrimoniais outra disciplina ou regime (comunhão universal e separação total de bens), mas desde que o façam por escrito, sendo esta a exigência legal para sua formalização.
Na hipótese em apreço, as partes lavraram a escritura pública de união estável em 06 de junho de 2023, vinte e cinco anos depois do marco inicial do vínculo de convivência, na qual elegeram que o regime de bens para reger a união estável seria o da separação total de bens, e convencionaram a retroação de efeitos do regime de bens da união estável eleito por ocasião da lavratura da escritura.
No entanto, na jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça, conforme acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial n. 1597675-SP (2015/0180720- 9), preponderou o entendimento de que, na união estável, a estipulação de regime de bens diverso do legal (comunhão parcial) não tem efeitos retroativos, com reconhecimento da prevalência do regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725, do Código Civil) no período anterior à lavratura da escritura pública. Eis a ementa do acórdão (nossos destaques):
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ESCRITURA PÚBLICA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS. ATRIBUIÇÃO DE EFICÁCIA RETROATIVA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES DA TERCEIRA TURMA.
1. Ação de declaração e de dissolução de união estável, cumulada com partilha de bens, tendo o casal convivido por doze anos e gerado dois filhos.
2.No momento do rompimento da relação, em setembro de 2007, as partes celebraram, mediante escritura pública, um pacto de reconhecimento de união estável, elegendo retroativamente o regime da separação total de bens.
3.Controvérsia em torno da validade da cláusula referente à eficácia retroativa do regime de bens.
4. Consoante a disposição do art. 1.725 do Código Civil, “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
5. Invalidade da cláusula que atribui eficácia retroativa ao regime de bens pactuado em escritura pública de reconhecimento de união estável.
6. Prevalência do regime legal (comunhão parcial) no período anterior à lavratura da escritura.
7. Precedentes da Terceira Turma do STJ. 8. Voto divergente quanto à fundamentação. 9. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.” (REsp n. 1.597.675/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 16/11/2016.)
No mesmo sentido, confira-se as seguintes ementas de outros julgados do C. Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 489 DO CPC. INOCORRÊNCIA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. ESCRITURA PÚBLICA DE UNIÃO ESTÁVEL ELEGENDO O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS. RETROATIVIDADE. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 568/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO E SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA. (…) 4. Não é possível a atribuição de eficácia retroativa a regime de bens da união estável pactuado mediante escritura pública. Precedentes.(…) 6. Agravo interno não provido” (AgInt no AREsp 1292908/RS, Rel. MIN. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/03/2019, DJe 27/03/2019).
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. DISSOLUÇÃO. ESCRITURA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITOS RETROATIVOS AO REGIME DE BENS. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADO SATISFATORIAMENTE. POSSIBILIDADE DE MITIGAÇÃO DO RIGOR FORMAL EM VIRTUDE DO DISSÍDIO NOTÓRIO. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
2. Na linha da jurisprudência dominante no âmbito das Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ, o regime de bens constante de escritura pública de união estável não tem efeitos retroativos.(…) 5. Agravo interno não provido.” (AgInt no REsp 1843825/RS, Rel. Ministro MOURA RIBEIR RMA, julgado em 08/03/2021, DJe 10/03/2021).
Em suma, a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que a eleição do regime de bens da união estável diverso do legal (comunhão parcial) por contrato escrito é dotada de efetividade “ex nunc”, não sendo instrumento hábil, por si só, para estabelecer a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto.
Outrossim, acolher o registro da escritura com tal estipulação que confere efeitos retroativos ao regime de bens da união estável eleito diverso do regime legal, seria o mesmo que admitir a alteração do regime de bens então regente da união estável (comunhão parcial), sem a observância do devido procedimento que regra a matéria.
Vale dizer, os efeitos da alteração de um regime de bens previsto em lei devem ser produzidos apenas para o futuro, de modo que, por analogia à regra do art. 1.639, § 1º, do Código Civil, é possível a definição/alteração do regime de bens em contrato de união estável mediante escritura pública, somente com efeitos ex nunc, preservando-se os interesses não apenas dos conviventes, mas também de terceiros, que, mantendo relações negociais com o companheiros, podem ser surpreendidos com uma súbita mudança no regime de bens da união estável.
A propósito do tema, cabe mencionar que a alteração do regime de bens em união estável está regulamentada no Provimento CNJ n. 141/2023, fixando expressamente os efeitos “ex nunc”, consoante artigo 9º-A, caput e § 4º (destaque nosso):
“Art. 9º-A. É admissível o processamento do requerimento de ambos os companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público.
(…)
§ 4º O novo regime de bens produzira ‘efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese, em virtude dessa alteração, observado que, se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros”.
Como se vê da normativa vigente, a alteração de regime de bens produzirá efeitos “ex nunc”, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese.
Os companheiros declararam conviver em união estável desde 1.998.
Portanto, não havendo notícia de contrato escrito, aplica-se o regime legal de bens previsto no artigo 1.725, do Código Civil, no período anterior à lavratura da escritura datada de 26 de junho de 2023.
Destarte, mostra-se correta a exigência formulada na nota de devolução do título.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 01 de julho de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJEN de 25.07.2025 – SP)