1ª VRP|SP: Dúvida registral – Compra e venda de imóvel por estrangeiros casados no exterior – Ausência de indicação do regime de bens na certidão de casamento celebrada na Coreia do Sul – Exigência de comprovação do regime de bens para fins de registro (item 61.4, Cap. XX, das NSCGJ) – Declaração do Consulado da Coreia informando que o regime de bens não consta da certidão e que sua definição ocorre apenas em casos de dissolução da união –  Impossibilidade de cumprimento da exigência por razão legal e cultural do país de origem –  Aplicação do art. 7º, §4º, da LINDB – Afastamento da exigência por inviabilidade objetiva e garantia da segurança jurídica – Precedente da 1ª VRP – Dúvida improcedente.

Sentença

Processo nº: 1082723-79.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Jong Guk Eom

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Jong Guk Eom, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de compra e venda lavrada pelo 2º Tabelião de Notas de São Paulo, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 141.289 daquela serventia.

O Oficial informa que o óbice decorre da ausência de comprovação do regime de bens adotado no casamento dos compradores (suscitado), conforme exigido pelo item 61.4, Cap. XX, das NSCGJ, e por precedentes desta 1ª Vara de Registros Públicos (processo n. 1125467-26.2024.8.26.0100); que consta da escritura púbica, notadamente da ata retificativa que o comprador Jong Guk Eom é casado com Keunhwa Park, conforme as leis vigentes na Coreia do Sul, nos termos da certidão de casamento expedida pelo Escritório do Notário Público Park Jong Soo, em Seul, traduzida por tradutor público e registrada sob n. 9.143.825, no livro B, do 3º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo, não havendo menção ao regime de bens do casamento contraído na Coreia do Sul; que nesse mesmo sentido consta da declaração, emitida nesta Capital em 23 de abril de 2023, pelo Consulado Geral da República da Coreia, não havendo menção ao regime legal de bens nos casamento da Coreia do Sul; que, embora conste dos documentos apresentados que “o regime de bens adotado é o estabelecido pela legislação legal e local, conforme o disposto no art. 7º, § 4º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942, nos termos do § 4º do art. 13 da Resolução CNJ nº 155/2012”, referida Resolução, em seu artigo 13, § 3º, oferece um leque de opções para aferir o regime de bens, o que propiciaria o cumprimento da exigência, para fins de segurança jurídica; que o item 61.4, Cap. XX, das NSCGJ é claro no sentido de que “o regime de bens deve ser desde logo comprovado para constar do registro”; que, por tais motivos, deve a exigência ser mantida (fls. 01/04).

Documentos vieram às fls. 05/61.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduziu que protocolou requerimento de registro da escritura pública de venda e compra do imóvel objeto da matrícula n. 141.289 do 1º RI, sob os protocolos ns. 468.035 (AC007053869) e 468.036 (AC007053940); que o Oficial Registrador, após qualificação, devolveu o título, com a exigência para que constasse na escritura pública o regime de bens do casal, bem como para que fosse regularizada a certidão de casamento (apostilada, traduzida e registrada), com declaração do consulado da Coreia do Sul informando se há ou não regime de bens; que não foi possível a regularização da certidão de casamento realizado na República da Coreia, pois, naquele ordenamento jurídico, o regime de bens é discutido em momento posterior, quando há separação, e não no ato de união; que obteve declaração junto ao Consulado Geral da República da Coreia, que afirma que não existe a informação sobre regime de bens na certidão de casamento sul- coreano; que a retificação da escritura pública junto ao Tabelião de Notas foi procedida por meio de ata retificativa para constar a declaração expedida pelo consulado de que “não há menção ao regime de bens no casamento da Coreia”; que, mesmo após a retificação da escritura pública, o Oficial manteve a exigência; e que, diante da impossibilidade de superação do óbice, registra seu inconformismo e requer seja determinado o registro do título, com o afastamento da exigência (fls. 06/08). Juntou documentos (fls. 09/10).

Apesar de regularmente intimada, a parte suscitada não apresentou impugnação nos autos (fls. 61).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela procedência da dúvida (fls. 67/69).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

Inicialmente, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Assim, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117, Cap. XX, das NSCGJ: “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, porém, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

O artigo 176, § 1º, III, item 2, alínea “a”, da LRP, exige a completa qualificação do adquirente no registro do imóvel, com indicação de seu estado civil:

“Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.

§ 1º. A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas:

(…)

III – são requisitos do registro no Livro nº 2:

(…)

2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação;”

Por sua vez, os itens 61 e 61.4, Cap. XX, das NSCGJ, estabelecem como requisito indispensável ao registro, no caso de pessoa casada, que se comprove o regime de bens adotado:

“61. A qualificação do proprietário, quando se tratar de pessoa física, referirá ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), número do Registro Geral (RG) de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento, bem como se este se realizou antes ou depois da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977.

(…)

61.4. Tratando-se de brasileiros ou de estrangeiros casados no exterior, para evitar dúvida acerca da real situação jurídica dominial do imóvel, o regime de bens deve ser desde logo comprovado para constar do registro”.

No caso concreto, constata-se que Jong Guk Eom e Keunhwa Park se casaram em 10 de março de 2025, em Gyeonggi-do, Suwon-si, Yeongtong-gu, Yeongtong-ro, Coreia do Sul (fls. 55/56).

Em 27/03/2025, adquiriram do proprietário tabular o imóvel objeto da matrícula n. 141.289 do 1º RI, mediante escritura pública de compra e venda lavrada perante o 2º Tabelião de Notas da Capital (fls. 12/17, 21/22).

Os compradores estão assim qualificados no título e respectiva ata retificativa (fls. 12/17, 21/22): “Jong Guk Eom, coreano, (…) portador da carteira de registro nacional migratório RNM nº G428580-7 CGPI/DIREX/DPF, e inscrito no CPF nº 706.511.202-09 (…), o qual declara sob responsabilidade civil e criminal ser casado em Seul, Coreia do Sul, conforme as leis vigentes daquele país, com Keunhwa Park, coreana, (…), inscrita no CPF nº 095.103.278-08 (…) nos termos da certidão de casamento expedida pelo Escritório do Notário Público Park Jong Soo, em Seul, traduzida por tradutor público (…) e registrada sob n. 9.143.825, no livro B, do 3º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo, e, declaração expedida pelo Consulado Geral da República da Coreia, onde informa que “não há regime de bens no casamento da Coreia”.”

Tratando-se de casamento contraído no exterior, deve ser observado o regime de bens vigente naquele país (domicílio dos nubentes), conforme prevê o artigo 7º, § 4º, do Decreto-Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro):

“Art. 7º. A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

(…)

§ 4º. O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal”.

Ademais, o próprio Consulado Geral da República da Coreia emitiu declaração, in verbis: “O Consulado Geral da República da Coreia declara, para os devidos fins, que não há menção ao regime de bens no casamento da Coreia. Por esse motivo, a informação não consta nas certidões emitidas por esta repartição consular.” (fls. 26).

Trata-se, portanto, de exigência de impossível cumprimento, em razão da legislação do país estrangeiro, o que representaria um entrave perpétuo ao registro, em prejuízo de direitos subjetivos.

Nessa linha, embora a certidão de casamento do casal de fato não especifique o regime de bens adotado nem mencione a existência de pacto antenupcial, o registro da escritura de compra e venda é possível.

Nesse sentido, este juízo já decidiu anteriormente em caso análogo, nos autos n. 1039283-04.2023.8.26.0100. Convém acrescentar que no referido processo julgado, o Consulado Geral da República da Coreia esclareceu que a indicação do regime de bens do casamento é impossível, pois tal informação só é disponibilizada pela justiça coreana nos processos de divórcio litigioso em que há discussão relativa à partilha de bens (cf. fl. 27, daqueles autos).

Outrossim, no que tange ao julgado nos autos do processo n. 1125467-26.2024.8.26.0100, cabe esclarecer que o caso envolvia hipótese de regime de bens de casamento celebrado no Japão, porém, não constava dos autos da ação de dúvida qualquer documento emitido pelo Consulado Geral do Japão esclarecendo sobre o regime de bens do casamento naquele país estrangeiro.

Destarte, o óbice pode ser afastado.

Isto posto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada, para afastar o óbice registrário e, consequentemente, determinar o registro do título.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 18 de julho de 2025.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 21.07.2025 – SP)