TJ|RS: Apelação cível – Sucessões – Direito sucessório do companheiro – Lei aplicável – O art. 1.787 do CCB, na esteira do que já preconizava do art. 1.577 do CCB/16, é expresso quanto à incidência da lei vigente ao tempo da abertura da sucessão – E a lei que temos, acerca da sucessão entre companheiros, é o art. 1.790 do CCB, dado que o óbito do autor da herança se deu quando já vigente a atual codificação – Assim, não há como reconhecer o direito sucessório da companheira, pois, ao que consta, não há bens adquiridos onerosamente no curso da união – Deram provimento – Por maioria, vencido o relator.

EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. SUCESSÕES. DIREITO SUCESSÓRIO DO COMPANHEIRO. LEI APLICÁVEL. O ART. 1.787 DO CCB, NA ESTEIRA DO QUE JÁ PRECONIZAVA DO ART. 1.577 DO CCB/16, É EXPRESSO QUANTO À INCIDÊNCIA DA LEI VIGENTE AO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO. E A LEI QUE TEMOS, ACERCA DA SUCESSÃO ENTRE COMPANHEIROS, É O ART. 1.790 DO CCB, DADO QUE O ÓBITO DO AUTOR DA HERANÇA SE DEU QUANDO JÁ VIGENTE A ATUAL CODIFICAÇÃO. ASSIM, NÃO HÁ COMO RECONHECER O DIREITO SUCESSÓRIO DA COMPANHEIRA, POIS, AO QUE CONSTA, NÃO HÁ BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NO CURSO DA UNIÃO. DERAM PROVIMENTO. POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR.(TJRS – Apelação Cível nº 70038403069 – Teutônia – 8ª Câmara Cível – Rel. Des. Rui Portanova – DJ 16.12.2010)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, vencido o Relator, em prover à apelação.
Custas na forma da lei.
Participou do julgamento, além dos signatários, o eminente Senhor DES. LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS (PRESIDENTE).
Porto Alegre, 09 de dezembro de 2010.
DES. RUI PORTANOVA – Relator.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Revisor e Redator.
RELATÓRIO
DES. RUI PORTANOVA (Relator):
Ação declaratória de união estável ajuizada pelo ESPÓLIO DE NORMA contra o ESPÓLIO DE ERICH.
Ao final, a demanda foi julgada procedente, para o fim de declarar a união, e reconhecer a autora NORMA como única herdeira de ERICH.
Apelou o ESPÓLIO DE ERICH, representado por seus parentes colaterais. Aduziu que a companheira sobrevivente não pode herdar a totalidade da herança. Pediu a reforma da sentença.
Vieram contrarrazões, com preliminar de deserção.
O Ministério Público deixou de ofertar parecer.
Registro que foi observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552, do Código de Processo Civil, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
DES. RUI PORTANOVA (Relator):
Preliminar.
A parte apelada suscitou preliminar de não-conhecimento, por deserção.
Mas sem razão.
Os recorrentes estão recorrendo, dentre outras coisas, contra a parte da sentença que os condenou ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios.
Assim, não precisavam efetuar o preparo do apelo, como uma condição de recebimento do recurso.
Até porque, quem recorre para não pagar custas, não pode ser compelido a pagar custas justamente para poder recorrer.
Caso fosse assim, haveria até preclusão lógica a impedir o conhecimento dessa parte do apelo – já que o ato de pagar custas é incompatível com o ato de recorrer contra decisão que manda pagá-las.
Por tudo isso, rejeito a preliminar, e passo a enfrentar o mérito do apelo.
União Estável e Direito de Herança.
Há por decidir, aqui, se a companheira sobrevivente herda a totalidade da herança (como a esposa sobrevivente), ou se herda na forma do que prevê o artigo 1.790 do CCB.
No caso, o companheiro falecido deixou parentes colaterais. Assim, pelo que prevê o artigo 1.790, III, do CCB, a companheira sobrevivente herdaria apenas um terço da herança.
A sentença concedeu à companheira sobrevivente o direito integral à herança, excluindo tal direito dos parentes colaterais.
O apelo é dos parentes colaterais.
Eles querem seja afastado o direito da companheira sobrevivente – primeiro, porque entendem que ela não deve herdar como herdaria a esposa; e segundo, porque entendem que o direito hereditário entre os companheiros se limitaria àquilo que foi onerosamente adquirido durante a união (e no caso, o “de cujus” nada teria adquirido durante a união).
Mas o apelo não merece provimento.
Antes de mais, convém fazer um esclarecimento acerca do recente julgamento de um Incidente de Inconstitucionalidade pelo Tribunal Pleno deste TJRS.
O Incidente de Inconstitucionalidade.
Recentemente, o Tribunal Pleno deste TJRS julgou incidente de inconstitucionalidade, no qual considerou constitucional a forma de sucessão da companheira, tal qual estipulada no artigo xx do CCB.
Na esteira daquela decisão, algumas decisões posteriores deste colegiado têm manifestado o entendimento de que desapareceu o espaço para o debate e para a interpretação, e que a questão estaria resolvida.
Mas não penso seja assim.
“Data venia”, não há como concordar com a orientação estampada em alguns votos desta Corte no sentido de que “a matéria agora não comporta mais debates de interpretação a respeito da aplicabilidade ou não do art. 1.790, III, do CC/02, em razão do julgamento no colendo Órgão Especial deste Tribunal, em sessão realizada em 09 de novembro de 2009, da Argüição de Inconstitucionalidade n.º 70029390374…”
Renovada vênia, o fato de a Corte Especial dizer que uma norma não é inconstitucional, não significa, por si só, que o juiz deva cessar sua tarefa mais essencial no que diz com a jurisdição, qual seja: a interpretação.
Com efeito, para além da discussão a respeito da constitucionalidade ou não de uma norma, ainda há muita muito espaço de interpretação para o julgador.
Aliás não foi outra a recomendação do acórdão vindo do Órgão Especial quando disse:
“Eventual antinomia com o art. 1725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável”.
Ou seja, não pode cessar a interpretação.
Cumpre ao juiz, depois de não declarada a inconstitucionalidade da lei, investigar e responder a perguntas a respeito de aplicação da norma ao caso.
Ou seja, para estar completo o ato jurisdicional, cumpre interpretar a norma não declarada inconstitucional.
Seja lícito, antes de proceder a interpretação de direito estrito, adentrar na investigação em face do fato de estarmos tratando de uma norma “injusta”.
Lei Injusta.
Vale a pena, de início, ter em conta que muitos dos julgadores que admitem a constitucionalidade do inciso III do artigo 1790 do Código Civil – mesmo eles – reconhecem a injustiça do dispositivo legal.
O exemplo mais claro disso pode ser retirado de um voto do eminente Desembargador Sérgio de Vasconcelos Chaves quando diz:
“Portanto, posso não concordar com as disposições que regem atualmente o Direito das Sucessões no que tange à capacidade sucessória na sucessão do cônjuge e do companheiro. E não concordo. Acho que houve um equívoco do legislador, trazendo disposições que são tecnicamente incorretas ou inadequadas e que podem conduzir até mesmo a situações aparentemente injustas. E isso tanto na sucessão do cônjuge como na do companheiro, podendo prejudicar, também, herdeiros necessários, dependendo do prisma sobre o qual se examine a questão. Mas a lei não viola qualquer dispositivo, princípio ou norma constitucional. Mesmo que entenda que a regulação legal não seja a melhor, não posso pretender a supremacia da minha convicção contra o texto expresso de lei, sem que, com isso, esteja arranhando o estado democrático de direito. Afinal, não sou legislador e não tenho competência legal para legislar, cumprindo-me aplicar a lei vigente, de forma justa. Portanto, não posso fugir aos termos do direito positivo, já que, pelo menos em tese, estamos inseridos num “Estado Democrático de Direito”. Temos uma lei de má qualidade, mas ela está em vigor e não é inconstitucional.” (Embargos Infringentes n.º 70027265545, grifei)
Seja lícito, por igual, trazer alguma doutrina que enfrenta – especificamente – o tema sob a ótica da justiça.
Com lucidez, Zeno Veloso mostra que:
“Na sociedade contemporânea, já estão muitos esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividades entre parentes colaterais de quarto grau (primos, tios-avos, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no terceiro milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o quarto grau do de cujus. Temos de convir. Isto é demais![…]”
No mesmo passo vem a indignação da jurista GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA (In Temas atuais de Direito e Processo de Família. Primeira Série. 2004. P. 516), a respeito da flagrante injustiça conferida aos companheiros no artigo 1790 do Código Civil de 2002:
“Por fim, andou ainda mal o legislador ao aprovar o dispositivo, da forma como está, por recriar o privilegio dos colaterais até o quarto grau, que passam a concorrer com o companheiro supérstite na terceira classe da ordem de vocação hereditária. Assim, morto alguém que viva em união estável, primeiros a herdar serão os descendentes em concorrência com o companheiro supérstite. Na falta de descentes, serão chamados os ascendentes em concorrência com o companheiro sobrevivo. Na falta também desses e inexistindo, como é obvio, cônjuge que amealhe todo o acervo, serão chamados os colaterais até o quarto grau ainda em concorrência com o companheiro, uma vez que, afinal, são também os colaterais parentes sucessíveis. E só na falta desses será chamado o companheiro remanescente para, ai sim, adquirir a totalidade do acervo. E flagrante a discrepância.

Haverá alguma pessoa, nesse país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a esses extremos vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?
Sem duvida, desse ponto o Código Civil não foi feliz. A lei não esta imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa que manteve a mais intima e completa relação com o falecido fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que não obedeceu às indicações da historia e da civilização…

Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência publica, continua e duradoura, entre homem e mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e aspirações sociais, fere e mal trata na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais.”
Por acréscimo, vou tentar me colocar no lugar do outro, e adentrar na vida dos casais em união estável, à vista da repentina mudança promovida pelo Código Civil, nesta matéria.
Vale a pena abrir novo tópico.
A Vida e a Lei Injusta.
Até entrar em vigor o Código Civil de 2002, vigia a Lei n.º 8.971/94, que regulava os direitos dos companheiros a alimentos e sucessões.
Aquela lei, em seu art. 2º, III, dizia que “na falta de ascendentes e descendentes o companheiro sobrevivente terá direito a totalidade da herança”, não concorrendo com outros parentes sucessíveis (colaterais).
Logo, a Lei n.º 8.971/94 alcançou ao companheiro sobrevivente ao mesmo status hereditário que o cônjuge supérstite.
Era a forma de atendimento do ditame constitucional para reconhecer a união estável como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo 226, § 3º.
Mas veio o novo Código Civil em 2002, e mudou a regra de sucessão na relação dos companheiros com os colaterais.
Neste exato momento, a vida das pessoas que desde antes do atual Código Civil de 2002 viviam e vivem – bem – uma união estável harmoniosa e tranquila, sofre de total insegurança.
Como efeito, até um dia antes da vigência do Código Civil de 2002 quem vivia em união estável, e tinha o dissabor de ter o falecimento de seu par da união estável, herdava como cônjuge.
Contudo, entra em vigor o novo Código Civil e tudo muda substancialmente.
Ou seja, até o dia 11/JANEIRO/2003 (01 dia antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002) se podia dizer alto e bom som: UNIÃO ESTÁVEL É IGUAL AO CASAMENTO ou CÔNJUGE IGUAL A COMPANHEIRO(a).
Agora é diferente: uma coisa é ser cônjuge em um casamento, outra coisa é ser par numa união estável.
Quem tinha uma união estável em perfeita harmonia e em andamento e que, até então, era igual ao casamento – com a entrada do novo Código Civil – perdeu direito.
A lei – como toda lei injusta – ficou cega a uma realidade em que vivem – e bem – milhões de brasileiros.
O que era igual ao casamento ficou diferente.
Ficou menor que o casamento.
Agora a união estável é uma relação de segunda classe.
Hoje os que desde antes do Código Civil de 2002 viviam e vivem em união estável ficaram sem o direito – que tinham até então de herdar como herdam os que são “legalmente” casados “no papel”.
Hoje o par de uma união estável – por mais longa e harmoniosa que seja a união – ainda que tenha direito de meação, perdeu direito de herança em favor de colaterais, mesmo que distantes.
Não parece que aqui, é bom momento para buscar doutrina e jurisprudência que autorize o juiz a não aplicar a lei injusta.
O momento é de persistir no argumento puramente jurídico de natureza infra-constitucional.
É o que se fará a seguir.
Vamos abordar a questão da aplicação da lei no tempo.
Aplicação da Lei. O Tempo e a União Estável.
Quando o juiz se vê diante de uma lei nova e injusta, ele não deve se render – como escravo – aos ditames legais.
Quando o juiz se vê diante de uma lei nova e injusta, antes de se revoltar contra ela deve agir juridicamente.
Agindo juridicamente, quando o juiz se vê diante de uma lei nova e injusta, deve cotejá-la.
Primeiro, o juiz deve cotejar a lei com a Constituição.
Depois perquirir de sua aplicação no tempo e no espaço.
O inciso III do artigo 1.790 do Código Civil, já foi cotejado com a Constituição Federal no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
E a lei não foi declarada inconstitucional.
Cumpre, então, ir em frente.
Vamos cotejar o inciso III do artigo 1.790 do Código Civil com sua aplicabilidade no tempo e no espaço.
Vamos passo a passo.
Quando o juiz se depara com uma lei nova e injusta, mas que não é inconstitucional deve cotejá-la com o direito intertemporal.
Ou seja, cabe a pergunta: aplica-se, desde logo, o inciso III do artigo 1.790 às uniões estáveis perfeitamente constituídas desde de antes da vigência do atual Código Civil?
O primeiro passo para desvendar a questão é saber qual o regime legal vigente antes de 2002.
Como se viu, antes de novidade vinda com a norma aqui em debate era lícito dizer: do ponto-de-vista da ordem de vocação hereditária, união estável era igual ao casamento.
Quem aplica de imediato a nova lei, leva em conta tão somente a data da morte do par.
Ou seja, faz uma aplicação imediata da norma, na suposição de que se aplicaria o princípio de que é a norma vigente e existente ao tempo da morte que rege a ordem de vocação hereditária.
Contudo, não precisa ser sempre assim.
No tocante ao reconhecimento do direito intertemporal no direito sucessório, cabe citar o entendimento de GUSTAVO FERRAZ DE CAMPOS MÔNACO (In Direito das Sucessões. 2007. p. 453):
“Com efeito, a consideração do droit de saisine implica o reconhecimento de que a sucessão regula-se pela lei vigente no instante na morte do titular de certas relações jurídicas (normalmente de cunho patrimonial, mas não necessariamente, pois a lei reconhece, em algumas raras oportunidades, a possibilidade de sucessão de relações jurídicas não patrimoniais) que são transmitidas aos sucessores do falecido desde logo. Também a condição de sucessor por meio de legitimação para suceder, é atribuída segundo a lei que vigia no instante exato da morte do de cujus.
Todavia, alguns atos, fatos ou negócio jurídicos, relacionados ao direito sucessório, porque antecedentes ou conseqüentes à abertura da sucessão, podem ganhar certa autonomia de regência, quando se poderá se reconhecer a eles a aplicação de uma outra lei, que vigorava ou vigorará em outro momento.” (negritei)
(…)
Para que uma lei possa revogar outra, faz-se mister que a lei nova contenha em seu corpo menção expressa ao fato da revogação da lei anterior ou que trate de forma diversa toda a matéria contida na lei velha, ainda que sem revogá-la expressamente.
Essa modificação, no entanto, afetará uma série de relações jurídicas as mais diversas, relações que nasceram sob a vigência da lei antiga e que terão o se ocaso verificado quando já vigorar a lei posterior. Nessa ordem de valores, então, pode-se dar as mais diversas situações fáticas, desde aquelas relações que, nascidas e vividas à luz da legislação anterior, venham a assistir unicamente o seu fim sob o império da lei mais recente, muito embora possam continuar regidas pela lei antiga, que, neste caso, adquire ultratividade, como aquelas outras relações que apenas nascerão sob a vigência da lei antiga e que foram desenvolvidas totalmente sob a vigência da nova lei, que assistirá a seu termo final, muito embora possa não ser a lei aplicável ao seu caso.
Em qualquer desses casos, a lei antiga perde a sua validade sem que isso implique a perda de sua eficácia ou de seu vigor. Isso quer significar que a lei antiga não terá mais o condão de presidir o nascimento de novas relações jurídicas, mas manterá, de sua sorte, a capacidade para continuar regulamentando aquelas relações nascidas sob o seu império, além de proteger a manutenção dos efeitos que tiverem sido produzidos relativamente às relações que tiveram o seu ocaso verificado durante a sua vigência.”
O texto doutrinário cabe, mão na luva, a casos como o presente.
Ao primeiro, mostra a abalizada doutrina não ser totalmente correto, do ponto-de-vista da interpretação da lei no tempo, fazer uma aplicação, nua e crua, da lei nova a respeito da vocação hereditária, tendo em conta tão somente a data da morte do “de cujus”.
É claro que, exceto outras interpretações, para uniões estáveis nascidas após a vigência do Código Civil de 2002, a incidência do inciso III do artigo 1.790 será a norma que regerá a vocação hereditária dos companheiros de união estável.
Contudo, quando se trata de uniões estáveis nascidas antes do Código Civil de 2002 é plenamente possível, lógico e jurídico dizer que a lei antiga perdeu sua validade mas “sem que isso implique a perda de sua eficácia ou de seu vigor”.
No mesmo passo, talvez se possa dizer que as uniões estáveis depois do Código Civil de 2002 não terão mais o condão de serem regidas pela lei antiga. Mas a lei antiga manterá, de sua sorte, a capacidade para continuar regulamentando aquelas relações nascidas sob o seu império, além de proteger a manutenção dos efeitos que tiverem sido produzidos relativamente às relações que tiveram o seu ocaso verificado durante a sua vigência.”
Diante da idéia de eficácia dos atos nascidos ao tempo da “lei antiga” seja lícito dizer que as “uniões estáveis antigas” são regidas pela “lei antiga”.
Como se verá, no caso concreto, a união estável do par aqui em debate nasceu antes do Código Civil de 2002.
Mas antes de tal demonstração, vale a pena trazer ao debate, ainda um outro argumento de ordem estritamente jurídica para justificar a não incidência do inciso III do artigo 1790 do Código Civil de 2002 no caso concreto.
Vou falar de mais um instituto que trata de aplicação da lei no tempo, só que por outro prisma.
Princípio do Não-retrocesso.
Quero trazer ao debate o pensamento do jurista Erik Jayme a respeito do tema. O mestre de Heidelberg, ao lado dos critériostradicionais de se enfrentar e resolver o problema traz à baila um critério, que pode ser chamado de sistemático.
Não tem mais cabida uma visão tradicional, rígida que busca critérios nos conceitos estreitos como anterioridade, especialidade e hierarquia.
A doutrina atualizada, porém, está à procura hoje mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento (concebido como sistema) do que da exclusão. É a denominada “coerência derivada ou restaurada” , na tradução de Claudia Lima Marques, “que em um momento posterior à decodificação, à tópica e à micro-recodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complementar de nosso direito contemporâneo, a evitar a ´antinomia´, a ´incompatibilidade´ ou a ´não coerência´ (Diálogo Entre Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil: do “diálogo das Fontes “ no Combate às Clausulas Abusivas. “in” Revista de Direito do Consumidor – 45 p. 73).
Seguindo no rumo de Erik Jayme, a professora gaúcha refere orientação que vai além dos “conflitos de princípios”, “conflito de normas”, “conflitos reais ou aparente” e “antinomias”.
Com efeito, diz, “Erik Jayme alerta-nos que os tempos pós-modernos, com a pluralidade, a complexidade, a distinção impositiva dos direito humanos e do droit à la diffreènce (direito a ser diferente e ser tratado diferentemente), não mais permitem esse tipo de clareza ou de mono-solução. A solução sistemática pós-moderna deve ser mais fluída, mais flexível a permitir maior mobilidade e fineza de distinções. Nestes tempos, a superação de paradigma é substituída pela convivência dos paradigmas, e a revogação expressa pela incerteza da revogação tácita indireta através da incorporação… há por fim a convivência de leis com campos de aplicação diferentes, campos por vezes convergentes e, em geral, diferentes, em um mesmo sistema jurídico, que parece ser agora um sistema (para sempre) plural, fluído, mutável e complexo. Ou como diz Antonio Junqueira Azevedo, ‘um sistema hiper-complexo’.” (O Consumidor e o novo Código Civil. In Diálogos & debates – março 2003).
Voltando-se ao caso concreto, penso que temos base doutrinária suficientemente respeitada e adequada para não sucumbirmos numa visão tão simplista quanto tradicional, a entender que o novo dispositivo do Código Civil se aplica a uniões estáveis nascidas antes do novo diploma legal.
Não pode haver dúvida, os efeitos sucessórios das uniões estáveis anteriores ao Código Civil de 2002 foram uma das maiores conquistas da recente civilização brasileira.
E não se tratou de algo imposto de cima para baixo. Pelo contrário.
O reconhecimento da absoluta igualdade dos companheiros e dos cônjuges nasceu no seio da sociedade brasileira, cresceu e se fortificou com a unanimidade jurisprudencial, até tornar-se lei que regeu, por muitos anos, a vida de milhões de casais que viviam legal e legitimamente como se casados fossem.
Vale a pena lembrar algumas decisões da época:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. A prova carreada bem demonstra a convivência more uxorio havida entre a apelada e o falecido que se iniciou em julho de 1995 até o passamento deste, não tendo perdurado mais no tempo dado ao infortúnio ocorrido. DIREITO SUCESSÓRIO. Não tendo deixado o falecido descendentes ou ascendentes, a companheira herda, conforme dispõe a Lei n.º 8.971/94 (art. 2.º, inciso III). DESPROVERAM O APELO. (Apelação Cível Nº 70001903293, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 21/03/2001)
SUCESSAO. HERANCA DISPUTADA ENTRE O COMPANHEIRO E OS COLATERAIS. APLICACAO DA LEI N. 8971/94. UNIAO ESTAVEL PROLONGADA, ADMITIDA PELAS PARTES, E QUE SE EXTINGUIU COM A MORTE DA COMPANHEIRA, NA VIGENCIA DA LEI N. 8071/94. APLICACAO DO ART. 1577 DO CODIGO CIVIL, ESTABELECENDO QUE A CAPACIDADE SUCESSORIA E REGIDA PELA LEI VEGIENTE AO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSAO. INCIDENCIA DA LEI N. 8971/94,QUE CONTEMPLA O COMPANHEIRO COMO GERDEIRO ANTE A AUSENCIA DE HERDEIROS NECESSARIOS. OBSERVANCIA DA ORDEM LEGAL DE PREFERENCIA. RECURSO DESPROVIDO. (7FLS) (Apelação Cível Nº 599192390, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 11/08/1999)
UNIAO ESTAVEL. DIREITO A HERANCA E MEACAO POR PARTE DA CONVIVENTE. NAO OBSTANTE TER FINDADO A UNIAO ESTAVEL (QUE PERDUROU AO LONGO DE MAIS DE VINTE E UM ANOS) ANTES DO INICIO DA VIGENCIA DA LEI 8971/94, A COMPANHEIRA DEVE SER RECONHECIDA, ALEM DO DIREITO A MEACAO, O DIREITO A TODA HERANCA DEIXADA POR SEU COMPANHEIRO (QUE NAO DEIXOU DESCENDENTES OU ASCENDENTES), EIS QUE AS LEIS POSTERIORES A CONSTITUICAO APENAS VIERAM REGULAMENTAR A NORMA CONSTITUCIONAL QUE DAVA NOVA FEICAO AO CONCUBINATO, EQUIPARANDO, DE CERTO MODO, A COMPANHEIRA A ESPOSA LEGALMENTE CASADA. DESPROVERAM O PRIMEIRO APELO, POR MAIORIA, VENCIDO O PRESIDENTE QUE PROVIA O RECURSO E, POR UNANIMIDADE, NAO CONHECERAM DO SEGUNDO, POR INTEMPESTIVO. (Apelação Cível Nº 596056267, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eliseu Gomes Torres, Julgado em 10/10/1996)
As bases culturais que fizeram projetar aquele reconhecimento estavam muito bem assentadas na Constituição Federal como um todo, nos Direito Fundamentais, muito particularmente, e nos princípios transcendentais como igualdade e dignidade da pessoa humana.
Se hoje temos uma lei injusta, o juiz pode – pelo menos isso – ressalvar aqueles bons direitos que foram consagrados de forma legítima durante tanto tempo.
Caso Concreto e Conclusão.
No caso em comento, a sentença reconheceu a existência de união estável entre os hoje já falecidos NORMA e ERICH, desde 1992 até junho de 2005, quando ERICH faleceu.
Sobre isso não há recurso.
Assim, a união estável aqui em debate foi constituída na vigência da lei antiga.
Logo, e com base nos argumentos supra, não incide, no caso concreto, as regras previstas nos artigos 1787 e 1790 do Novo Código Civil.
É que, por aplicação da doutrina de Gustavo Ferraz de Campos Mônaco, a lei antiga pode ter perdido a sua validade, mas não perdeu sua eficácia.
Ademais, a lei nova também não incide, porquanto sua aplicação no caso concreto (em que a união estável se formou antes do Código Civil de 2002 ) seria uma afronta ao princípio do não retrocesso, conforme doutrina de Erik Jayme.
Logo, no presente caso, aplica-se a norma do tempo da formação da união estável.
Qual seja, a Lei n.º 8.971/94, que regulava os direitos dos companheiros a alimentos e sucessões, tendo em seu art. 2º, III que “na falta de ascendentes e descendentes o companheiro sobrevivente terá direito a totalidade da herança”, não concorrendo com outros parentes sucessíveis (colaterais).
Por tudo isso, no caso, é adequada a sentença, no ponto em que concedeu à companheira sobrevivente o direito à totalidade da herança.
Gratuidade de Justiça.
Destaco, por fim, que a parte apelada disse em suas contrarrazões ser descabida a concessão da gratuidade de justiça aos apelantes.
Mas sem razão.
É correta a concessão da gratuidade de justiça aos apelantes – na medida em que acostaram declaração de pobreza, e também porque não veio nenhuma prova capaz de infirmar a presunção que emana de tal declaração.
ANTE O EXPOSTO, rejeito a preliminar e, no mérito, nego provimento ao apelo.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (Revisor e Redator):
Rogando vênia ao eminente relator – que, na infatigável busca da justiça, produziu erudita sustentação de sua tese – não estou convencido do acerto da solução proposta.
Com feito – certamente por minhas reconhecidas limitações – não consigo afastar a incidência do art. 1.787 do CCB, que, na esteira do que já preconizava do art. 1.577 do CCB/16, é expresso quanto à incidência da lei vigente ao tempo da abertura da sucessão. E a lei que temos, acerca da sucessão entre companheiros, é o art. 1.790 do CCB, dado que o óbito do autor da herança se deu quando já vigente a atual codificação.
Tem sido quase unanimemente reconhecido que esse dispositivo consagra uma injustiça em relação aos companheiros, por lhes conferir um tratamento diferenciado, discriminatório até (como já apontei em artigo sob o título A sucessão dos companheiros no novo código civil[1]), quando em confronto com o dispensado aos cônjuges, em idêntica situação.
No entanto, tal como o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, no trecho citado pelo em. relator, penso que a solução, no caso, não se pode dar via jurisprudencial, mas, sim, pelo trabalho legislativo. A criativa hermenêutica proposta pelo em. relator, embora tentadora, esbarra em texto expresso de lei (o já apontado art. 1.787, do CCB), que, a meu sentir não pode ser desconsiderado, ante a sistemática própria do direito sucessório, em especial o princípio da saisine.
Nesse contexto, tenho que, no caso, não há como reconhecer o direito sucessório da companheira, pois, ao que consta, não há bens adquiridos onerosamente no curso da união. Consola saber que a discussão aqui se trava entre sucessores de ambas as partes, o que afasta a possibilidade de deixar a companheira ao desamparo.
Isso posto, acompanhando o em. relator na rejeição da preliminar de não-conhecimento do recurso, DOU PROVIMENTO à apelação para afastar o direito sucessório da companheira.
Em decorrência, inverto os ônus sucumbenciais.
DES. LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS (Presidente):
Rogo vênia ao em. Relator, nada obstante o peso de sua argumentação, mas estou em acompanhar o em. Revisor.
Não há como fugir, por força do que dispõe o art. 1.787 do CC/02, de aplicar a lei vigente à época da abertura da sucessão.
Por isso, morto o autor da herança na vigência do atual Código, que não mais contempla o companheiro, à semelhança da legislação anterior, com a totalidade da herança, na ausência de descendentes ou ascendentes, não é possível a solução alvitrada.
De tal modo, concorrendo então o (a) companheiro (a), existindo descendentes ou outros parênteses sucessivos, na forma do art. 1790 do Código Civil, cuja constitucionalidade (inc. II e III) foi afirmada pelo Órgão Especial do Tribunal Pleno.
No caso, porém, deixando a convivente de concorrer à herança, como flagra o ilustrado Revisor, porque não demonstrada a existência de bens onerosamente adquiridos na vigência da união estável.
Dou provimento, portanto, ao apelo.
DES. LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS – Presidente – Apelação Cível nº 70038403069, Comarca de Teutônia: “DERAM PROVIMENTO. POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR.”


Notas:
[1] http://www.gontijo-familia.adv.br/2008/artigos_pdf/Luiz_Felipe_Brasi_%20Santos/sucessao.pdf, consulta em 01.12.2010, 10h51min.

 Fonte: Boletim INR nº 6072 – Grupo Serac – São Paulo, 09 de Outubro de 2013