STJ: Civil e processual civil – Recurso especial – Separação – Julgamento extra petita – Regime de bens – Efeitos sobre o patrimônio comum anterior ao casamento.

EMENTA

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SEPARAÇÃO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. REGIME DE BENS. EFEITOS SOBRE O PATRIMÔNIO COMUM ANTERIOR AO CASAMENTO. 1. Recurso especial em que se discute, além de possível julgamento extra petita, os efeitos decorrentes da opção por um determinado regime de bens, em relação ao patrimônio amealhado pelo casal, antes do casamento, mas quando conviviam sob a forma de sociedade de fato. 2. O pedido deve ser extraído da interpretação lógico–sistemática da petição inicial, a partir da análise de todo o seu conteúdo, em consideração ao pleito global formulado pela parte. 3. Deduzido pedido para a partilha de todo o patrimônio amealhado durante o casamento, engloba–se, por conclusão lógica, precedentes períodos ininterruptos de convívio sob a forma de união estável ou sociedade de fato, porque se constata a existência de linha única de evolução patrimonial do antigo casal, na qual os bens adquiridos na constância do casamento são fruto, em parcela maior ou menor, do período pré–casamento, quando já existia labor conjunto. 4. Convolada em casamento uma união estável ou sociedade de fato, optando o casal por um regime restritivo de compartilhamento do patrimônio individual, devem liquidar o patrimônio até então construído para, após sua partilha, estabelecer novas bases de compartilhamento patrimonial. 5. A não liquidação e partilha do patrimônio adquirido durante o convívio pré–nupcial, caracterizado como sociedade de fato ou união estável, importa na prorrogação da co–titularidade, antes existente, para dentro do casamento, sendo desinfluente, quanto a esse acervo, o regime de bens adotado para viger no casamento. 6. Recurso provido. (STJ – REsp nº 1.263.234 – TO – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 01.07.2013)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, após o indeferimento do pedido de retirada de pauta (Pet. n. 185396/2013), por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). JOÃO COSTA RIBEIRO FILHO, pela parte RECORRENTE: K T C DA R R.

Brasília (DF), 11 de junho de 2013 (data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI – Relatora

RELATÓRIO

Cuida–se de recurso especial interposto por K. T. C. DA R. R., fundamentado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ/TO.

Ação: de separação judicial, arrolamento e partilha de bens adquiridos na constância do relacionamento, ajuizada pela recorrente em face de R. C. R.

Sentença: julgou procedente o pedido, em julgado assim fundamentado:

Ante todo o exposto, tenho que a separação do casal se impõe e assim o faço, com fundamento no que dispõe o Art. 5º, § 1º da Lei do Divórcio, em vigor por ocasião da propositura desta ação, declarando cessados entre os cônjuges os deveres de coabitação, fidelidade recíproca e o regime matrimonial de bens, reconhecendo a existência entre eles, de um período anterior de convivência, em união estável, por dois anos, determinando, assim, seja a guarda da filha comum, visitas, alimentos, o nome da mulher e partilha dos bens dirimidos dentro dos parâmetros acima fixados. (sem grifos no original). (fls. 203, e–STJ).

Acórdão em apelação: por maioria, deu provimento à apelação interposta pelo recorrido, nos termos da seguinte ementa:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE SEPARAÇÃO LITIGIOSA – JULGAMENTO EXTRA PETITA – DISSOLUÇÃO DA SOCIEADE CONJUGAL ANTERIOR A VIGÊNCIA DAS LEIS 8971/94 E 9278/96 – CONSTRUÇÃO DA CASA EM TERRENO DO APELANTE – LOTE EM LITÍGIO INTEGRALIZADO NO CAPITAL SOCIAL DA SOCIEDADE – VENDA DE PARTE DAS COTAS SOCIAIS – 1) Mesmo sendo desejo da Apelada pedir o provimento jurisdicional referente a declaração da sociedade de fato em período anterior ao casamento, nessa parte não o pediu; logo o direito não lhe pode ser dado, pois a sentença deve ficar restrita aos limites da lide impostos nos pedidos. 2) Quando as leis 8971/94 e 9278/96 entraram em vigência, já não mais existia a provável situação de fato, pois as partes já se encontravam casadas sob a égide do regime jurídico do casamento realizado no ano de 1192, portanto impossível aplicação retroativa dessas leis aos presente caso. 3) Construção de casa em terreno de propriedade do Apelante. Falta de comprovação pela Apelada, da contribuição em dinheiro ou como seu trabalho, para a referida construção. 4) Do conjunto probatório aliada à robusta prova testemunhal e aos usos e costumes comerciais – tenho como suficientemente provada a alienação feita pelo Apelante de 50% (cinquenta por cento) das cotas sociais do Posto Tucunaré Ltda. Restando ao Apelante e Apelada 45% (quarenta e cinco por cento) das referidas cotas, sobre as quais a Apelada terá o direito a 22,5% (vinte e dois e meio por cento).

Acórdão em Embargos Infringentes: por força do provimento do REsp 1.095.840/TO, de minha relatoria, o Tribunal de origem procedeu a análise dos embargos infringentes, negando–lhe provimento, nos termos da seguinte ementa:

EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO DE SEPARAÇÃO. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ANTERIOR AO CASAMENTO. REGIME DE BENS. DESPROVIMENTO. Tendo as partes, ao se casarem, optado pelo regime de comunhão parcial, demonstram de forma cristalina a exclusão da comunhão dos bens anteriores à data do casamento, preservando o patrimônio individual de cada um. Inaplicabilidade, ainda que por analogia, das disposições prescritas na Lei n. 9.278/96. Incidência de normas legais e orientações jurisprudenciais que versam sobre concubinato, especialmente a Lei n.8.971/94 e a Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, delimitando que a atribuição à companheira ou ao companheiro de metade do patrimônio vincula–se diretamente ao esforço comum, consagrado na contribuição direta para o acréscimo ou a aquisição de bens mediante o aporte de recursos ou força de trabalho. Estando bem avaliada a questão posta em análise em consonância com as provas coligidas nos autos e com o entendimento jurisprudencial dominante, há que serem desprovidos os embargos infringentes e mantido o voto vencedor (fls. 293–305), o qual reformou a sentença monocrática. Embargos desprovidos. (fl. 757, e–STJ).

Acórdão em Embargos de Declaração: por unanimidade, rejeitaram os embargos de declaração interpostos pela recorrente.

Recurso especial: alega violação dos arts. 128, 293 e 471 do CPC, bem como divergência jurisprudencial. Sustenta que: i) a apelação interposta pelo recorrido deve ser considerada intempestiva, pois protocolizada após o prazo legal, que teria começado a fluir com a ciência inequívoca do teor da sentença, fato ocorrido antes da publicação do julgado; ii) a sentença não foi extra petita, pois solveu a questão que lhe foi trazida nos limites da inicial e iii) o Tribunal de origem divergiu do entendimento do STJ quanto aos efeitos da opção pelo regime de bens escolhido, sobre o patrimônio amealhado durante sociedade de fato.

Contrarrazões: Afirma incidir o óbice da Súmula 7/STJ, em relação à questão afeta à tempestividade da apelação e, quanto ao mérito, aduz que não houve pedido de reconhecimento de união estável precedente ao casamento e nem tampouco divisão patrimonial de bens possivelmente adquiridos neste período, razão pela qual o acórdão deve ser mantido.

Sustenta, ainda, em relação à necessidade de renúncia expressa para exclusão de bens do regime de comunhão parcial de bens, que a matéria somente foi abordada pela recorrente em embargos de declaração, não merecendo, assim, apreciação na estreita via do recurso especial.

Às fls. 1387/1393, Parecer do Ministério Público Federal, de lavra do Subprocurador–Geral da República Washington Bolívar Júnior, pelo não provimento do recurso especial.

Relatado o processo, decide–se.

VOTO

Cinge–se a controvérsia, além de dirimir questão relativa à tempestividade de recurso interposto na origem, em definir se houve julgamento extra petita e, na hipótese de afastamento desse empeço, analisar os efeitos decorrentes da opção por um determinado regime de bens em relação ao patrimônio amealhado pelo casal, antes do casamento, mas quando conviviam sob a forma de sociedade de fato.

I – Do prequestionamento

Constata–se a expressa manifestação do Tribunal de origem quanto à tempestividade da apelação, existência de julgamento extra petita e em relação às consequências patrimoniais da opção pelo regime da comunhão parcial de bens em relação à sociedade de fato, ocorrida antes do matrimônio.

Dessa forma, suprida a necessidade do prévio prequestionamento para a análise do recurso especial, passa–se ao exame da controvérsia.

II – Da tempestividade da apelação – violação do art. 471 do CPC e divergência jurisprudencial.

A insurgência recursal, no particular, não merece trânsito pois se constata que a matéria foi objeto de deliberação judicial em agravo de instrumento julgado na origem, que confirmou a tempestividade do recurso de apelação, sem que a recorrente refutasse oportunamente as conclusões do Tribunal de origem para o tema.

Assim, inviável se reavivar, na estreita via do recurso especial, esse debate.

III – Da extensão do pedido inicial e do julgamento extra petita – violação dos arts. 128 e 293 do CPC e divergência jurisprudencial

A primeira questão que exsurge como necessária à solução da controvérsia volta–se para a apreciação da extensão do pedido de separação judicial formulado pela recorrente, e se este abrange pleito relativo ao reconhecimento e dissolução da sociedade de fato que precede ao casamento, e suas consequências patrimoniais.

A única menção formulada pela recorrente quanto ao período anterior ao casamento que manteve com o recorrido, no qual conviviam sob a forma de sociedade de fato, encabeça a narrativa fática da inicial, nos seguintes termos:

Requerente e Requerido mantém relação marital desde outubro de 1989, encontrando–se casados oficialmente em regime de comunhão parcial de bens de 01 de abril de 1992, conforme cópia da certidão de casamento (Doc. 02).

Desta união o casal teve uma única filha, V. da R. R, nascida aqui em Palmas aos 05 dias de abril de 1996, hoje com 04 (quatro) anos (Doc. 03). (fl. 06, e–STJ).

Extrai–se do voto–vencedor do julgamento dos embargos infringentes, as conclusões do relator para acórdão, quanto ao tema:

Observo que o relacionamento entre as partes iniciou–se com convivência comum no ano de 1989, tendo sido convertida em casamento em 01.abr.1992, sendo que a petição inicial da ação de separação não requer declaração da sociedade de fato em período anterior ao casamento.

Assim, não posso concordar com entendimento de que o reconhecimento da união em período anterior ao casamento era necessária à prestação jurisdicional, já que o Poder Judiciário está limitado, no julgamento da lide, justamente pelos pedidos da parte, os quais devem ser interpretados restritivamente, nos termos do artigo 293 do Código de Processo Civil.

(omissis).

Além disso, é assente na jurisprudência que, em termos patrimoniais, o companheiro em sociedade de fato, anterior à vigência da Lei 9.278/96, deve comprovar que contribuiu efetivamente para a aquisição dos bens que alega comuns. (fls. 725/726, e–STJ).

De uma apreciação rigorosa da inicial, nota–se, conforme declinado pelo Relator para acórdão do julgamento dos embargos infringentes, a ausência de pedido formal de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato.

As consequências dessa ausência de pedido expresso, porém, devem ser interpretadas sob uma ótica mais moderna do Processo Civil, que se volta, com acerto, para uma efetiva prestação jurisdicional, para a justa composição da lide e para o resguardo da norma–princípio da boa–fé.

Dessa tróica, tem o STJ extraído, cada vez mais amiúde, as teses de que o pedido deve ser extraído da interpretação lógico–sistemática da petição inicial, a partir da análise de todo o seu conteúdo e, a decisão que considera, de forma ampla, o pedido formulado pelas partes, não viola os arts. 128 e 460 do CPC, pois o pedido deve ser lido como o que se pretende com a instauração da ação. (REsp 1162643/SC, de minha Relatoria, 3ª Turma, DJe 17/08/2012 e Resp 1084752SC, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio Noronha, DJe 24/06/2011), este último assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. SOCIEDADE DE FATO. INDENIZAÇÃO POR SERVIÇOS DOMÉSTICOS PRESTADOS. DECISÃO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Não ocorre julgamento extra petita se o Tribunal de origem decide questão que é reflexo do pedido formulado na inicial. 2. No caso, o acórdão recorrido limitou–se a solucionar a demanda conforme o direito que entendeu aplicável à espécie, não sem antes avaliar a consistência dos fatos que embasaram a causa de pedir da pretensão aduzida em juízo, a saber, a existência de sociedade de fato entre a autora e o de cujos. 3. Recurso especial desprovido.

Aplicando–se esses elementos para a compreensão sistemática da petição inicial, de se notar que a convivência more uxório,correspondente ao período pré–nupcial das partes, foi relatada como prelúdio indissociável do próprio casamento, tanto assim, que a partir de então, a recorrente passa a nominar a íntegra do período em que conviveram como “união” e, ainda mais, faz juntar, dentre os documentos comprobatórios dos fatos alegados, declarações de imposto de renda do recorrido, desde o ano de 1989, período em que conviviam sob a forma de sociedade de fato.

Nessa senda, há inconteste evidência de que o pedido central da recorrente, quando buscou a tutela estatal, era garantir a justa partilha de todo o patrimônio amealhado durante os anos de convívio que manteve com o recorrido, tanto no período pré–casamento – quando coabitavam em sociedade de fato – quanto durante a vigência do próprio casamento.

Aliás, matéria que por falta de impugnação não enseja prévia declaração de existência da sociedade de fato, sendo aplicáveis suas consequências.

E essa conclusão também é possível pela óbvia unidade narrativa que deu aos momentos, que apenas teoricamente são cindíveis – a sociedade de fato e o imediatamente posterior casamento com opção pelo regime de separação parcial de bens –, pois suas consequências práticas se confundem, inclusive a que versa sobre o patrimônio comum, formado durante o período de convivência do casal como sociedade de fato.

A ausência de interrupção entre o período em que teria havido a sociedade de fato e o posterior casamento que se lhe seguiu, sem interrupção, gera uma linha única de evolução patrimonial do antigo casal, na qual os bens adquiridos na constância do casamento, são fruto, em parcela maior ou menor, do período pré–casamento, quando já existia labor conjunto.

Latente, então, a notoriedade do objetivo perseguido pela recorrente que era, efetivamente, a divisão patrimonial do monte amealhado pelo casal, nos anos de vida comum, pleito que embora não tenho sido expresso de modo formal na petição inicial, é claramente subentendido do escopo primário perseguido, não havendo razoabilidade na suposição de que a autora buscaria a fração que entendia ser sua do patrimônio conseguido durante a vigência do casamento e abandonasse a parcela correspondente que incidiria sobre uma possível relação anterior ao matrimônio.

Assim, impõe–se o reconhecimento de que a sentença não extrapolou o pedido, visto de forma sistematizada.

IV – Das consequências patrimoniais da opção pelo regime de comunhão parcial de bens em relação ao patrimônio formado durante sociedade de fato.

Secundando a fundamentação primária do acórdão recorrido, o Tribunal de origem também tratou das consequências patrimoniais da opção pelo regime da comunhão parcial de bens, realizada quando da convolação da sociedade de fato em casamento.

Colhe–se do voto condutor do acórdão recorrido, para melhor compreensão, o excerto que abrange a controvérsia:

Com efeito, ainda que as partes tenham tido relacionamento estável antes do casamento, ao adotarem o regime de comunhão parcial de bens, resolveram e afirmaram que pretendiam partilhar tão somente os bens adquiridos durante o casamento, resguardando a cada um, individualmente, os bens adquiridos até a data do enlace matrimonial. Se fosse diferente, teriam optado pela comunhão universal de bens.

Laborou em equívoco, portanto, a MM. Juíza da primeira instância, ao afirmar que as partes não se preocuparam em resolver as questões concernentes aos bens adquiridos antes do casamento. O regime de comunhão parcial adotado, mostra de forma cristalina que excluíram da comunhão tais bens, preservando o patrimônio individual de cada um. (fl. 725, e–STJ).

De voto proferido por outro integrante do colegiado, em idêntico sentido ao do relator para acórdão, transcreve–se, igualmente, a fundamentação quanto ao ponto:

Desta forma, ainda que houvesse a embargante contribuído para a formação do patrimônio sob litígio, ao firmar a cláusula que reflete separação de bens anteriores ao matrimônio, acabou por renunciar ao seu direito em relação à meação sobre os bens até então adquiridos por mútuo esforço.

Inadmissível, ao meu sentir, que venha buscar na presente demanda aquilo que abriu mão por ato próprio. Diante desta renúncia, recíproca diga–se, entendo que a comunicabilidade defendida pela embargante somente poderia se evidenciar, presentes os requisitos legais, se alegado e comprovado, na via processual própria, vício de consentimento pela autora, ou seja, que por erro, dolo ou coação de que tenha sido vitimada, ocorreu a opção pelo regime da comunhão parcial pelo casal. Contudo, nem mesmo na via inadequada há noticias nesse sentido, tendo a demandante, ao que se nota, praticado o ato de sua livre espontânea vontade. (fl. 737, e–STJ).

É fato inconteste nestes autos que houve um relacionamento entre os recorrentes, que precedeu ao casamento. Releva também salientar, que as disposições antenupciais formuladas com a adoção do regime de bens para o casamento, foram feitas de maneira incidental ao já ostensivo relacionamento familiar vivido pelas partes, fatos também consolidados na origem.

À luz dessa moldura fática, a opção pelo regime de bens no casamento, que de regra tem efeitos prospectivos, deve ser contrapesado em seus efeitos, pois se vê que o regime de comunhão parcial de bens é calcado no compartilhamento dos esforços do casal e na construção do patrimônio comum, mesmo quando a aquisição do patrimônio decorre diretamente de labor de apenas um dos consortes.

Impera aqui, a presunção de que mesmo na ausência de contribuição pecuniária direta de um dos componentes do casal, houve, de forma consensual, atuação deste cônjuge em outras atividades, que geram, de forma indireta, rendimentos para a família, como ocorre nas atividades domésticas.

Vem daí, contrario sensu, a exclusão do patrimônio individual adquirido antes do casamento, pois não se vislumbra, em relação a esse, a premissa básica de esforços conjugados no crescimento patrimonial.

No entanto, a aplicação da fórmula, quando existente prévio convívio more uxorio – em sociedade de fato ou união estável – deve ter cuidadoso emprego para permitir que as declarações de vontade sejam genuinamente consideradas e não se beneficie, indevidamente, uma determinada parte em detrimento da outra.

Partindo–se do entendimento – aplicável à espécie – que os nubentes, durante o período de sociedade de fato que precedeu ao casamento, abstiveram–se de fixar normas específicas quanto à titularidade do patrimônio então formado, presume–se a comunicação do patrimônio.

Convolada essa sociedade de fato em casamento, optando o casal por um regime restritivo de compartilhamento do patrimônio individual, devem, em exercício de abstração técnica, liquidar o patrimônio até então construído para, após sua partilha, estabelecer novas bases de compartilhamento patrimonial.

Esse dever ser, no entanto, queda frente à realidade, na qual nem os atores principais, nem aqueles que os cercam, conseguem distinguir as situações fático–jurídicas sucessivas, nem tampouco seus consectários legais, não antevendo, então, a necessidade de se fixar esse marco patrimonial.

Agrega–se, ainda, como elemento impedidor desse “dever ser”, as relações de confiança que usualmente existem entre um o casal e que, de regra, inibem quaisquer manifestações que possam defletir a imagem de honradez e confiabilidade do consorte, mesmo quando há suficiente conscientização dos nubentes quanto à necessidade de se liquidar o patrimônio comum daquele relacionamento pré–casamento.

Rolf Madaleno, discutindo a questão, traz elucidado posicionamento sobre o tema:

Se um homem e uma mulher, vivendo em união estável, resolvem celebrar m contrato de separação de bens, esta avença não pode incidir sobre os bens já considerados comuns em razão do relacionamento passado, só podendo refletir sobre o patrimônio futuro, mas nunca atingindo o acervo preexistente , fruto do esforço comum já despendido, especialmente quando segue hígida a mesma união, pouco importando sigam vivendo como conviventes, ou tenham optado por converter sua união estável em casamento, nos termos do art. 1.726 do Código Civil.

A conclusão mais evidente desta injustiça é a própria continuação do relacionamento, só vindo a reforçar a noção de comunhão de bens e de interesses, tanto que continuam a levar juntos a vida.

Portanto, se a relação afetiva não sofreu qualquer solução de continuidade e seguem os conviventes inabaláveis em sua convivência, os direitos entre eles já adquiridos não podem ser modificados, devendo antes promoverem a liquidação do patrimônio comum pregresso, com a efetiva partilha dos bens amealhados durante o primeiro período da união, sob pena de restar escancarada a burla e com ela o enriquecimento indevido. (in: MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família, pag. 701).

A solução preconizada pelo autor, e já delineada anteriormente, não resolve, porém, o cotidiano que ignora a fórmula e as consequências jurídicas de sua não–adoção.

Nesse quadro, frise–se, que é corriqueiro, o julgador deve se socorrer de outros elementos, além da mambembe declaração de vontade, para determinar o justo, que não pode se curvar ao injusto, tecnicamente correto.

Assim merecem sopesamento diferenciado, na espécie, a boa–fé que deve reger as relações interpessoais em quaisquer níveis e circunstâncias, e a vedação de enriquecimento sem causa, parâmetros que aliados à constatação de verdadeira inércia relacional, mitigam, quanto a seus efeitos, a declaração produzida quando da adoção do regime de bens para o casamento.

A notória confusão patrimonial que decorre da não liquidação e partilha do patrimônio adquirido durante o convívio pré–nupcial, na condição de companheiros, importa na prorrogação da co–titularidade antes existente para dentro do casamento.

Sob essa ótica, dizer que houve tácita renúncia ao possível patrimônio adquirido pelo esforço comum, durante a sociedade de fato que precedeu o casamento, apenas porque as partes não afirmaram, expressamente, o desejo de transportarem esse cabedal para dentro do período conjugal, seria descurar da realidade presente em relacionamentos díspares, que são posteriormente convolados em casamento.

Assim, fenece também esta tese, albergada pelo Tribunal de origem, de onde se impõe a reforma do acórdão recorrido.

Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para restabelecer a sentença que determinou a apuração e partilha do patrimônio amealhado no período anterior ao casamento, que foi reconhecido como de sociedade de fato.

Fonte: Boletim INR nº 5921 – Grupo Serac – São Paulo, 05 de Julho de 2013