STJ: Doação entre cônjuges. Varão sexagenário. Regime da separação legal de bens. Validade.

Processual civil – Recurso especial – Ação de conhecimento sob o rito ordinário – Casamento – Regime da separação legal de bens – Cônjuge com idade superior a sessenta anos – Doações realizadas por ele ao outro cônjuge na constância do matrimônio – Validade – São válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens, por três motivos: (i) o CC/16 não as veda, fazendo-no apenas com relação às doações antenupciais; (ii) o fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de sessenta anos ou mulheres maiores que cinqüenta, presente à época em que promulgado o CC/16, não mais se justificam nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representam ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; (iii) nenhuma restrição seria imposta pela lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o Código Civil, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a união estável em detrimento do casamento, em ofensa ao art. 226, §3º, da Constituição Federal – Recurso especial não conhecido.

EMENTA

Processual civil. Recurso especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Casamento. Regime da separação legal de bens. Cônjuge com idade superior a sessenta anos. Doações realizadas por ele ao outro cônjuge na constância do matrimônio. Validade. – São válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens, por três motivos: (i) o CC/16 não as veda, fazendo-no apenas com relação às doações antenupciais; (ii) o fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de sessenta anos ou mulheres maiores que cinqüenta, presente à época em que promulgado o CC/16, não mais se justificam nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representam ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; (iii) nenhuma restrição seria imposta pela lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o Código Civil, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a união estável em detrimento do casamento, em ofensa ao art. 226, §3º, da Constituição Federal. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp nº 471.958 – RS – 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ 18.02.2009)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Massami Uyeda, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.

Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 18 de dezembro de 2008 (data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI – Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se do recurso especial interposto por Tânia Maria Cauduro Farina e pelo Espólio de Horácio Miguel Cauduro contra acórdão exarado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

A primeira recorrente propôs ação de conhecimento sob o rito ordinário em face de Maria Bernadeti Sehnem, ora recorrida.

Sustentou que seu pai, Horácio Miguel Cauduro e a recorrida contraíram núpcias em 13.12.1991, ele com 71 anos de idade e ela com 33 anos, à época. Por força do disposto no art. 258, parágrafo único, inciso II, do CC16, casaram-se sob o regime da separação legal de bens.

Horácio Miguel Cauduro faleceu em 12.6.1994, deixando como única herdeira a sua filha Tânia, então recorrente. Na posição de inventariante dos bens deixados por ele, iniciou ela o processo de inventário, que tramitou perante a 2.ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre.

Alegou a recorrente que, na constância do casamento, seu falecido pai procedeu à doação, à recorrida, de imóvel de propriedade dele, localizado em Gramado-RS.

Ademais, aduziu que outros bens também foram adquiridos pelo falecido para a recorrida, embora formalmente as aquisições tivessem ocorrido em nome dela, sem ter ela contribuído de qualquer forma para tanto. Acusou terem sido, tais negócios jurídicos, objeto de simulação para forjar verdadeira doação de bens.

Assim sendo, sob a alegação de que os arts. 258 e 312 do CC16 e a jurisprudência vedam a doação de um cônjuge ao outro quando o regime de bens adotado é o da separação legal, pugnou a recorrente pela declaração de nulidade das doações efetivadas, assim como pela declaração de ser ela a proprietária dos bens doados, já que é a única herdeira do falecido.

Sob a forma de pedido sucessivo, requereu que, com lastro na jurisprudência e na Súmula 377⁄STF, tivesse direito à partilha dos bens deixados pelo falecido em razão do reconhecimento da comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do matrimônio.

Por sua vez, a recorrida propôs ação de conhecimento sob o rito ordinário em face da recorrente. Alegou ter direito ao usufruto de um quarto dos bens deixados pelo falecido enquanto durar a viuvez, em razão do regime de bens adotado.

Nesse particular, como não exerceu, desde o falecimento de seu marido, o direito que a lei lhe concede de perceber os frutos e se utilizar dos bens objeto do usufruto, sobretudo os imóveis deixados por ele, requereu a condenação da recorrente ao pagamento de indenização no valor correspondente à quarta parte dos alugueres dos imóveis, desde a data da citação até o dia em que se investir na posse deles como usufrutuária.

Sentença: Em apreciação conjunta das ações, o Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido formulado pela filha do de cujos, de anulação das doações reputadas irregulares. Julgou, ainda, procedente o pedido formulado pela recorrida para condenar a recorrente ao pagamento de indenização no valor de um quarto dos aluguéis relativos aos bens dos quais é usufrutuária, devendo os frutos e rendimentos desses bens serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, devidos a contar da citação até o momento em que a recorrida for imitida na posse deles.

Inconformados, os recorrentes apelaram ao TJRS.

Acórdão: negou provimento ao recurso de apelação interposto pela filha do de cujus. Eis a ementa:

“Apelação cível. Ação ordinária de revogação de doação. Liberalidade entre cônjuges casados com separação legal de bens. Doações formais. Doações informais. Comunicabilidade dos aqüestos. Usufruto vidual. Indenização. Embora a determinação legal no sentido de dever o casamento em que o nubente já completou sessenta anos (60) e a nubente cinqüenta (50) ser realizado sob o regime da separação total de bens, dali não decorre a impossibilidade de efetuarem os cônjuges doações, favorecendo-se reciprocamente, pois o artigo 312 do Código Civil estabelece vedação apenas para a doação através de pacto antenupcial. A realidade social e as mudanças significativas em matéria de direito de família impuseram profundas modificações, algumas convertidas em lei,outras reconhecidas pela doutrina e jurisprudência, revogaram grande parte dos dispositivos que disciplinam o regime de bens do casamento, quando não revogados tacitamente, pois admitidas as doações informais. Reconhecida a validade das doações feitas entre cônjuges casados sob o regime da separação legal de bens, não é aplicável a Súmula 377 do STF, que determina haver comunicabilidade dos aqüestos. O usufruto vidual em favor do cônjuge sobrevivente incide sobre a quarta parte dos bens do cônjuge falecido, sendo cabível buscar o usufrutuário a indenização pelo período em que foi obstaculizado de exercer o referido direito. Apelo não-provido. Voto vencido.”

Referido acórdão foi proferido por maioria. A divergência, porém, resumiu-se ao direito da viúva ao recebimento do usufruto vidual, que é objeto do Recurso Especial nº 601.001⁄RS. Para o Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, esse direito não assistiria à esposa porquanto ela já teria sido comtemplada com patrimônio suficiente à sua manutenção em decorrência das doações feitas pelo varão em vida.

1º Recurso Especial: Interposto por TÂNIA MARIA CAUDURO FARINA e pelo ESPÓLIO DE HORÁCIO MIGUEL CAUDURO, visando à impugnação da parcela unânime do julgado. O fundamento foi o de ofensa aos artigos 230, 258, parágrafo único, inc. II, e 312 do CC⁄16 e de dissídio jurisprudencial.

Em síntese, sustentam os recorrentes que as doações promovidas pelo falecido à recorrida são nulas porque realizadas na constância do regime legal da separação de bens. Dessa forma, admitir a validade das doações importa necessariamente modificar o regime de bens, o que a lei proíbe, conforme dispõe o art. 230 do CC⁄16.

Colacionam precedentes jurisprudenciais no sentido da tese explicitada.

Embargos infringentes: interpostos por TÂNIA MARIA CAUDURO e pelo ESPÓLIO, não foram providos pelo Tribunal. Eis a ementa do julgado:

“SUCESSÃO. USUFRUTO VIDUAL DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. A previsão legal do usufruto vidual é sem restrições, bastando estejam implementadas as condições estabelecidas no art. 1.611, §1º do Código Civil, constituindo direito sucessório quanto à sua fonte e usufruto quanto ao seu conteúdo. O exercício desse direito pela viúva, independe de ter recebido ou não doações, de perceber ou não pensão alimentícia ou, simplesmente, de não necessitar. A única restrição imposta pelo legislador é que o cônjuge supérstite fará jus a esse direito apenas enquanto perdurar o estado de viuvez. É regra elementar de hermenêutica que, se a lei não impõe quaisquer outras restrições, não é dado ao intérprete fazê-lo. Embargos desacolhidos.”

2º Recurso especial: interposto também por TÂNIA MARIA CAUDURO e pelo ESPÓLIO, visando a impugnar a parcela da controvérsia redecidida por ocasião do julgamento dos embargos infringentes. Alega violação ao art. 1.611 do CCB e divergência jurisprudencial.

Admissibilidade: Na origem o primeiro recurso especial interposto foi admitido. O segundo, contra a decisão dos embargos infringentes, não o foi. Isso motivou a interposição do agravo de instrumento nº 479.095⁄RS. Com lastro no art. 544, §3.º, do CPC, determinei a sua conversão em recurso especial (REsp 605.001).

Por petição datada de 26 de agosto de 2006, a recorrente informou que, em virtude de acordo realizado nos autos do processo de inventário do seu falecido pai, perdeu o objeto o Recurso Especial nº 605.001⁄RS, que discutia o direito ao recebimento de usufruto vidual. Permaneceu, todavia, o interesse no julgamento do Recurso Especial nº 471.958⁄RS.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

A questão posta a desate pelos recorrentes consiste em aferir, sob a regulação do CC⁄16, a validade de doação efetuada de um cônjuge ao outro, na constância do matrimônio, quando adotado, por força da lei, o regime da separação de bens.

I – Precedente de minha relatoria

Ao julgar o Recurso Especial 260.462, DJ de 11.06.2001, examinei questão semelhante à suscitada pelo recorrente. Nesse precedente, o ex-marido propôs ação de conhecimento sob o rito ordinário pugnando pela anulação de doação realizada à sua ex-mulher, sob o fundamento de que tal ato fora praticado em burla ao regime de bens adotado por eles, qual seja, o regime legal da separação de bens, porque, ao se casar, contava ele com mais de sessenta anos de idade.

Mantida a sentença de procedência do pedido por acórdão do Tribunal de origem, a ex-mulher interpôs recurso especial sob a alegação de ser válida a doação realizada, ao argumento de que não seria caso de aplicação do art. 312 do CC⁄16, porque a doação não ocorrera em pacto antenupcial, mas na constância do matrimônio.

O recurso especial não restou conhecido. Na ocasião, teci as seguintes considerações no voto que proferi:

“O que importa é que o negócio jurídico entabulado e registrado feriu os arts. 258, parágrafo único, II e art. 312, 1ª parte, ambos do CC, porque, independente de escritura pública de doação, o ato jurídico efetuado pelo Autor recorrido foi, materialmente, uma doação, pelo seu caráter de liberalidade, com violação do regime obrigatório de separação de bens, sendo o doador sexagenário, daí a possibilidade jurídica de declarar-lhe a nulidade, sem violação ao art. 295, CPC. E tanto é assim que o casamento foi celebrado, sob o regime de separação de bens, em 12-01-1995, quando o Recorrido, nascido em 04⁄09⁄1928, tinha 66 (sessenta e seis) anos, portanto, incidindo a norma protetiva do art. 258, parágrafo único, II do CC, porque é obrigatório o regime de separação de bens entre os cônjuges no casamento ‘do maior de sessenta e da maior de cinqüenta anos’. (…) A liberalidade da doação ofendeu o art. 312 do CC, e não o acórdão estadual, na medida em que, a doação entre cônjuges casados sob o regime de separação de bens, importaria em subversão de norma de ordem pública, contaminando a convenção entre particulares. (…) O ato que importou a transferência gratuita de metade do imóvel é nulo de pleno direito, porque do sexagenário, que contraiu núpcias, o art. 258, II, CC retira a capacidade ativa, em relação ao seu cônjuge, faltando um dos requisitos gerais para validade dos atos jurídicos.”

A hipótese dos autos é extremamente semelhante à que foi enfrentada por ocasião do julgamento supra transcrito. Todavia, refletindo melhor sobre a questão, devo enfrentá-la sob uma ótica diferente, inclusive com revisão de meu posicionamento anterior. É o que passo a fazer.

II – O fundamento da Lei

Ao comentarem o Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, que dispunha sobre a obrigatoriedade da adoção do regime dotal para a mulher que contraísse núpcias com mais de cinqüenta anos de idade, Afonso Fraga e José A. Prado Fraga ponderaram que o fundamento moral dessa proibição consistia em que “a mulher, de sua natureza frágil e suscetível de seduções, mais a elas está sujeita pelo avançamento da idade. Não será difícil sugestionar quem, já sendo naturalmente fraca em razão do sexo, o é ainda mais pela idade.” (“Casamento da qüinquagenária ao tempo do decreto . 181, de 24 de janeiro de 1890, apud Antônio Chaves, “Casamento das qüinquagenárias e dos sexagenários”, RT, Vol. 315, págs. 31 a 48, esp. pág. 33).

Essa observação, lida nos dias de hoje, não pode deixar de causar estranheza, expondo o anacronismo da idéia que estava na base da legislação. Conforme pondera Antônio Chaves (op. cit.), a imposição do regime da separação de bens aos sexagenários e às qüinquagenárias estabeleceu-se conjuntamente com outras disposições restritivas do Código Civil de 1916, notadamente a proibição do casamento entre viúvos e⁄ou viúvas com filhos menores, antes de se promover a partilha dos bens do cônjuge falecido. A idéia perseguida pelo legislador ao procurar restringir tal casamento, nas palavras desse ilustre jurista, seria a de: “a) evitar a ‘turbatio sanguinis’ (…); b) evitar a confusão de patrimônios, determinando análogo impedimento com relação ao viúvo ou à viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; c) evitar os conflitos relativos ao pátrio poder (…)”

A restrição quanto à liberdade de escolher o regime de bens nos casamentos envolvendo sexagenários ou qüinquagenárias veio na mesma esteira protetiva daquela disposição, mas sem que, em contrapartida, houvesse interesses do mesmo quilate a serem protegidos. A respeito do assunto, observa Antônio Chaves:

“Estabelecendo-se um confronto entre esta e a espécie anteriormente considerada, chega-se à conclusão de que a principal preocupação do legislador, naquela hipótese, deixa de existir na última, pelo menos na grande generaliade dos casos, cedendo passagem ao pensamento predominante de que tais conúbios, por perderem a finalidade da produção de descendência, sejam inspirados antes pela oportunidade que possam proporcionar a um dos cônjuges, de compartilhar, já no último quartel da existência, da fortuna do outro. Daí a pretender atalhar pela proibição pura e simples de qualquer comunicação de bens, mediante a imposição do regime da separação legal, que, todavia, pelo seu caráter absoluto, pode dar margem a graves inconvenientes e a flagrantes injustiças.”

A partir dessa observação, o citado jurista, em seu já antigo estudo doutrinário (datado de 1962) conclui, com apoio na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a atribuição da mesma conseqüência para hipóteses tão diferentes não apresenta qualquer contorno de razoabilidade:

“E o resultado desse encaixe, a martelo, de duas situações tão díspares num mesmo dispositivo, aí o temos na sujeição do casamento das pessoas daquela idade a regras de uma severidade que não encontra paralelo em outras legislações, em contraste com a brandura com que, pelo menos nos seus resultados práticos, são tratadas as pessoas que, intencionalmente ou não, manifestam rebeldia à norma expressa, acarretando diminuição do patrimônio dos filhos do primeiro leito. (…) Nem a conclusão diferente chega o Des. A. Ferreira Coelho (…). Depois de insistir também em que era muito mais justa a disposição da Ord. Do Liv. IV, tít. 105 (…) observa ser bem verdade que os sexagenários ou as qüinquagenárias podem ser explorados no afeto serôdio; mas, se estão no pleno uso de suas faculdades, não haveria razão para privá-los do direito de fazerem compartilhar dos bens materiais, que lhes pertencem, a pessoa que escolheram por companheira e que tem o estoicismo de assim viver conjuntamente.”

Trazendo essas observações para a análise do processo sub judice, importa verificar que há duas interpretações possíveis para a conjugação dos arts. 230, 258, parágrafo único, inc. II, e 312 do CC⁄16.

A primeira delas é a de que a proibição às doações antenupciais, cujo casamento deverá ser celebrado pela separação obrigatória de bens, vigora também durante o casamento. O fundamento para esta primeira interpretação seria o de que não haveria sentido em restringir as doações antes do matrimônio, se elas fossem permitidas após esse ato.

A segunda interpretação é a de que a proibição alcança tão somente as doações antenupciais. Tendo em vista que o art. 226 do CC⁄16 reputa nulas, na constância do casamento, apenas as doações promovidas com ofensa ao art. 183, incs. XI a XVI (que não é a hipótese dos autos), não se poderia estender tal proibição a uma situação não contemplada pelo legislador. As normas que limitam o exercício de direitos, por boa regra de hermenêutica, devem ser interpretadas restritivamente.

A maneira mais adequada de solucionar esse impasse é, naturalmente, adequando a interpretação da norma aos princípios que informam o ordenamento jurídico pátrio, notadamente de ordem constitucional.

Nesse sentido, é importante trazer à colação o julgamento da Apelação Cível n. 007.512-2⁄2-00, do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgada em 18 de agosto de 1998. Eis a respectiva ementa:

“CASAMENTO. Regime de bens. Separação legal obrigatória. Nubente sexagenário. Doação à consorte. Validez. Inaplicabilidade do art. 258, § único, II, do Código Civil, que não foi recepcionado pela ordem jurídica atual. Norma jurídica incompatível com os arts. 1º., III, e 5º., I, C e LIV, da Constituição Federal em vigor. Improcedência da ação anulatória. Improvimento aos recrsos. É válida toda doação feita ao outro pelo cônjuge que se casou sexagenário, porque, sendo incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como com a garantia do justo processo da lei, tomado na acepção substantiva (substantive due process of law), já não vige a restrição constante do art. 258, § único, II, do Código Civil.”

O relator desse recurso foi o des. César Peluso, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal. Enfrentando questão extremamente semelhante à sub judice, o i. Relator tece considerações que, por sua lucidez e relevância, merecem ser, em resumo, aqui transcritas:

“Tampouco são nulas as doações ulteriores ao matrimônio. E não o são, porque o disposto no art. 258, § único, II, do Código Civil, refletindo concepções apenas inteligíveis no quadro de referências sociais doutra época, não foi recepcionado, quando menos, pela atual Constituição da República e, portanto, já não vigendo, não incide nos fatos da causa. É que seu sentido emergente, o de que varão sexagenário e mulher qüinquagenária não têm liberdade jurídica para dispor acerca do patrimônio mediante escolha do regime matrimonial de bens, descansa num pressuposto extrajurídico óbvio, de todo em todo incompatível com as representações dominantes da pessoa humana e com as conseqüentes exigências éticas de respeito à sua dignidade, à medida que, por via de autêntica ficção jurídico-normativa, os reputa a ambos, homem e mulher, na situação típica de matrimônio, com base em critério arbitrário e indução falsa, absolutamente incapazes para definirem relações patrimoniais do seu estado de família. A ratio legis, que uníssonas lhe reconhecem a doutrina e a jurisprudência, vem do receio político, talvez compreensível nos curtos horizontes culturais da sociedade arcaica dos séculos anteriores, de que, pela força mecânica e necessária de certo número de anos, estipulado, sem nenhum suporte científico nem fundamentação empírica, de maneira diversa para cada sexo, já não estariam aptos para, nas relações amorosas, discernir seus interesses materiais e resistir à cupidez inevitável do consorte.(…) Noutras palavras, decretou-se, com vocação de verdade legal perene, embora em assunto restrito, mas não menos importante ao destino responsável das ações humanas, a incapacidade absoluta de quem se achasse, em certa idade, na situação de cônjuge, por deficiência mental presumida iuris et de iure contra a natureza dos fatos sociais e a inviolabilidade da pessoa. (…) Reduzir, com pretensão de valor irrefutável e aplicação geral, homens e mulheres, considerados no ápice do ciclo biológico e na plenitude das energias interiores, à condição de adolescentes desvairados, ou de neuróticos obsessivos, que não sabem guiar-se senão pelos critérios irracionais das emoções primárias, sem dúvida constitui juízo que afronta e amesquinha a realidade humana, sobretudo quando a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper, mas a atualizar as virtualidades da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico da noção de capacidade jurídica.(…) Não é tudo. A eficácia restritiva da norma estaria, ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual, retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República (art. 1, III, da Constituição Federal), não só porque a decepa e castra no seu núcleo constitutivo de razão e vontade, na sua capacidade de entender e querer, a qual, numa perspectiva transcendente, é vista como expressão substantiva do próprio Ser, como porque não disfarça, sob as vestes grosseiras do paternalismo insultuoso, todo o peso de uma intromissão estatal indevida em matéria que respeita, fundamentalmente, à consciência, intimidade e autonomia do cônjuge.”

Alinho-me integralmente a esse posicionamento e a ele acrescento, ainda, quatro reflexões.

A primeira é a de que, como bem observado nas manifestações da recorrida no processo, se ela e o de cujus não tivessem contraído matrimônio, nenhuma norma impediria as doações promovidas pelo varão. Ora, sendo expresso o princípio segundo o qual a Lei deverá reconhecer as uniões estáveis, porém fomentando sua conversão em casamento (art. 226, §3º, da CF), não há sentido em se admitir que o matrimônio do de cujus e da recorrida implique, para eles, restrição de direitos, em vez de ampliação de proteções.

A segunda observação é a de que nada impediria, na lei, que o varão tivesse disposto, por testamento, de todo seu patrimônio disponível, conferindo-o à recorrida. Ora, se sua capacidade mental é completa para esse ato de vontade, não há sentido em se interpretar o CC⁄16 (que, frise-se, não continha uma norma expressa regulando a questão) no sentido de que sua capacidade está limitada especificamente para doações em vida, na constância do casamento. Vale lembrar, neste passo, que as doações poderiam perfeitamente ser anuladas caso se comprovasse um vício do consentimento em sua realização. O que não se pode tolerar, porém, é a pretensa nulidade absoluta do ato.

Em terceiro lugar, é importante notar também que o argumento segundo o qual “não faria sentido proibir as doações antes do matrimônio, se elas fossem possíveis após esse ato” não é irrebatível. Era expresso o art. 1.173 do CC⁄16 ao dispor que as doações por pacto antenupcial são feitas sob a condição da realização do casamento. Vale dizer, a proibição de doações antenupciais para sexagenários ou qüinquagenárias pode perfeitamente ter como escopo apenas impedir que o cônjuge mais novo imponha, como condição para se casar, a transferência de patrimônio. A idéia, nesta linha de interpretação, seria a de que a manifestação de vontade, no momento do casamento, seja livre. Após esse ato, todavia, com a união consumada, os cônjuges estariam autorizados a praticar livremente atos de disposição, de acordo com seu prudente arbítrio. A lei não o veda, ao menos expressamente.

Por derradeiro, é de se ressaltar que, apesar de a obrigatoriedade de celebração do casamento entre sexagenários e⁄ou qüinquagenárias pelo regime da separação de bens ter sido mantida no CC⁄02, desapareceu do Código a proibição às doações antenupciais. Isso é uma indicação bastante clara de que está correta a interpretação ora adotada, segundo a qual referida restrição não foi recepcionada pela sociedade contemporânea.

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do presente recurso especial.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA:

Ao relatório da eminente Ministra-Relatora, elaborado com grande esmero, acrescenta-se que o feito foi levado a julgamento pela egrégia Terceira Turma, ocasião em que, após a prolação do voto da ilustre Ministra-Relatora não conhecendo do recurso especial, esta Relatoria pediu vista para melhor análise.

É o relatório.

Apreciando a controvérsia trazida a esta Corte, impõe-se acompanhar o entendimento da respeitável Relatora.

Com efeito.

Esclareça-se, inicialmente, que a celeuma instaurada no recurso especial centra-se em saber se, à luz do Código Civil de 1916, é ou não possível a existência de doação entre cônjuges casados sob o regime da separação obrigatória de bens em razão da senilidade de qualquer deles.

Sobre o tema, adere-se aos bem lançados fundamentos da eminente Relatora no sentido da possibilidade da celebração desse negócio gratuito entre os consortes nas condições acima, com os seguintes acréscimos.

É certo que o Código Civil de 1916, em momento algum, privou o cônjuge senil de brindar o outro consorte com doações de bens na constância do casamento submetido ao regime da separação obrigatória, salvo nas hipóteses de a separação obrigatória ter decorrido da infringência dos impedimentos matrimoniais indicados no artigo 226 do CC⁄1916 (situação diversa da presente).

Ademais, a censura à celebração de doações antenupciais entre os nubentes sujeitos ao regime da separação legal em razão da ancianidade não pode ser interpretada de forma extensiva, como, de resto, aconselham as regras de hermenêutica diante de normas restritivas de direito. Assim, o artigo 312 do Código Civil de 1916 se limita a proibir as doações pactuadas antes das núpcias. E nada mais.

Como se vê, por uma interpretação literal, a tese adotada no apelo nobre não merece prosperar.

Igualmente, melhor sorte não lhe socorre a interpretação sistemática e teleológica da legislação civil.

É que a permissão de doações entre os casados sob o regime da separação legal de bens por força da senilidade não deixou ao potencial desamparo o consorte encanecido nem os seus herdeiros necessários, dada a existência de várias mecanismos protetivos específicos no Código Civil de 1916.

De um lado, a garantia da sobrevivência do cônjuge doador foi assegurada pela previsão de nulidade da doação universal, assim entendida “a doação de todos os bens, sem reserva de parte ou renda suficiente para a sobrevivência do doador” (artigo 1.175 do CC⁄1916).

Por outro lado, os herdeiros necessários foram resguardados com a inviolabilidade da legítima por meio da nulidade da doação inoficiosa, definida como “a doação quanto à parte que exceder a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento” (artigo 1.176 do CC⁄1916). Não é demais recordar que a legítima corresponde à metade do patrimônio do doador ou do testador insuscetível de ser objeto de doação ou testamento, consoante artigo 1.721 do CC⁄1916.

Esses dois mecanismos do CC⁄1916, realmente, desempenham a função de obstruir atos de liberalidade que as pessoas capazes (como, de regra, são também os mais vetustos) poderiam praticar em prejuízo de sua própria subsistência ou de seus herdeiros necessários. Essa é a finalidade legal, a qual está sendo cabalmente cumprida com esses instrumentos.

Além desses mecanismos, outros existem no CC⁄1916 para proteger os incapazes e os que manifestaram a vontade ao impulso de algum vício de consentimento, do que faz prova o sistema de nulidades e anulabilidades dos negócios jurídicos.

Assim, seja sob uma interpretação literal, seja por uma interpretação sistemática ou teleológica, revela-se descabido criar uma restrição que a lei não previu: a doação entre cônjuges unidos sob o regime da separação obrigatória de bens em virtude da senilidade.

Acompanhando a eminente Ministra Relatora, não se conhece, pois, do recurso especial.

É o voto.

Fonte: Boletim INR n. 3698 – São Paulo, 20 de Janeiro de 2010.