1ª VRP|SP: Dúvida. Escritura Pública de Doação (dos pais à filha) com as cláusulas temporárias de inalienabilidade e impenhorabilidade, extensiva aos frutos e rendimentos. Falecimento do cônjuge-doador. Deseja a cônjuge sobrevivente (doadora) com a anuência da filha donatária outorgar escritura de cancelamento das cláusulas sobre a totalidade do gravame. Impossibilidade por vilipendiar vontade alheia válida e eficaz sobre a parte ideal dele, falecido. Contudo, possível o cancelamento do gravame sobre a parte ideal da cônjuge sobrevivente com a anuência da filha donatária. Dúvida prejudicada.
CP. 475
Pedido de Providências
Registro de Imóveis
VISTOS.
Cuida-se de procedimento intitulado “consulta de registro” pelo qual as interessadas Bety Litvak Gassul e Cecília Litvak buscam manifestação positiva deste Juízo Corregedor Permanente para que o Oficial do 1º Registro de Imóveis registre futura escritura pública de cancelamento de gravame que recai sobre o imóvel matriculado sob o nº 53.393, daquela Serventia de Imóveis.
Alegam que, em consulta informal, o 1º Oficial de Registro de Imóveis, apoiado no precedente nº 583.00.2009.138473-1, deste Juízo, afirmara que referido cancelamento só seria possível por meio da via judicial.
O Oficial do 1º Registro de Imóveis prestou informações às fls. 34.
O Ministério Público manifestou-se favoravelmente ao cancelamento dos gravames que recaem sobre o imóvel (fls. 46/47).
É O RELATÓRIO. FUNDAMENTO E DECIDO.
Observe-se, de início, que a alegação das interessadas de que os Tabeliães de Notas desta Capital têm se recusado a lavrar escritura de cancelamento dos gravames não encontra qualquer comprovação nos autos.
E, sendo esta Corregedoria Permanente competente para examinar apenas as exigências oriundas das notas devolutivas decorrentes das qualificações negativas dos Oficiais de Imóveis, o presente expediente deve ser julgado prejudicado, porque título algum há a ser examinado e qualificado nestes autos.
De qualquer modo, é possível, desde logo, tecer ponderações acerca da questão jurídica posta, em virtude da peculiaridade do caso. Em primeiro lugar, saliente-se que o caso em foco é diverso do precedente nº 583.00.2009.138473-1, deste Juízo, em que se discutiu se a morte do doador era ou não causa automática de extinção das cláusulas restritivas, e se a via judicial seria ou não necessária para determinar o cancelamento.
Aqui, examina-se se a cônjuge supérstite pode lavrar escritura de cancelamento, na totalidade, das cláusulas impostas por ambos os doadores. Colhe-se da inicial que Benjamin Litvak e Cecília, pela escritura de doação de fls. 18/22, doaram a Bety Litvak Gassul, com reserva do usufruto vitalício para eles, o imóvel objeto da matrícula nº 53.393, do 1º Registro de Imóveis, gravando-o com “as cláusulas temporárias de inalienabilidade e impenhorabilidade, extensiva aos frutos e rendimentos, que perdurarão por 36 (trinta e seis) meses contados a partir do falecimento deles Doadores, terminados os quais passarão a estarem livres e desembaraçados dos dois vínculos aludidos”.
De acordo com referida cláusula, o imóvel só ficará livre dos gravames 36 meses após o falecimento do último dos doadores, o que ainda não ocorreu. Portanto, verifica-se que a cláusula temporária imposta por ambos os doadores encontra-se em pleno vigor, de modo que não pode a cônjuge supérstite, sozinha, ainda que com a anuência da donatária, lavrar escritura de cancelamento, na totalidade, dos gravames que recaem sobre o imóvel, pena de se admitir que altere a manifestação de vontade legalmente expressa pelo falecido doador, atingindo o ato jurídico perfeito.
De outro lado, sendo a doação um negócio jurídico como qualquer outro, é possível à cônjuge supérstite deliberar sobre eventual distrato no que diz respeito à sua parte ideal, isto é, cancelando as cláusulas restritivas que recaem sobre a metade ideal que doou à filha.
É nesse sentido o lapidar parecer do então MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça Francisco Eduardo Loureiro, aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça nos autos do processo CG 653/96: “I – Os pais da ora recorrente doaram-lhe dois imóveis, situados na Avenida Nove de Julho, nesta Capital, vinculando-os, porém, com cláusulas temporárias de inalienabilidade e impenhorabilidade. O termo final das cláusulas restritivas pode ser aferido pela redação dada às escrituras de doação: a) Imóvel da Avenida Nove de Julho, nº 3.288, objeto da Matrícula 100.843, ‘as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade, as quais, portanto, gravarão o imóvel adquirido e se extinguirão com a morte de ambos os doadores’ (fls. 12 verso); b) Imóvel da Avenida Nove de Julho, nº 3.284, objeto da Matrícula 42.218, ‘o tempo final dessas cláusulas será o evento morte de qualquer deles doadores, porém, enquanto viver qualquer um deles, permanecerão as mesmas integralmente, vindo a cessar automaticamente com o falecimento do cônjuge supérstite’(fls. 16). Falecido o doador Juvenal, a doadora Leonilda, com quem era casado pelo regime da comunhão universal de bens, lavrou escritura de revogação de vínculos, no que diz respeito à sua parte ideal, tudo com a anuência da donatária, ora recorrente. A decisão atacada, porém, prestigiando a recusa do registrador, entendeu que a revogação da restrição atingia a vontade do doador já falecido, uma vez que o termo final dos vínculos era a morte de ambos os doadores. II – O recurso comporta provimento, a meu ver. É bom frisar, inicialmente, que não deseja,- e nem poderia, ao menos nesta via administrativa – a ora recorrente revogar os vínculos na sua totalidade, mas apenas e tão-somente distratar com a doadora sobrevivente as cláusulas que oneram a parte ideal que dela recebeu em doação. A doutrina e jurisprudência hoje entendem, de modo tranqüilo, que os vínculos com que o doador gravou o imóvel podem ser por ele cancelados. Isso porque, sendo a doação um contrato, está sujeita a todas as normas reguladoras dos atos jurídicos dessa espécie, podendo mesmo ser distratada (Agostinho Alvim, Da doação. RT, 1963, p. 244; Antão de Moraes, Cláusula de inalienabilidade, RT, v. 52, p. 344; Miguel Reale, Da cláusula de inalienabilidade, RT, v. 290, p. 49; Carlos Alberto Dabus Maluf, Das cláusulas de inalienabilidade, Saraiva, p. 78/88). Ganha relevo, no caso, o fato da doação não ser pura, mas modal, ou seja, o bem doado, malgrado a transferência do domínio, continua a sofrer o influxo da vontade dos doadores, o que lhes permite aceder ao desejo do donatário, retirando as cláusulas restritivas e permitindo eventual alienação. III – Não há falar que o deferimento do pedido importa em desrespeito à vontade do cônjuge doador já falecido. Íntegro permanece o seu desejo, de que a parte ideal que doou à filha permaneça vinculada até a morte de ambos os doadores. O vínculo que onera a parte ideal que pertencia ao doador falecido, repito, permanece intocado e nem sequer é objeto do presente pedido. O que não se pode admitir é que a meação advinda do cônjuge doador sobrevivente fique sujeita a termo imposto pelo cônjuge falecido. Isso importaria na possibilidade de se vincular bens de terceiro, o que fere princípio elementar de direito. Bem citada pela recorrente, assim, a lição de Washington de Barros Monteiro, para quem a doação, contrato que é, está sujeita a modificação ou resilição, salvo direitos de terceiros. “Morto o doador, entretanto, a cláusula torna-se irretratável e não mais pode ser dispensada, ainda que se trate de adiantamento de legítima. Se ele era casado, a irretratabilidade só concerne à meação do finado, de modo que o vínculo pode ser levantado quanto à meação do cônjuge-doador sobrevivente, consorciado pelo regime da comunhão universal de bens” (Curso de direito civil, 7ª ed., v. 6, p. 145).
Lembre-se, de resto, terem nossos tribunais sufragado a tese acima exposta, em mais de uma oportunidade (RT 294/241, RT 194/183, RT 202/252). Em suma, viável cônjuge doador sobrevivente contratar com o donatário a revogação de vínculos restritivos, no que se refere à parte ideal de prédios que foram de seu domínio.” (grifou-se). Ou seja, admitir que a cônjuge supérstite lavre, ainda que com a anuência da donatária, escritura pública cancelando, por inteiro, os vínculos implica admitir que ela pode alterar a manifestação de vontade do falecido, que é irretratável.
Assim, a cônjuge supérstite pode apenas deliberar, por escritura pública da qual participe a donatária como anuente, sobre o cancelamento das cláusulas restritivas que recaem sobre a sua metade ideal, sem alcançar a do doador falecido, a qual só ficará livre depois de 36 meses da morte da doadora.
Posto isso, julgo prejudicado, por inexistência de título, o pedido formulado por Bety Litvak Gassul e Cecília Litvak.
Nada sendo requerido no prazo legal, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 14 de fevereiro de 2011.
Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Juiz de Direito.