CGJ|SP: Direito Registral – Recurso Administrativo – Retificação de registro imobiliário – Aumento substancial da área do imóvel – Circunstância que, por si só, não impede a retificação administrativa – Possibilidade de transação para transferência de área entre imóveis confrontantes – Parecer pelo provimento do recurso e pela atualização das normas de serviço.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Recurso Administrativo n 1013331-20.2024.8.26.0510

(235/2025-E)

EMENTA: DIREITO REGISTRAL. RECURSO ADMINISTRATIVO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. AUMENTO SUBSTANCIAL DA ÁREA DO IMÓVEL. CIRCUNSTÂNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO IMPEDE A RETIFICAÇÃO ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE DE TRANSAÇÃO PARA TRANSFERÊNCIA DE ÁREA ENTRE IMÓVEIS CONFRONTANTES. PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO E PELA ATUALIZAÇÃO DAS NORMAS DE SERVIÇO.

I. Caso em exame

1. Trata-se de recurso administrativo interposto contra sentença que indeferiu requerimento de retificação administrativa de matricula sob fundamento de aumento elevado de área (50% área do imóvel), o que configuraria aquisição irregular de propriedade. 2. A parte recorrente sustenta descrição suficiente do bem e retificação intra muros, com concordância de quase todos os interessados com exceção de confrontante que o Oficial se recusou a notificar.

II. Questão em discussão

3. A questão em discussão consiste em determinar se a retificação da área do imóvel, que apresenta diferença significativa em relação à área registrada, pode ser realizada pela via administrativa.

III. Razões de decidir

4. O Registrador possui autonomia para recusar requerimentos contrários à ordem jurídica, conforme art. 28 da Lei n. 8.935/1994. No entanto, a diferença de área não justifica a recusa sem indícios de invasão de propriedades vizinhas. 5. A retificação intra muros permite aumento no diminuição da área total do imóvel, desde que respeitados os limites tabulares e ausente conflito.

IV. Dispositivo e Tese

6. Parecer pelo provimento do recurso e pela atualização das Normas de Serviço.

Tese de julgamento: “Diferença de área não impede a retificação administrativa se não houver indício de invasão de propriedades vizinhas ou conflito”.

Legislação e jurisprudência relevantes:

  • Lei n. 8.935/1994, art. 28; Lei n. 6.015/73, art. 213, inciso II e Código Civil, art. 108.
  • Normas de Serviço, Capítulo XX, subitem 136.24.
  • CGJ/SP, Parecer n. 22/2020-E; Recurso Administrativo n∘ 67033/2011, Rel. Des. Maurício Vidigal, j. em 23/8/2011.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso administrativo interposto por V. S. de M. contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 2∘ Registro de Imóveis da Comarca de Rio Claro, que indeferiu requerimento de retificação administrativa da matrícula n.366 daquela serventia (fls.99/100).

Fê-lo a sentença em razão de ter identificado que a retificação nos moldes como requerida importaria em acréscimo de cerca de 50% da área do imóvel e, consequentemente, em aquisição irregular de propriedade.

A parte apelante aduz que o memorial descritivo e o laudo técnico descrevem com clareza e precisão a área do imóvel; que se trata de retificação intra muros; que a divergência verificada decorre de imprecisão técnica à época do registro; que não há tentativa de ampliação da área; que não há qualquer litigio envolvendo o imóvel; que o único confrontante que não manifestou anuência não foi formalmente notificado pelo Oficial; que a ausência de notificação vicia o procedimento e implica nulidade da decisão que indeferiu o pedido (fls. 109/112).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso ( 8.115/116).

É o relatório.

De início, é importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar requerimentos e títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No mérito, porém, o recurso merece provimento.

Vejamos os motivos.

No caso concreto, a parte formulou requerimento visando “Retificação Administrativa Extrajudicial de Registro do imóvel matriculado sob n∘ 366′′ (fls.07/08), a fim de corrigir as descrições tabulares, notadamente área superficial, dimensões lineares e angulares, com correta identificação dos confrontantes.

O pleito contou com planta e memorial descritivos elaborados por profissional legalmente habilitado (fls.10/16), com termo de responsabilidade técnica (fls.22/24), com laudo técnico justificativo (fls.26/29) e com certificação perante o INCRA (fl.21), que atestou que as poligonais, objeto dos memoriais descritivos, não se sobrepõem a nenhuma outra poligonal constante do cadastro georreferenciado daquele órgão.

Além disso, dois dos imóveis confrontantes, referentes às matrículas 6.492 e 111, são de propriedade da parte requerente, que apresentou sua anuência (fls.08 e 16), como também o fez a Prefeitura Municipal de Itirapina (fl.25).

Ressalta-se que a parte interessada requereu a notificação da proprietária do imóvel confrontante matriculado sob o n.71.701 devido a dificuldades em obter sua anuência, o que não foi feito até este momento.

O requerimento, prenotado sob n. 222.148, foi qualificado negativamente pelo Oficial pelas seguintes razões (fl.61):

“O presente consubstancia-se no pedido de retificação administrativa do imóvel matriculado sob n∘ 366. Posto isso, deixa-se assentado que a área apurada no levantamento topográfico de 81,4208 ha não corresponde à área constante do imóvel matriculado sob n∘ 366 (55ha, aproximadamente), razão pela qual o pedido de retificação de registro não prospera, uma vez que decorre do mesmo aparente aquisição irregular de imóvel confrontante, não havendo segurança à prática do ato registrário pretendido, fato este que requer o prévio esclarecimento da interessada e do responsável técnico”.

Vê-se que a matrícula identifica o bem com 22 alqueires e três quartas (fls.79/81) enquanto a descrição georreferenciada se refere a imóvel de 81,4208 hectares (fl.12).

A descrição constante na matrícula é de 1976 (fl.79), época em que os recursos de agrimensura eram muito mais precários.

Fácil concluir, portanto, que a diferença de área, que é até esperada, não pode servir de justificativa para recusa da retificação administrativa sem indício de efetivo avanço sobre propriedades lindeiras.

Nesse aspecto, não é demais elucidar que o conceito de retificação intra muros não enseja a impossibilidade de aumento ou diminuição da área total do imóvel e de suas medidas perimetrais, mas o respeito aos limites tabulares que pode comportar, razão pela qual o aumento de área total e a alteração das medidas perimetrais não impedem a retificação administrativa.

Este, aliás, é o entendimento exarado no Parecer n. 22/2020-E, de lavra do Juiz Assessor desta Corregedoria Geral da Justiça Paulo Roberto Bonini, aprovado pelo então Corregedor Geral da Justiça Des. Ricardo Anafe:

“A existência de elevação significativa da área do imóvel em retificação não obstaculiza o ato, apenas exigindo do Oficial do registro maiores cuidados para a realização do ato”.

Complementarmente, no dizer de Venício Salles e Daniel Mesquita de Paula Salles¹:

“Entretanto, caso esta [a diferença de área venha a ultrapassar este limite de 5% (cinco por cento), é exigido do Registrador cuidado e prudência no exame da retificação. Afinal, não é razoável que um imóvel venha a dobrar ou triplicar sua dimensão como decorrência única de ação retificatória. Nestes casos, não pode o registrador simplesmente invalidar e extinguir a retificação, para que o interessado utilize a via judicial da usucapião.

A providência mais ajustada consiste no pedido ao perito que elaborou a planta para que este traga a comprovação de que os confinantes do imóvel retificando estão com suas respectivas áreas preservadas, e até, em um nível mais abrangente, que os vizinhos do imóvel retificando, ou todos imóveis de uma quadra, seja considerados na planta básica.

Lembre-se sempre que, em que pese a fundamental importância do direito de propriedade, este, salvo situações especiais, representa e caracteriza interesses disponíveis que se curvam à soberana vontade das partes.

O Registrador, mesmo se o imóvel retificando ultrapassar os 5% e até muito além disto, não poderá obstar a correção se todos os eventuais e potenciais afetados estiverem concordes com a retificação.

Isto significa que o Oficial Registrador deve promover a integração de todos os interessados e potencialmente atingidos, mas, se mesmo assim não houver impugnação, o pedido de retificação deve ser deferido e efetivada a correção das medidas do imóvel”.

Assim, em havendo pedido de retificação que não altere ou afete a área dos imóveis vizinhos e em que haja concordância de todos os confrontantes, na forma do artigo 213, II, da Lei n.6.015/73 aumento significativo da área não é fundamento suficiente para recusa à retificação.

Por outro lado, o uso da retificação administrativa como forma de aquisição de propriedade é vedado pelas Normas de Serviço², o que se reflete em diversos precedentes desta Corregedoria, sendo justamente nesse ponto que se estabelece a relação entre retificação intra muros e impossibilidade de usucapião por via transversa:

“É curial para a segurança do sistema de registro de imobiliária evitar que aquisição propriedade a retificação com aumento de área enseje irregular. Daí 0 entendimento de que somente a retificação intra muros nos limites do título causal é legítima. E ‘retificação intra muros não é retificação de imóvel murado em todo seu perímetro, mas sim retificação interna (não externa), ou seja, dentro das divisas tituladas e, por isso, nas forças do próprio título de domínio (não além das forças do título)’ (Processo CG nc 141/2006)” (CGJ/SP Recurso Administrativo n∘ 67033/2011, Rel. Des. Maurício Vidigal, j. em 23/8/2011).

No caso concreto, como já dito, nota-se que requerimento para notificação do único confrontante faltante para manifestação a respeito do pedido não foi atendido, preferindo o Oficial indeferir de plano a retificação justamente pelo aumento significativo de área.

Não se questiona ser possível, é certo, que ao final do procedimento administrativo reste inviabilizada a retificação de registro, não havendo garantia de êxito à interessada no prosseguimento pela via administrativa.

No entanto, tal conclusão há de ser tomada após cumpridas as formalidades referentes às notificações previstas na Lei 6.015/73, cabendo aos confrontantes impugnar o pedido caso discordem do georreferenciamento apresentado pela parte requerente.

Note-se que há justificativa plausível no laudo técnico para o aumento substancial da área (fls.26/27):

“Acredita-se que tal diferença exista por conta da idade do lançamento da área total (matrícula datada do ano de 1.976) e consequentemente por conta dos métodos pouco precisos utilizados a época, além de mudanças internas de divisas, as quais se consolidaram com o tempo entre os imóveis de matricula n∘ 111 e o imóvel retificando em questão matriculado sob n∘ 366 que são de mesma titularidade, refletindo assim a Realidade Fática do imóveľ”.

Insta observar, por fim, que, em que pese os imóveis matriculados sob os n. 366 e 111 serem do mesmo titular, deve o responsável técnico prestar esclarecimentos acerca das mudanças internas de divisas que identificou, já que podem implicar transferência de área entre os bens, o que demanda outras providências como unificação de matrículas ou loteamento/desmembramento e não retificação.

Vale observar, ainda, que mesmo na hipótese de eventual transferência de área na divisa (confrontante não notificado), o procedimento de retificação não ficará prejudicado em decorrência da hipótese de transação trazida pelo subitem 136.24, Capítulo XX, das NSCGJ:

“136.24. Importando a transação em transferência de área, deverão ser atendidos os requisitos do art. 213, inciso II, parágrafo 9∘ da Lei n∘ 6.015/73, exceto no que se refere à exigência de escritura pública”.

O artigo 213, §9∘ da Lei n.6.015/73, por sua vez, dispõe:

“Independentemente de retificação, dois ou mais confrontantes poderão, por meio de escritura pública, alterar ou estabelecer as divisas entre si e, se houver transferência de área, com o recolhimento do devido imposto de transmissão e desde que preservadas, se rural o imóvel, a fração mínima de parcelamento e, quando urbano, a legislação urbanística”.

Assim, e tendo em vista a previsão legal, que se sobrepõe à normativa estadual, caso confirmada a transferência entre registros de proprietários diversos, formalização por meio de escritura pública será necessária com respeito à fração mínima de parcelamento de imóvel rural e recolhimento do imposto de transmissão eventualmente devido.

Necessária, por consequência, atualização das Normas de Serviço para que se exclua a previsão final do subitem 136.24 do Capítulo XX, a qual não se coaduna com a regra do artigo 213, §9∘, da Lei n.6.015/73 citado acima, nem com todo o sistema jurídico em vigor.

De fato, dispensa de escritura pública somente será possível na hipótese do artigo 108 do Código Civil.

A norma, portanto, se adequa ao sistema jurídico em vigor nos seguintes moldes:

“136.24. Importando a transação em transferência de área, deverão ser atendidos os requisitos da legislação civil e do art. 213, inciso II, § da Lei .

Ante o exposto, o parecer que apresento ao elevado critério de Vossa Excelência é no sentido de que seja dado provimento ao recurso para se determinar o prosseguimento do procedimento extrajudicial de retificação da matrícula n.366 do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Rio Claro, com notificação do confrontante faltante e futura análise do pedido à vista da legislação em vigor.

Sugere-se, ainda, alteração das Normas de Serviço Extrajudicial conforme minuta de Provimento abaixo.

Sub censura.

São Paulo, data registrada no sistema.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza Assessora da Corregedoria

Assinatura Eletrônica

CONCLUSÃO

Em 25 de junho de 2025, faço estes autos conclusos ao Doutor FRANCISCO LOUREIRO, Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça. Eu, Silvana Trivelin Daniele, Escrevente Técnico Judiciário, GAB 3.1, subscrevi.

Proc. 1013331-20.2024.8.26.0510

Vistos. Aprovo o parecer apresentado pela MM. Juíza Assessora da Corregedoria e por seus fundamentos, ora adotados, dou provimento ao recurso para:

a) determinar o prosseguimento do procedimento extrajudicial de retificação da matrícula n.366 do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Rio Claro, com notificação do confrontante faltante e futura análise do pedido à vista da legislação em vigor;

b) editar o Provimento sugerido conforme minuta apresentada, a ser publicado, juntamente com o parecer e esta decisão, no DJe e no Portal do Extrajudicial.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

Int.

São Paulo, data registrada no sistema.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Assinatura Eletrônica

_____________________

1 Ação de retificação de registro imobiliário. Direito notarial e registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 457.

2 NSCGJ de São Paulo, Cap. XX: “136.6. Uma vez atendidos os requisitos de que tratam o inciso II, § 1∘ do art 213, da Lei 6.015/73, o oficial averbará a retificação no prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da data do protocolo do requerimento. A prática do ato será lançada, resumidamente, na coluna do Livro n∘ 1- Protocolo, destinada a anotação dos atos formalizados, e deverá ser certificada no procedimento administrativo da retificação. Se, no entanto, em razão das notificações ou diligências que devam se realizar, o procedimento não puder ser concluído em 30 (trinta) dias, a prenotação ficará prorrogada até a conclusão do ato, devendo tal dado constar de todas as certidões emitidas. NOTA -A retificação será negada pelo Oficial de Registro de Imóveis sempre que não for possível verificar que o registro corresponde ao imóvel descrito na planta e no memorial descritivo, identificar todos os confinantes tabulares do registro a ser retificado, ou implicar transposição, para o registro, de imóvel ou parcela de imóvel de domínio público, ainda que não seja impugnada. A transposição de parcela de imóvel pertencente a confrontante somente será admitida na hipótese de transação, na forma do subitem 136.24, com prova do recolhimento do imposto que incidir”.

(DJe de 11.07.2025 – SP)