CSM|SP: Direito das sucessões – Dúvida registrária – Escritura pública de inventário e partilha – Princípio da continuidade – Pretensão de registro de escritura que atribuiu 1/28 do imóvel à ex-esposa de herdeiro, casados sob comunhão universal à época da abertura da sucessão – Oficial exigiu retificação para excluir a nora e ajustar o quinhão do herdeiro (2/28) – Comunicação patrimonial do regime de bens não torna o cônjuge do herdeiro titular da herança nem legitimado à partilha; nora não é sucessora – Ausência de prova de divórcio e partilha do casal impede especificação de quinhões e obsta o ingresso pelo princípio da continuidade – Manutenção do óbice – Recurso desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1041006-70.2024.8.26.0602, da Comarca de Sorocaba, em que é apelante GABRIELLI DE CASSIA JUSTI, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SOROCABA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 7 de outubro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1041006-70.2024.8.26.0602

Apelante: Gabrielli de Cassia Justi

Apelado: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Sorocaba

VOTO Nº 43.898

Direito das sucessões – Processo de dúvida – Escritura Pública de inventário e partilha – Registro recusado – Princípio da continuidade – Apelo desprovido.

I. Caso em Exame. 1. A interessada, irresignada com a r. sentença que confirmou a desqualificação registral, busca sua reforma, com vistas ao registro da escritura pública de inventário e partilha. 2. Não se conforma a recorrente com a exigência de retificação do título, considerando acertada a atribuição de quinhão à ex-mulher de um dos herdeiros, escorando-se no princípio da saisine e no regime de bens do casamento, desfeito posteriormente à sucessão.

II. Questões em Discussão. 3. A controvérsia registral versa sobre o direito à herança de ex- cônjuge de herdeiro, o cabimento de atribuição de quinhão a ex-mulher, pois subsistente o matrimônio ao tempo da abertura da sucessão, celebrado sob o regime da comunhão universal de bens.

III. Razões de Decidir. 4. A comunicação dos bens causa mortis adquiridos, decorrente do regime da comunhão universal de bens, não torna o cônjuge de herdeiro titular da herança, não lhe assegura qualquer direito à herança. 5. Se o cônjuge, na posição de nora, não é sucessor, não é herdeiro, não é, enfim, coproprietário da herança, não lhe cabe ser contemplado na partilha; não é legitimado diretamente à partilha, pois o parentesco com o autor da herança se dá por afinidade. 6. A posição da nora é de meeira do herdeiro. Sucede que não há qualquer comprovação a respeito do divórcio do herdeiro, tampouco da partilha de bens do casal; nada se sabe, portanto, sobre o destino dado à meação de cada um dos cônjuges, nem quais bens couberam nos quinhões. 7. Enquanto não dissolvido o vínculo matrimonial e não feita a partilha do patrimônio do casal, não é possível a especificação do quinhão de cada um dos cônjuges. Não se sabe, por consequência, quais bens compuseram a meação de cada um. 8. In concreto, sequer é viável suavizar o rigor do princípio da continuidade, agir com pragmatismo; não há evidências mínimas da partilha dos bens do casal, de modo que não pode a nora, parente por afinidade, se habilitar diretamente como herdeira do sogro.

IV. Dispositivo. 9. Recurso desprovido.

Teses de julgamento: 1. A comunicação dos bens causa mortis adquiridos, decorrente do regime da comunhão universal de bens, não torna o cônjuge de herdeiro titular da herança, não lhe assegura qualquer direito à herança. 2. A nora do autor da herança, não sendo sucessora, coproprietária da herança, não é de ser contemplada na partilha; não é legitimada à partilha. 3. A sucessão legítima se restringe às pessoas expressamente listadas em lei, ou seja, não comporta ampliação, não alcança os cônjuges dos herdeiros, ainda que casados sob o regime da comunhão universal. 4. Enquanto não dissolvido o vínculo matrimonial e não realizada (trata-se de requisito cumulativo) a partilha, não é possível a especificação do quinhão de cada um dos cônjuges.

Legislação citada: CC/1916, arts. 262 e 263, XI; CC/2002, arts. 1.667, 1.668, I, e 1.784.

A interessada GABRIELLI DE CÁSSIA JUSTI, ora recorrente, pretende o registro de escritura de inventário e partilha do espólio de ROBERTO DE ARAÚJO, título prenotado sob o n.º 426.481, recusado pela Oficial do 2.º RI de Sorocaba, que exigiu a retificação do quinhão pertencente ao herdeiro/filho PAULO ROBERTO ARAÚJO, com base nos princípios da legalidade e da continuidade.

Ao suscitar a dúvida de fls. 1-3, reportando-se à nota devolutiva de fls. 49-50, apontou que, no título, foi atribuído, e aí de forma equivocada, 1/28 do bem imóvel objeto da transcrição n.º 28.875 à MARIA MADALENA DE JESUS, com quem, ao tempo do passamento do autor da herança, o herdeiro PAULO ROBERTO ARAÚJO era casado sob o regime da comunhão universal de bens.

Ocorre que ela, complementou a Oficial, não se qualifica como herdeira do sogro, daí a necessidade de correção, para excluir MARIA MADALENA da sucessão e ajustar o quinhão pertencente ao herdeiro PAULO ROBERTO, correspondente a 2/28 do bem imóvel acima aludido, sem a qual restará inviabilizado o registro.

Irresignada com a r. sentença de fls. 78-80, que julgou a dúvida procedente, a interessada interpôs apelação. Nas razões de fls. 86-93, invocou o princípio da saisine e o regime da comunhão universal de bens sob o qual, à época da abertura da sucessão, MARIA MADALENA DE JESUS ARAÚJO estava casada com o herdeiro PAULO ROBERTO DE ARAÚJO. Busca, assim, reverter o decisum.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça, no parecer de fls. 125-130, opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

1. O dissenso versa sobre o registro da escritura de inventário e partilha do espólio de ROBERTO DE ARAÚJO, falecido no dia 12 de fevereiro de 2001 (fls. 27-28), condicionado, pela Oficial, à retificação do título notarial de fls. 5-16, prenotado sob o n.º 426.481, para excluir, da sucessão, MARIA MADALENA DE JESUS e, assim, ajustar o quinhão atribuído ao herdeiro/filho PAULO ROBERTO ARAÚJO, com quem ela foi casada sob o regime da comunhão universal de bens (fls. 38-40).

A herança deixada por ROBERTO DE ARAÚJO se limitou ao bem imóvel adquirido por meio da transcrição n.º 28.875 do 2.º RI de Sorocaba, identificado na certidão de fls. 53. Por ocasião de sua partilha, reservada a meação da viúva-meeira TEREZA SOARES DE ARAÚJO (fls. 30-31), equivalente a 14/28 do todo, atribuiu-se a remanescente metade ideal aos sete filhos e à ex-esposa de PAULO ROBERTO, de quem ele se divorciou após o passamento de seu genitor.

In concreto, cada um dos seis irmãos de PAULO ROBERTO foi aquinhoado com 2/28 do bem imóvel; por sua vez, coube a ele, PAULO ROBERTO, e a sua ex-mulher, a cada um deles, 1/28 da coisa partilhada. De acordo com a Oficial, a divisão ocorrida fere a legalidade e a continuidade registral. Isso porque MARIA MADALENA DE JESUS, que, quando casada, chamava-se MARIA MADALENA DE JESUS ARAÚJO, não é herdeira do de cujus, não é sucessora.

Daí o condicionamento oposto pela Registradora, a correção exigida, expressa na nota devolutiva de fls. 49-50, contestada pela interessada/recorrente, cuja irresignação não comporta acolhimento.

2. À época do passamento, PAULO ROBERTO ARAÚJO e MARIA MADALENA DE JESUS eram casados, matrimônio contraído sob a égide do Código Civil de 1916 sob o regime da comunhão universal de bens, estatuto matrimonial identificado, àquela época e hoje, pela quase total comunhão dos bens adquiridos pelo casal, por qualquer um deles, antes ou depois do casamento (cf. arts. 262, do CC/1916, e 1.667, do CC/2002).

Em especial, os bens adquiridos por sucessão, transmitidos a qualquer um dos cônjuges mortis causa, se comunicam, salvo, é certo, se onerados com a cláusula de incomunicabilidade (cf. arts. 263, XI, do CC/1916, e 1.668, I, do CC/2002). Os bens ingressam ipso jure, de pleno direito, automaticamente, enfim, no acervo do casal, massa de bens pertencente globalmente ao casal; passam, portanto, a integrar o patrimônio coletivo dos cônjuges, universalidade de direito, como se por ambos tivessem sido adquiridos. Em outros termos, os cônjuges são comunheiros em partes ideais de um patrimônio.

Agora, enquanto não dissolvido o vínculo e não feita a partilha, não é possível a especificação do quinhão de cada um deles. A partilha tem o efeito de converter a comunhão em condomínio, caso seja universal. In casu, a despeito do articulado pela recorrente, não há qualquer comprovação a respeito do divórcio do casal, tampouco da partilha. Nada se sabe sobre o patrimônio do casal e o destino dado à meação de cada um dos cônjuges, nem os bens que a compuseram.

O supostamente resolvido, no apontado divórcio do casal, se é que algo foi efetivamente deliberado sobre os direitos agora partilhados causa mortis, é aqui desconhecido. Desconhece-se, neste processo de dúvida, o conteúdo da hipotética convenção a respeito da partilha do patrimônio coletivo.

A informação, então veiculada na impugnação e na apelação, dando conta do divórcio, dissolução do vínculo que teria ocorrido no dia 4 de maio de 2023 (fls. 62 e 92), não tem, aqui, respaldo documental. Ao tempo da prenotação, nenhuma prova foi feita. E agora, com a interposição do recurso, comprovou-se apenas a separação (fls. 94); nada de divórcio, nada de partilha.

Não se sabe, portanto, quais bens compuseram as meações dos cônjuges. Não se sabe se a partilha foi universal, ou, ao contrário, se a partilha atribuiu bens certos e individualizados a cada um deles.

Dentro desse contexto, não é possível suavizar o rigor do princípio da continuidade, proceder com pragmatismo e, assim, autorizar o registro pretendido. Não há evidências mínimas a respeito da partilha dos bens do casal, de que coube à MARIA MADALENA, quando do alegado divórcio, da dissolução matrimonial posterior ao falecimento de ROBERTO DE ARAÚJO, 1/28 do imóvel por ele deixado aos filhos.

3. MARIA MADALENA DE JESUS, na posição de nora, não é herdeira legítima de seu sogro, ROBERTO DE ARAÚJO. A herança por ele deixada, transmitida, com a abertura da sucessão, e aí por força de lei, aos sete filhos, então herdeiros necessários, não lhe foi deferida. A atribuição de quinhão que lhe foi feita é uma impropriedade, a despeito da comunicação, automática, do pertencente ao seu ex-marido, com que era casada sob o regime da comunhão universal de bens.

Ela, apenas nora, parente por afinidade, não revestida da condição de sucessora testamentária, não foi, uma vez aberta a sucessão, investida na titularidade da herança. Embora o quinhão de seu ex-marido, PAULO ROBERTO DE ARAÚJO, passe, imediatamente, a compor o patrimônio coletivo, isso não basta, por si só, a revelar a propriedade dela, MARIA MADALENA DE JESUS, sobre a correspondente metade ideal, situação dependente de partilha outra, atrelada à dissolução do vínculo conjugal.

A mera condição de nora, nada obstante casada com filho/herdeiro sob o regime da comunhão universal de bens, não a torna beneficiária da saisine, droit de saisine. Não tem direito à herança. Não lhe cabe, nessa posição, por ocasião da partilha, atribuir-lhe diretamente qualquer quinhão. Não é o caso de atribuir-lhe qualquer bem, parte ideal da herança, ainda que, indireta e mediatamente, favorecida, em razão do quinhão atribuído ao marido.

Se não é sucessora, se não é herdeira, se não é (enfim) coproprietária da herança, não lhe cabe ser contemplada na partilha. Não é, de fato, legitimada à partilha. Em especial, a sucessão legítima, a ora discutida, restringe-se às pessoas na lei expressamente listadas, ou seja, não comporta ampliação, não alcança os cônjuges dos herdeiros, ainda que casados sob o regime da comunhão universal. O regime de bens não se presta a tanto.

Sob qualquer prisma, por conseguinte, a dúvida é procedente, o registro intencionado, descabido. A retificação exigida, no atual contexto, é indispensável.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

(DJEN de 15.10.2025 – SP)