1ª VRP|SP: Dívida – Registro de Imóveis – Usucapião Extrajudicial – Impugnação – Massa Falida – Juízo da Falência – Havendo qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada – Impugnação acolhida.

SENTENÇA 

Processo Digital nº: 1083034-41.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Rita de Cassia Zupo Maynarti de Oliveira e outro

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital em decorrência de impugnação da titular do domínio, massa falida de Construtora e Incorporadora Atlântica Ltda, contra pedido de Rita de Cassia Zupo Maynart de Oliveira pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião do apartamento n.72, localizado no 7º andar do Edifício Thelma, objeto da matrícula mãe n. 55.904 daquela serventia (prenotação n. 422.882).

O Oficial informa que o apartamento n. 72 ainda não possui matrícula própria, mas não há óbice para sua abertura; que o imóvel tem origem na matricula mãe de n. 55.904, onde configura como titular do domínio Construtora e Incorporadora Atlântica Ltda; que a referida empresa, hoje massa falida, apresentou impugnação mediante representação de sua administradora judicial, Expertisemais Serviços Contábeis e Administrativos Eireli; que a parte suscitada não concordou com os termos da impugnação apresentada; que, diante da impugnação e considerando que não foi possível conciliação entre as partes, remeteu o feito a juízo nos termos do item 420.5 do Capítulo XX das NSCGJSP.

Documentos vieram às fls. 03/410.

Em manifestação dirigida ao Oficial (fls. 373/385), a parte alega que a massa falida apresentou argumentos genéricos que não correspondem à unidade n. 72 do Edifício Thelma; que, não obstante a pública e notória situação de falência da Construtora Atlântica, o aludido apartamento pertence à família Zupo há mais de trinta anos, não havendo qualquer questionamento sobre o domínio; que a unidade em análise foi transferida, mediante entrega de chaves, a Paschoal Zupo, pai da requerente, em 25/02/1987; que Paschoal faleceu em 09/05/2015, antes de escrituração definitiva da transação; que os direitos sobre o imóvel foram adjudicados à viúva, Maria de Lourdes Apparecida Nogueira Zupo, no inventário de autos n. 1063663-72.2015.8.26.0100, mas sem registro por falta de orientação aos herdeiros; que, com a morte de Maria de Lourdes em 22/03/2019, o bem foi transmitido à parte (inventário extrajudicial); que o que se pretende é a mera formalização dos direitos reais sobre o imóvel; que não se trata de usucapião sobre imóvel que compõe a massa falida, tendo em vista que a aquisição do bem remonta a 1987; que preenche todos os requisitos para aquisição da propriedade pela usucapião; que, quando da sentença de adjudicação nos autos do inventário, não havia qualquer publicidade sobre a falência da Construtora Atlântica; que a sentença de adjudicação só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de ação rescisória; que não há que se falar em interrupção do prazo aquisitivo da usucapião em decorrência do pedido de falência pela Construtora Atlântica; que não há qualquer prejuízo aos credores da massa falida, pois o imóvel em questão não compõe seu patrimônio.

Nestes autos, porém, não houve apresentação de impugnação (fl. 411).

O Ministério Público dos Registros Públicos requereu abertura de vista à Promotoria de Justiça de Falências e Recuperações Judiciais (fl. 414), o que foi acolhido pela decisão de fl. 416.

A Promotoria de Justiça de Falências e Recuperações Judiciais, por sua vez, requereu, às fls. 429/430, a intimação da massa falida na pessoa de sua administradora para manifestação nos autos.

É o relatório.

Fundamento e Decido.

Por primeiro, é importante esclarecer que já houve manifestação da massa falida por meio de sua administradora (impugnação), o que torna desnecessária nova intimação para tanto.

Por segundo, verifica-se que o Oficial reputou a impugnação fundada (fls. 01/02 e itens 420.2, 420.3 e 420.4, Cap. XX, NSCGJ), ainda que não tenha elaborado decisão fundamentada neste sentido[1].

Assim e diante dos elementos já produzidos nos autos, passo ao julgamento.

No mérito, a dúvida procede. Vejamos os motivos.

O procedimento de usucapião extrajudicial tem como principal requisito a inexistência de lide, de modo que, apresentada qualquer impugnação, a via judicial se torna necessária, cabendo à parte suscitada emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum nos termos do § 10, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73.

As Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, prestigiando a qualificação do Oficial de Registro e a importância do procedimento extrajudicial, trouxeram pequena flexibilização a tal regra no item 420.5 de seu Capítulo XX, permitindo que seja julgada a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória:

“420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião.

(…)

420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação”.

Como bem esclarece o dispositivo, tal julgamento deve se dar de plano ou após instrução sumária, não cabendo ao juiz corregedor permitir a produção de prova para que se demonstre a existência de óbice ao reconhecimento da usucapião. É dizer que, apresentada impugnação, deve-se apenas verificar se seu caráter é meramente protelatório ou completamente infundado.

Havendo qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada, devendo o interessado se valer da via contenciosa, sem prejuízo de utilizar-se dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum (item 420.8, Cap. XX, das NSCGJ).

No caso em tela, a massa falida alega interesse que somente pode ser apreciado pelo juízo da falência.

Quanto à matéria, a orientação consolidada pela Segunda Seção do STJ no julgamento do CC 114.842/GO, em 25/02/2015, é no sentido de que eventual acolhimento do pedido de usucapião acarreta perda patrimonial imediata, ou seja, extinção da propriedade do imóvel, com enorme prejuízo para os credores da massa falida, pelo que deve ser reconhecida a competência do juízo universal da falência para apreciar demandas dessa natureza. Nesse sentido, ainda, o AgInt no REsp 2004910/CE e o AgInt no REsp 1541564/DF.

Nesse contexto, de configuração de conflito em relação à posse alegada, a análise da questão não pode ser feita por este juízo administrativo, mas sim pelo juízo da falência, que apreciará a qualidade da posse alegada, bem como o cumprimento das obrigações derivadas do contrato por meio do qual a empresa falida vendeu o imóvel usucapiendo.

Em outros termos, por estar a impugnação devidamente fundamentada e por não ser possível afastar de plano as razões opostas ao direito alegado, a questão deverá ser dirimida em processo judicial (juízo universal da falência), com garantia de contraditório e ampla defesa (possibilidade de dilação probatória).

Diante do exposto, ACOLHO A IMPUGNAÇÃO, determinando a extinção da usucapião extrajudicial, com cancelamento da prenotação n. 422.882 e remessa da parte suscitada às vias ordinárias para solução do conflito nos termos dos itens 420.7 e 420.8 do Cap. XX das NSCGJ. Regularize-se o polo passivo (fl. 01).

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 16 de agosto de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

Notas:

[1] Para conhecimento do rito correto a ser realizado nos próximos expedientes, observe-se a decisão inicial proferida no processo de autos n. 1111611-29.2023.8.26.0100.

(DJe de 18.08.2023 – SP)