CSM|SP: Dúvida – Registro imobiliário – Usucapião extrajudicial – Exigências previstas nos art. 216-A, §2º, LRP C.C. art. 10, §9º, Provimento nº 65/2017 do CNJ e item 418.9, do Capítulo XX das NSCGJ – Impossibilidade de identificação do representante do titular de domínio – Ausência de comprovação da posse qualificada – Inconsistências não passíveis de solução na via administrativa – Recurso não provido.

 

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1004685-12.2019.8.26.0408, da Comarca de Ourinhos, em que é apelante MARCIO MARTINS ROMERA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE OURINHOS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 28 de abril de 2020.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1004685-12.2019.8.26.0408

Apelante: Marcio Martins Romera

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Ourinhos

VOTO Nº 31.137

Dúvida – Registro imobiliário – Usucapião extrajudicial – Exigências previstas nos art. 216-A, §2º, LRP C.C. art. 10, §9º, Provimento nº 65/2017 do CNJ e item 418.9, do Capítulo XX das NSCGJ – Impossibilidade de identificação do representante do titular de domínio – Ausência de comprovação da posse qualificada – Inconsistências não passíveis de solução na via administrativa – Recurso não provido.

1. Trata-se de apelação interposta por MARCIO MARTINS ROMERA E OUTROS contra a r. sentença de fl. 238/241 que julgou procedente a suscitação da dúvida para manter, integralmente, as exigências formuladas na nota de devolução emitida pela Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Ourinhos/SP, a impedir o prosseguimento do expediente administrativo, a saber: necessidade de intimação do proprietário do imóvel (titular do direito registrado) e ausência de documentação apta a demonstrar o exercício da posse qualificada pelo prazo legalmente exigido.

Os apelantes, nas razões de recurso, sustentam a incorreção a respeito do momento em que realizada a presente suscitação de dúvida; a viabilidade de intimação por edital em face da dificuldade de localização dos sucessores e/ou representantes legais da titular de domínio; o contrato demonstra a origem e o início da posse, o que foi confirmado pelas testemunhas; sendo atestado pela tabeliã, de que a posse foi qualificada.

A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl. 278/281).

É o relatório.

2. Os recorrentes ingressaram com requerimento de usucapião administrativa do imóvel referente ao Lote nº 08 da Quadra nº 05 da Vila Salto Grande, objeto da transcrição nº 12.511, do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Ourinhos/SP.

A Registradora fundou a recusa do prosseguimento do pedido de usucapião extrajudicial na ausência de intimação do titular de domínio do imóvel usucapiendo e na inexistência de documentação apta a demonstrar o exercício da posse qualificada pelo prazo legalmente exigido.

Pois bem.

De proêmio, os recorrentes sustentam incorreção a respeito do momento em que realizada a presente suscitação de dúvida.

Consoante dispõe o artigo 216-A da Lei n.º 6.015/73:

“Art. 216-A – Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:

§ 7º – Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei”.

Assim, à luz de referido dispositivo legal, constata-se ser lícito ao interessado, em qualquer hipótese, suscitar o procedimento de dúvida, nos termos da Lei n.º 6.015/73, de modo que o argumento lançado pelos recorrentes de que “houve incorreção a respeito do momento em que realizada a presente suscitação de dúvida” não convence.

O procedimento de dúvida é o meio previsto pelo legislador para que o requerente da usucapião administrativa impugne qualquer exigência do Oficial nos trâmites do pedido, não havendo qualquer limitação quanto ao momento de sua suscitação.

Oportuno esclarecer que, diversamente do procedimento de dúvida usual, que ocorre nos casos de apresentação de títulos para registro, a sentença de improcedência transitada em julgado representa o imediato registro do título; no caso da usucapião extrajudicial, a improcedência da dúvida não representará a procedência do pedido de usucapião, mas sim o afastamento da exigência do Oficial naquele momento do processo administrativo, que deverá continuar com os procedimentos legais.

Ultrapassado este ponto, em que pese a argumentação trazida pelos recorrentes, certo é que não foram cumpridos, na íntegra, o art. 216-A, §2º, da Lei n.º 6.015/73 c.c. art. 10, §9º do Provimento nº 65/2017 do CNJ e item 418.9, do Capítulo XX das NSCGJ.

De acordo com o que dispõe o artigo 216-A, § 2º supra referido:

“Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância.”

No caso em tela, indiscutível que a planta apresentada não contém a assinatura do titular de domínio, de modo que se fazia necessária sua notificação a fim de manifestar seu consentimento, o que, contudo, não se efetivou.

Consta como titular de domínio do imóvel usucapiendo a empresa URBANIZADORA SALTO GRANDE LTDA.

Contudo, da averbação n.º 504 da inscrição 15 do Livro 8-B consta a dissolução da empresa proprietária, restando atribuído a Francisco Bernardo Vieira a função de “outorgar escritura definitiva a quem de direito, no momento oportuno”. Há, também, informação do óbito de Francisco Bernardo Vieira.

Nos termos do artigo 10, §9º do Provimento CNJ n.º 65/2017:

“tratando-se de pessoa jurídica, a notificação deverá ser entregue a pessoa com poderes de representação legal.”

No mesmo sentido, o item 418.9, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

Ocorre que, à fl. 196 foi apresentada certidão de objeto e pé da ação de dissolução da empresa proprietária do imóvel usucapiendo (autos do processo n.º 0000007-22.1969.8.26.0408) em que consta que as partes entabularam acordo em relação à partilha de bens da empresa URBANIZADORA SALTO GRANDE LTDA, com a expedição de carta de sentença em favor dos interessados, extinguindo-se, por consequência, o encargo de liquidante.

Nestes moldes, assiste razão à Senhora Registradora no sentido de que, para que seja possível a notificação da pessoa a quem coube o imóvel em tela no processo de dissolução da empresa titular de domínio será preciso apresentar a registro a carta de sentença oriunda do processo em questão, o que não se deu.

E, ainda que houvesse certidão de objeto e pé complementar indicando a quem o imóvel tenha sido partilhado, certo é que a notificação não seria viável posto que do registro de imóveis ainda consta como titular de domínio a empresa URBANIZADORA SALTO GRANDE LTDA, e é quem deve ser notificada, nos termos do Art. 216-A, §2º da Lei n.º 6.015/73.

Tampouco seria o caso de notificação por edital conforme pretendem os recorrentes.

O item 418.16, do Capítulo XX, das Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral da Justiça admite a notificação por edital apenas quando o titular de direitos registrados estiver em lugar incerto ou não sabido, ou inacessível, não sendo a hipótese dos autos, vez que o titular de domínio sequer é conhecido.

Ademais, o caso não se amolda ao que dispõe o item 419, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça:

“Considera-se outorgado o consentimento mencionado no Caput do item 418. deste provimento, dispensada a notificação, quando for apresentado pelo requerente justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível expedida até trinta dias antes do requerimento que demonstre a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.”

Com efeito, os interessados apresentam um instrumento particular de compromisso de compra e venda celebrado na data de 10/10/1995 pelos herdeiros de Francisco com o primeiro cedente, Sr. Erivaldo Brito Barbosa (fl. 71/74). Este, por seu turno, em 26/02/2014 celebrou instrumento particular de cessão de direitos com José Estrela de Oliveira (fl. 63/64), que celebrou instrumento particular de cessão de direitos com os recorrentes Marcio Martins Romera e José Carlos de Andrade na data de 16/01/2018 (fl. 58/60).

Contudo, nos moldes do acima já exposto, não há nos 1004685-12.2019.8.26.0408autos demonstração acerca dos poderes e legitimidade dos herdeiros de Francisco Bernardo Vieira, liquidante da pessoa jurídica titular de domínio, para a efetivação do primeiro instrumento particular de compromisso de compra e venda.

Observe-se, no ponto, que o dever de outorgar as escrituras não se transfere ao espólio e herdeiros, não havendo, ademais, demonstração de que referido compromisso tenha sido firmado por todos os herdeiros do de cujus.

Destaque-se que da certidão de óbito de fl. 78 consta que Francisco Bernardo Vieira deixou os filhos Elza, Emerson, Adriane e Alcione, constando do instrumento particular apenas Elza e Emerson.

É, neste sentido, o precedente deste Conselho Superior da Magistratura, em voto do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, na Apelação Cível: 1007331-86.2017.8.26.0271:

“Registro de Imóveis – Dúvida – Escritura pública de compra e venda de imóvel em que figura, como vendedora, pessoa jurídica – Distrato social registrado na Jucesp que não enseja a automática extinção da personalidade jurídica da empresa – Óbito da liquidante nomeada no distrato – Inventariante da sócia falecida que não tem poderes para representar a sociedade e praticar atos necessários à sua liquidação – Irregularidade na representação da pessoa jurídica – Apelação não provida”.

De mais a mais, não havendo a qualificação dos titulares do domínio, não é possível, ao menos extrajudicialmente, a obtenção das certidões de distribuição da Justiça Estadual e da Justiça Federal, requisito normativo constante do artigo 416.2, IV, b, do Capítulo XX, das NSCGJ, observando-se que o Oficial de Registro de Imóveis, em atividade de natureza administrativa, não pode afastar requisitos legais e normativos sob o fundamento de que lhe compete qualificar de forma exaustiva os documentos que formam o título levado à registro.

No mais, de rigor, também, a manutenção do segundo óbice apontado pela Registradora.

Sabe-se que “os pressupostos da usucapião são: coisa hábil (res habilis) ou suscetível de usucapião, posse (possessio), decurso do tempo (tempus), justo título (titulus) e boa-fé (fides). Os três primeiros são indispensáveis e exigidos em todas as espécies de usucapião. O justo título e a boa-fé somente são reclamados na usucapião ordinária” (in Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro Vol. 5: Direito das Coisas, 11ª edição, 2015, Ed.Saraiva, p. 274).

Com relação à posse como requisito à prescrição aquisitiva, deve ser esclarecido que apenas a “posse ad usucapionem é a que contém os requisitos exigidos pelos arts. 1.238 a 1.242 do Código Civil, sendo o primeiro deles o animo de dono (animus domini ou animus rem sibi habendi). Requer-se, de um lado, atitude ativa do possuidor que exerce os poderes inerentes à propriedade; e, de outro, atitude passiva do proprietário, que, com sua omissão, colabora para que determinada situação de fato se alongue no tempo. Exigem os aludidos dispositivos, com efeito, que o usucapiente possua o imóvel “como seu”. Não tem animo de dono o locatário, o comodatário, o arrendatário e todos aqueles que exercem posse direta sobre a coisa, sabendo que não lhe pertence e com reconhecimento do direito dominial de outrem, obrigando-se a devolvê-la” (in Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro Vol. 5: Direito das Coisas, 11ª edição, 2015, Ed. Saraiva, p. 280).

Fixadas tais premissas, certo é que os recorrentes não se desincumbiram, a contento, do ônus que lhes competia.

É forçoso reconhecer que a posse com ânimo de dono pelos recorrentes não restou devidamente comprovada.

Ainda que haja autorização legal para a união de posses (accessio possessionis) com o fim de contagem do tempo exigido para efeito de usucapião, certo é que no caso telado não houve demonstração.

Consoante se infere dos autos o documento mais antigo data de 2013 (fl. 82), em nome de Francisco Bernardo Vieira, liquidante da titular de domínio.

Além disso, os depoimentos de Waldemar Correa e Benedita Leite Mimi Mateus não ratificaram o exercício da posse qualificada pelo prazo legalmente exigido (fl. 46/51). As informações são genéricas, não autorizando a interpretação de que todos os antecessores exerceram a posse ad usucapionem.

  1. Ante o exposto, pelo meu voto nego provimento ao recurso.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator.

(DJe de 01.06.2020 – SP)