CSM|SP: Registro de Imóveis – Escritura de compra e venda – CND Federal. Exigência afastada, conforme atual orientação do CNJ, do CSM e nos termos das NSCGJ – Arrolamento de bens em processo administrativo fiscal – Receita Federal do Brasil – Art. 64-A da Lei n° 9.532/97 e art. 3° da Instrução Normativa/RFB 1.565/2015 – Suposta ocorrência de fraude que poderia levar à indisponibilidade do bem – Ausência de determinação legal ou administrativa de inalienabilidade – Limites da qualificação registral – Dúvida improcedente – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002176-74.2018.8.26.0366, da Comarca de Mongaguá, em que é apelante OLIVENZA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS LTDA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE MONGAGUÁ.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso e julgaram improcedente a dúvida suscitada, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 23 de agosto de 2019.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1002176-74.2018.8.26.0366

Apelante: OLIVENZA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS LTDA

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Mongaguá

VOTO Nº 37.872

Registro de Imóveis – Escritura de compra e venda – CND Federal. Exigência afastada, conforme atual orientação do CNJ, do CSM e nos termos das NSCGJ – Arrolamento de bens em processo administrativo fiscal – Receita Federal do Brasil – Art. 64-A da Lei n° 9.532/97 e art. 3° da Instrução Normativa/RFB 1.565/2015 – Suposta ocorrência de fraude que poderia levar à indisponibilidade do bem – Ausência de determinação legal ou administrativa de inalienabilidade – Limites da qualificação registral – Dúvida improcedente – Recurso provido.

Trata-se de apelação interposta por OLIVENZA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS LTDA. contra r. sentença de fls. 117/122, que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Mongaguá, mantendo, assim, o óbice ao registro de escritura de compra e venda, por ser exigível a apresentação de Certidão Negativa de Débitos Federais-CND e em face de indícios de fraude na alienação.

A apelante sustenta que a exigência de certidão negativa da Receita Federal traduz abuso de poder da fazenda federal, conforme pacífico entendimento da jurisprudência, constrangendo o contribuinte ao pagamento de débito tributário de forma indireta, sendo inexigível a sua apresentação para ingresso do título.

A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 159/160).

É o relatório.

Presentes os pressupostos processuais e administrativos, no mérito, o recurso deve ser provido.

Prenotou-se escritura pública de compra e venda na qual Olivenza Indústria de Alimentos Ltda., ora apelante, vende a Alberto Rodrigues Moura Neto os imóveis que são objeto das matrículas n° 23.595 e 23.597, ambas do Registro de Imóveis de Mongaguá.

A r. sentença, acolhendo as respeitáveis razões oferecidas na nota de exigência, afirma que, nada obstante os precedentes deste Eg. Conselho Superior da Magistratura, a exigência da CND aqui se justificava pelo fato de a Receita Federal ter promovido, em data recente, pesquisa de bens imóveis registrados em nome da apelante, sendo que, tão logo restou informado acerca da existência de imóveis objetos das matrículas de nº 23.595 e 23.597, que ora se pretende alienar, entendeu por bem solicitar o registro do arrolamento de bens (art. 64 da Lei nº 9.532/97).

Ainda segundo as razões de recusa, o representante legal da apelante, Nelson Júlio, ao longo dos últimos meses, estaria promovendo a dilapidação de seu patrimônio, justamente em favor do ora adquirente, Alberto Rodrigues Moura Neto, também com alienações a Elizabete Rodrigues, profissional que oficia perante a empresa apelante, e que lançou assinatura como testemunha no último contrato social consolidado e arquivado na JUCESP.

Conclui o Sr. Oficial que, nos últimos meses, Nelson Júlio tem alienado seu patrimônio pessoal e o patrimônio da apelante a Alberto Rodrigues Moura Neto, seja diretamente ou por interposta pessoa, sem que se saibam os reais motivos.

Delimitada a controvérsia, vale lembrar que o tema objeto do debate (exigência da CND para alienações de imóveis) não é novo.

Tampouco existe unanimidade na doutrina quanto à possibilidade de afastamento dessa exigência pela via administrativa.

Nada obstante, são diversos os precedentes deste E. Conselho Superior da Magistratura quanto à inexigibilidade da certidão negativa de tributos federais (CND) para ingresso de títulos no registro de imóveis, sob argumento de que a exigência configura forma heterodoxa e atípica de exigibilidade de débitos tributários, sem o devido processo legal, em afronta à Constituição Federal, por traduzir verdadeira sanção política ao jurisdicionado.

E, de fato, o Eg. Supremo Tribunal Federal já vem se posicionando pela inconstitucionalidade de atos do Poder Público que traduzam exercício coercitivo de exigência de obrigações tributárias, inclusive com natureza de contribuições previdenciárias.

Tal entendimento se encontra consubstanciado em enunciados da Suprema Corte (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI).

A matéria se encontra normatizada também no âmbito administrativo desta Eg. Corregedoria Geral da Justiça, conforme Item 119.1 do Capítulo XX das Normas de Serviço Extrajudicial:

“119.1. Com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.”

Não bastasse, o C. Conselho Nacional de Justiça-CNJ, no julgamento do Pedido de Providências n° 0001230-82.2015.2.00.000, por votação unânime, firmou entendimento de que, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 1°, inciso IV da Lei n° 7.711/88 (ADI 394), não há mais que se falar em comprovação de quitação de créditos tributários, de contribuições federais e de outras imposições para o ingresso de qualquer título do registro de imóveis com base na referida norma.

Passando ao argumento de que a Receita Federal, recentemente, promoveu a pesquisa de bens em nome da apelante, com posterior pedido de arrolamento administrativo, deve ser lembrado que tal medida fiscal, sequer, tem o condão de levar à indisponibilidade de bens.

O art. 64-A da Lei n° 9.532/97 dispõe:

“Art. 64-A. O arrolamento de que trata o art. 64 recairá sobre bens e direitos suscetíveis de registro público, com prioridade aos imóveis, e em valor suficiente para cobrir o montante do crédito tributário de responsabilidade do sujeito passivo.”

Da mesma forma, a Instrução Normativa RFB n° 1.565, de 11 de maio de 2015, em seu art. 3°, assim define:

“Art. 3º Para efeito de aplicação do disposto no art. 2º, considera-se patrimônio conhecido da pessoa física o informado na ficha de bens e direitos da última declaração de rendimentos, e da pessoa jurídica o total do ativo constante do último balanço patrimonial registrado na contabilidade ou o informado na Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ) ou em outro documento que venha a substituí-la.”

Tratando do tema, o professor HUGO DE BRITO MACHADO discorre sobre os efeitos da medida:

“O arrolamento tem duas finalidades. Uma aparente e outra disfarçada. A sua finalidade aparente é a de tornar conhecido da Fazenda o patrimônio do suposto devedor, de sorte a facilitar a penhora e consequentemente garantir a eficácia do processo executivo fiscal. O rol de bens e direitos do sujeito passivo na verdade facilita a penhora sobre um, alguns ou todos os bens do devedor, se e quando promovida a execução fiscal. Tem, todavia, o arrolamento, uma finalidade disfarçada, ou oculta, que é a de criar um constrangimento para o contribuinte, dificultando suas atividades, com que pretende a Fazenda obrigá-lo, por via oblíqua, a pagar o que lhe esteja sendo exigido, sem questionar a legalidade da exigência. (…) Em tese, o arrolamento presta-se para dar maior eficácia à execução fiscal. O acompanhamento do patrimônio do contribuinte permite a propositura da ação cautelar fiscal, a indicação de bens à penhora e a frustração de tentativas de fraude à execução. Assim, os efeitos que produz no plano teórico são: (a) a publicidade da situação patrimonial do titular dos bens arrolados; (b) o dever deste de informar ao Fisco a alienação dos bens arrolados; e ainda, (c) facilitar a realização da penhora quando da propositura da execução fiscal.” (Revista de Direito Tributário nº 82, p. 22 e seguintes) (g.n).

Também o Eg. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp nº 1.486.861/RS, delimitou os efeitos da medida:

“PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL FEDERAL. ARROLAMENTO DE BEM. ART. 64 DA LEI Nº 9.532/97. INDEFERIMENTO DO REGISTRO DA ALIENAÇÃO NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS EM RAZÃO DA AVERBAÇÃO PRÉVIA DO ARROLAMENTO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. IMPOSSIBILIDADE. COMUNICAÇÃO DA ALIENAÇÃO AO FISCO. IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DO REGISTRO DO ARROLAMENTO. 1. Conforme se depreende dos § § 3º e 4º do art. 64 da Lei nº 9.532/97, o ônus imputado ao contribuinte em relação ao bem arrolado é tão somente a comunicação ao Fisco da transferência, alienação ou oneração do bem, cuja inobservância autoriza o requerimento de medida cautelar fiscal contra o devedor. 2. A IN RFB nº 1.088/10 impôs obrigação ao órgão de registro de comunicar à unidade da RFB do domicílio tributário do sujeito passivo, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, a alteração promovida no registro em decorrência de alienação, oneração ou transferência a qualquer título, de qualquer dos bens ou direitos arrolados, sob pena de imposição da penalidade prevista no art. 9 º do Decreto-Lei n º 2.303, de 21 de novembro de 1986. 3. Da legislação citada infere-se claramente que o titular do órgão de registro não pode negar o registro da alteração da titularidade do bem tão somente em razão de haver na matrícula do imóvel o registro do arrolamento do bem, incumbindo-lhe, apenas, comunicar tal alteração à unidade da RFB do domicílio tributário do sujeito passivo. 4.(…)” (REsp 1486861/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/12/2014, DJe 15/12/2014, g.n).

Deveras, o arrolamento levado a efeito pela Receita Federal não tem natureza de constrição judicial, não impedindo a sua alienação ou oneração, tratando-se de procedimento suscetível de ser indicado como garantia de débitos federais e para representação, quando da propositura de medida cautelar fiscal.

Já quanto aos supostos indícios de dilapidação patrimonial, muito embora a própria redação do Item 40 do Capítulo XX das Normas de Serviço disponha ser dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado, tal exame, contudo, não pode ultrapassar os limites registrais, sob pena de ingresso indevido do Oficial nos elementos intrínsecos do título apresentado.

E isso não pode ocorrer, por melhores que sejam as intenções do diligente Oficial Registrador.

À luz do art. 167, §1º, II, do Código Civil, a simulação é vício que leva à nulidade do negócio jurídico:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

(…)

II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;”

A fraude contra credores está descrita no art. 158 do Código Civil:

“Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.”

Por fim, a fraude à execução está assim descrita no Código de Processo Civil:

“Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V – nos demais casos expressos em lei.

§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

(…)

§ 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.”

Verifica-se que, em todas as hipóteses acima citadas, o reconhecimento de situações que levem à nulidade ou ineficácia da alienação pressupõe a manifestação judicial quanto a sua constatação.

Frise-se ser da essência da simulação a conduta praticada em conluio, em ardil, e que, pois, demandará ação própria, de natureza jurisdicional, com contraditório e ampla defesa, o que não é possível ser feito na esfera administrativa, sob pena de invasão na livre declaração de vontade das partes.

A Lei n° 6.015/73, no que diz respeito à hipótese em exame, trata das nulidades dos registros nos arts. 214 e 216:

“Art. 214 – As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta.

§ 1º A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos.”

“Art. 216 – O registro poderá também ser retificado ou anulado por sentença em processo contencioso, ou por efeito do julgado em ação de anulação ou de declaração de nulidade de ato jurídico, ou de julgado sobre fraude à execução.”

Ocorre que, nos termos do art. 252 da Lei n° 6.015/73, o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, seja provado que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.

Não existe qualquer informação quanto a indícios de falsidade material, ou mesmo ideológica, mas sim a presunção de negócio simulado ou fraudulento, com base em fatos intrínsecos levados em conta no momento da qualificação.

As hipóteses legais de nulidades a serem declaradas no próprio registro de imóveis são restritas, valendo a releitura do art. 214 da Lei n° 6.015/73, que reserva essa possibilidade somente para nulidades cujo exame se verifique no próprio registro, desligadas do título que lhe deu origem, ressalvadas hipóteses expressamente previstas em lei, como o próprio art. 250, inciso IV, da Lei de Registros Públicos, ou do art. 1° da Lei n° 6.739/79.

Para a situação aqui apresentada, será necessária eventual propositura de ação jurisdicional, ou medida cautelar fiscal, por parte dos credores/interessados, a fim de que seja imposta a indisponibilidade ou declarada a nulidade do título e de seu respectivo registro, se for o caso, com base em vício intrínseco, o que, deveras, demanda análise casuística.

Desse modo, com o devido respeito, não é possível, em âmbito administrativo, acolher-se a afirmação do MM. Juiz Corregedor Permanente no sentido de que: “Assim, a partir de todo este quadro, a exigência da CND, neste caso, não se apresenta como uma forma enviesada de exigência tributária, mas sim mecanismo legítimo para preservar direitos de credores e evitar a ocorrência de fraude.” (fl. 121, g.n).

O direito de propriedade se enquadra no rol daqueles fundamentais. Não se pode criar uma nova hipótese de indisponibilidade de bens administrativa não prevista em lei, e sem decisão judicial, feita pelo Oficial de Registro de Imóveis, com base em anteriores alienações feitas pelas mesmas partes, por se entender que, em tese, poderia haver alguma espécie de simulação ou fraude.

Neste cenário, portanto, a exigência de apresentação da Certidão Negativa de Débitos deve ser afastada.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso e julgo improcedente a dúvida suscitada.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 17.09.2019 – SP)