1ª VRP|SP: Dúvida registrária – Usucapião extrajudicial – Indeferimento prematuro pelo Oficial de Registro com exigência de aditamento para justificar ausência de escritura definitiva – Usucapião extraordinária – Comprovação de posse contínua, mansa e pacífica desde 2005 – Apresentação de compromisso de compra e venda com herdeiros dos titulares de domínio já falecidos – Exigência desproporcional e indevida – Possibilidade de reconhecimento da prescrição aquisitiva mesmo havendo outras formas de regularização do imóvel – Função do registrador limitada à verificação dos requisitos legais – Improcedência da dúvida.

Sentença

Processo nº: 1051738-30.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 12º Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: José Carlos Pereira de Moraes

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 12º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de José Carlos Pereira de Moraes, à vista do indeferimento do pedido pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade extraordinária, sobre o imóvel objeto da matrícula n. 55.117 daquela serventia (prenotação n. 659.323).

O Oficial aduz que indeferiu de plano o pedido do requerente pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião, por entender “que para o procedimento de usucapião extrajudicial, nos termos do §2º do art. 410 do Provimento 149/23 do CNJ, citado no item 2 da intimação, independente de qualquer modalidade escolhida, o requerente deve apresentar justificativa plausível para a não obtenção da escritura definitiva do imóvel, e comprovar o alegado”.

O Oficial esclarece que, após análise inicial da documentação apresentada, foi emitida intimação na qual foi solicitado ao requerente que justificasse o óbice à correta escrituração das transações imobiliárias para evitar o uso da usucapião por meio de burla dos requisitos legais (item 2); que o requerente manifestou-se, alegando ser impossível o contato com os antigos proprietários para regularização da escrituração do imóvel usucapiendo; que o Oficial concluiu que os antigos proprietários em questão são familiares do requerente, vez que apresentou: instrumento de compromisso de compra e venda, contrato de cessão e transferência de direitos de herdeiros, formal de partilha extraído dos autos n. 420/2006, referente ao arrolamento de bens deixados pelos falecimentos dos titulares de domínio João da Cruz Moraes e Celestina Santos de Moraes, ambos ocorridos no ano de 1.989, nenhum deles registrado na matrícula; também apresentou documentos para a soma do tempo de posse (canhotos antigos de IPTU, declaração da Receita Federal e correspondência em nome de João da Cruz) que só poderiam estar na posse de familiares, tendo o Oficial concluído que o requerente não esclareceu o motivo pelo qual não buscou regularizar a situação do imóvel; que outra exigência que constou na intimação (item 7) indicava que o contrato de cessão e transferência de direitos de herdeiros, de 14.10.2005, seria ineficaz por não ter sido formalizado por escritura pública e por não constar a assinatura de Joana Rodrigues dos Santos Moraes; que, uma vez não superada a exigência do item 2, sobreveio o indeferimento do pedido, tendo o requerente solicitado o envio dos autos ao juízo para exame da recusa (fls. 01/03).

Documentos e cópia do procedimento extrajudicial foram juntados às fls. 04/539.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que o papel do Oficial Registrador consiste em verificar o cumprimento dos requisitos legais para declaração de usucapião; que já comprovou no procedimento extrajudicial, de forma robusta, o exercício de posse prolongada e inconteste do imóvel usucapiendo; que a exigência de justificativas adicionais para a não obtenção de escritura definitiva do imóvel é desproporcional e incompatível com a natureza declaratória da usucapião; que na usucapião extraordinária, prevista no artigo 1.238 do Código Civil, uma vez comprovada a posse mansa, pacífica e ininterrupta por mais de quinze anos, não cabe ao Oficial exigir justificativas adicionais ou advogar em favor de terceiros; que a alegação de que a familiaridade entre as partes seria impeditiva para o reconhecimento da usucapião é infundada e desprovida de amparo legal; que o óbice à correta escrituração do imóvel foi devidamente justificado, ante a impossibilidade de contato com os antigos proprietários, mesmo sendo estes seus familiares; que nem mesmo seria possível ajuizar ação adjudicatória, pois não existe título firmado com os titulares de domínio; que o título apresentado serve apenas como prova de posse, visto que a usucapião extraordinária dispensa apresentação de justo título; que não cabe ao Oficial presumir má-fé da parte usucapiente ou agir como ente fiscal, sem fundamentação legal; e que a conduta do Oficial, marcada por exigências desproporcionais, deve ser objeto de fiscalização por parte desta Corregedoria Permanente (fls. 07/13).

O Ministério Público ofertou parecer, pugnando pela manutenção do óbice (fls. 544/546).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após rejeição do seu requerimento pelo Oficial, a qual não foi reconsiderada, com prosseguimento nos termos do item 421.4, Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.

No mérito, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

No caso concreto, o requerente José Carlos Pereira de Moraes apresentou requerimento pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade extraordinária, sobre o imóvel objeto da matrícula n. 55.117 do 12º RI (fls. 18/26), em que constam como proprietários João da Crus Moraes e Celestina Santos de Moraes (fls. 66/68).

Alega que adquiriu o imóvel em 14 de outubro de 2005, por meio de instrumento particular de compromisso de compra e venda e cessão de direitos celebrado com Maria Souza Morais dos Santos e seu marido Antonio Lima dos Santos, Veraldino Souza Morais e sua esposa Joana Rodrigues dos Santos Morais, e Armando Souza Morais e sua esposa Maria Pereira Morais, herdeiros dos titulares de domínio (falecidos em 1.989), e, ainda, por intermédio de cessão de transferência de direitos de herdeiros firmada entre as mesmas partes, em 14 de outubro de 2005. Assevera que, após o falecimento dos titulares de domínio no ano de 1.989, os herdeiros promoveram ação de arrolamento de bens, nos autos n. 420/2006, conforme formal de partilha, não registrado. Salienta que, desde a aquisição do imóvel, em 2.005, exerce a posse (própria) mansa, pacífica e contínua, sem qualquer oposição. Assim, preenche os requisitos legais para o reconhecimento extrajudicial da usucapião (fls. 19/20).

No tocante ao instituto da usucapião, o Código Civil a define como modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada e qualificada por requisitos estabelecidos em lei.

A partir da vigência do artigo 216-A da Lei n. 6.015/1973, inaugurou- se, no Sistema Brasileiro, uma nova forma de procedimento de usucapião que pode ser buscado pela parte, em caráter facultativo, na via administrativa perante o Oficial de Registro de Imóveis competente, com observância do procedimento específico regulado no artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, Provimentos n. 65/17 e n. 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça, e Seção XII do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

O procedimento de usucapião extrajudicial tem como principal requisito a inexistência de lide, de modo que, apresentada qualquer impugnação, a via judicial se torna necessária, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum nos termos do §10, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73.

De fato, a usucapião não pode servir de alternativa imediata à transmissão regular do domínio, sob pena de se afastar, por via oblíqua, eventual incidência tributária (imposto de transmissão), bem como os vínculos decorrentes da aquisição derivada da propriedade, o que não pode ser admitido.

É exatamente o que prescreve o item 419.2, Cap. XX, das NSCGJ: a via da usucapião somente se justifica quando inviável a escrituração ordinária das transações. Confira- se (destaque nosso):

“419.2. Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.”

Do mesmo modo, é o que preceitua o §2º do artigo 410 do Provimento CNJ n. 149/23 (destaque nosso):

“Art. 410.(…)

§ 2º. Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.”

Na espécie, porém, o prematuro obstáculo apresentado pelo Oficial Registrador, não se sustenta a partir de uma leitura atenta dos documentos trazidos aos autos, destacando-se os seguintes: (i) instrumento particular de compromisso de compra e venda e cessão de direitos celebrado entre autor e os herdeiros dos falecidos titulares de domínio Maria Souza Morais dos Santos e seu marido Antonio Lima dos Santos, Veraldino Souza Morais e sua esposa Joana Rodrigues dos Santos Morais, e Armando Souza Morais e sua esposa Maria Pereira Morais; (ii) certidão de óbito de Armando Souza Morais, ocorrido em 15 de agosto de 2014 (fls. 408); (iii) certidão de distribuições de ações de família e sucessões em nome de Armando Souza Morais, comprovando a inexistência de qualquer ação de inventário ou arrolamento de bens (fls. 355); (iv) certidão de óbito de Veraldino Souza Moraes, ocorrido em 23 de dezembro de 2009 (fls. 410); (vi) certidão de distribuições de ações de família e sucessões em nome de Veraldino Souza Moraes, comprovando a inexistência de qualquer ação de inventário ou arrolamento de bens (fls. 344).

Fica evidente, portanto, que o indeferimento precoce do procedimento partiu da premissa equivocada do Oficial de que “o requerente deve apresentar justificativa plausível para a não obtenção da escritura definitiva do imóvel, e comprovar o alegado” (fls. 02), proveniente de uma interpretação distorcida das disposições normativas traçadas nas Normas de Serviço e da própria concepção do instituto da usucapião.

Ora, tendo o requerente adquirido o imóvel por instrumento particular de compromisso de compra e venda em 2.005, mesma data em que passou a exercer a posse “ad usucapionem”, sem qualquer oposição, e com a superveniência dos falecimentos de dois herdeiros dos já falecidos titulares de domínio, ocorridos antes do registro do formal de partilha, resta evidente que o autor não dispõe de qualquer título hábil para proceder à correta escrituração.

Na situação específica posta nos autos, a pluralidade de opções previstas na legislação vigente para regularização do imóvel não é excludente, ainda que uma ou outra possibilidade seja mais ou menos demorada, ou mais ou menos custosa.

A propósito do tema, cabe menção ao trecho elucidativo do voto do D. Corregedor Geral da Justiça, Des. Francisco Eduardo Loureiro, nos autos da Apelação Cível 1001336-27.2024.8.26.0472, julgada pelo E. Conselho Superior da Magistratura em 28.08.2024:

Não se desconhece o teor do art. 13, § 2º, do Provimento CNJ nº 65/2017, que impede a utilização da usucapião como alternativa à correta escrituração das transações, com burla aos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários. No caso concreto, porém, alega a apelante preencher os requisitos da usucapião pleiteada, afirmando, inclusive, ter justo título para o exercício da posse sobre o imóvel ao longo do tempo. (…) Em outras palavras, verificadas, em tese, a presença dos requisitos da usucapião e a ausência de qualquer das causas que obstem, suspendam ou interrompam a prescrição aquisitiva, não se pode cogitar de burla ao sistema notarial e registral, tampouco de evasão fiscal. Nesse cenário, porque a possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa não impede o reconhecimento da prescrição aquisitiva em favor do apelante, desde que comprovado o preenchimento dos requisitos legais da modalidade da usucapião eleita, o óbice apresentado pelo Oficial de Registro deve ser afastado.“.

Neste mesmo sentido, existem precedentes no C. Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO – ANUÊNCIA EM RELAÇÃO A UMA DAS EXIGÊNCIAS FORMULADAS – DÚVIDA PREJUDICADA – APELAÇÃO NÃO CONHECIDA – ANÁLISE DA EXIGÊNCIA IMPUGNADA A FIM DE ORIENTAR FUTURA PRENOTAÇÃO – POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DO IMÓVEL DE MANEIRA DIVERSA À USUCAPIÃO NÃO IMPEDE A DECLARAÇÃO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA POR AÇÃO JUDICIAL OU PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO NAS HIPÓTESES EM QUE OS PRESSUPOSTOS LEGAIS ESTEJAM RIGOROSAMENTE CUMPRIDOS – USUCAPIÃO QUE A UM SÓ TEMPO VISA A CONVERSÃO DA POSSE EM PROPRIEDADE E TAMBÉM SANAR A AQUISIÇÃO DERIVADA DEFEITUOSA – PRECEDENTES DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA – RECUSA INDEVIDA QUANTO AO PROCESSAMENTO DO PEDIDO.” (TJSP; Apelação Cível 1001336-27.2024.8.26.0472; Relator: Francisco Loureiro (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Porto Ferreira – 2ª Vara; Data do Julgamento: 29/08/2024; Data de Registro: 01/09/2024)

“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – INDEFERIMENTO DE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL PELA INSUFICIÊNCIA DO TEMPO DE POSSE PRÓPRIA DOS REQUERENTES – ACCESSIO POSSESSIONIS – USUCAPIÃO QUE PODE SER EXCEPCIONALMENTE UTILIZADA PARA SANAR VÍCIOS DA PROPRIEDADE OU DE OUTROS DIREITOS REAIS – PRECARIEDADE DA DESCRIÇÃO TABULAR E CONSOLIDAÇÃO DE DESMEMBRAMENTOS IRREGULARES QUE AFASTAM A VIA DA RETIFICAÇÃO – POSSIBILIDADE DA ACESSÃO DO TEMPO DE POSSE DO ANTECESSOR PROPRIETÁRIO A FIM DE VIABILIZAR A TRANSMISSÃO DO DOMÍNIO – RECURSO PROVIDO.” (TJSP; Apelação Cível 1006252-41.2023.8.26.0278; Relator: Francisco Loureiro (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Itaquaquecetuba – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/08/2024; Data de Registro: 28/08/2024)

“Usucapião – Procedimento administrativo – Direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo – Recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião extrajudicial.” (TJSP; Apelação Cível 1004047-07.2020.8.26.0161; Relator: Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Diadema – 1ª Vara Julgamento: 02/02/2021; Data de Registro: 05/02/2021).

Em suma, uma vez que a possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa não impede o reconhecimento da prescrição aquisitiva em favor do requerente, desde que comprovado o preenchimento dos requisitos legais da modalidade da usucapião eleita, o indeferimento prematuro do procedimento pelo Oficial comporta ser reformado.

Diante do exposto, Julgo Improcedente a dúvida suscitada, para afastar a exigência de aditamento do requerimento de usucapião extrajudicial, determinando o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá com o procedimento extrajudicial nos termos do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos e itens 416 a 425, Cap. XX, das NSCGJ.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 03 de junho de 2025.

Renata Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 04.06.2025 – SP)