1ª VRP|SP: Reconhecimento da união estável após a morte de companheira, na escritura de partilha, conforme item 113 do Capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça – Efeitos ex tunc – Comunicação dos bens adquiridos na constância da convivência, mesmo que declaradas proporções distintas na condição de solteiros – Partilha sobre a totalidade do bem, com meação ao companheiro e divisão do restante entre os herdeiros – Dúvida improcedente, afastando-se o óbice ao registro.

Processo 1035377-16.2017.8.26.0100

Dúvida

Registro de Imóveis

D. D. M.

Reconhecimento da união estável após a morte de companheira, na escritura de partilha, conforme item 113 do Capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça – Efeitos ex tunc – Comunicação dos bens adquiridos na constância da convivência, mesmo que declaradas proporções distintas na condição de solteiros – Partilha sobre a totalidade do bem, com meação ao companheiro e divisão do restante entre os herdeiros – Dúvida improcedente, afastando-se o óbice ao registro.

Vistos.

Trata-se de dúvida inversa suscitada por D. D. M. em face do Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital, após negativa de registro de escritura de partilha dos bens em razão do falecimento de sua companheira, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 155.398 na citada serventia.

O óbice se deu em razão do imóvel ter sido adquirido em 2009 por F. S. A. e D. D. M., ambos solteiros, na proporção de 80% e 20%, respectivamente. Como no título o imóvel foi partilhado em sua totalidade, exigiu o Oficial fosse retificada a escritura para constar a partilha de 80% do bem, que era de propriedade da de cujus.

O suscitante aduz que a exigência é descabida, pois uma vez reconhecida extrajudicialmente a união estável por todos os herdeiros, teria havido a comunicação da propriedade, tendo sido a partilha realizada sob este fundamento, com a meação do imóvel e divisão do restante entre os herdeiros. Ainda, aduz que a nota devolutiva não cumpriu com as exigências de informação previstas nas Normas da Corregedoria, requerendo a tomada das providências cabíveis. Juntou documentos às fls. 09/95.

O Oficial respondeu às fls. 100/102, com documentos às fls. 103/152. Informa que, uma vez que o imóvel foi adquirido na proporção de 80% e 20% a cada um dos proprietários na condição de solteiros, pois não mencionaram a existência de união estável, a partilha não poderia ser realizada como foi, devendo ser retificada. Alternativamente, também poderia ser retificada a escritura de aquisição do imóvel, para constar que viviam em comunhão.

O Ministério Público opinou às fls. 159/162 pela procedência da dúvida.

Às fls. 164/174, o suscitante manifestou-se sobre a fundamentação do D. Promotor.

Decisão de fl. 189 requereu ao Oficial informações acerca da formalidade da nota devolutiva, o que foi respondido às fls. 184/188, em que aduz que o motivo da devolução seria “fático e não propriamente jurídico”, razão pela qual não seria aplicável o disposto nas Normas de Serviço, que exigem fundamentação legal da exigência. Aduz que o suscitante teria encaminhado e-mail funcional no qual concordou com os termos da dúvida, não havendo o que acrescentar na nota devolutiva.

Resposta do suscitante às fls. 191/193.

É o relatório. Decido.

Apesar das fundamentadas razões apresentadas pelo Oficial e pelo D. Promotor, o entrave deve ser afastado. De fato, consta das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, em seu Capítulo XIV, o item 113, nos seguintes termos:

”113. A meação de companheiro pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados na herança absolutamente capazes, estejam de acordo.”

E, em estrito cumprimento do acima exposto, os herdeiros e interessados, na escritura de fls. 11/18, reconheceram o status de companheiro e companheira do ora suscitante e da falecida, com início em 10/03/1991.

O efeito de tal reconhecimento é que o bem, que antes era dividido em partes ideais em condomínio, passou a pertencer, em sua totalidade, a ambos os companheiros, em mancomunhão.

Veja-se que tal reconhecimento post mortem pelos herdeiros é permitido pela citada Norma de Serviço, para os fins de conceder meação ao companheiro supérstite.

E, uma vez havido tal reconhecimento, os óbices aqui apresentados restam superados. Em primeiro lugar, vê-se preservada a continuidade registrária. Há um efeito ex tunc advindo do ato dos herdeiros, de modo que a união estável passa a produzir efeitos desde seu início, no ano de 1991.

Se o bem foi adquirido na condição de solteiros em 2009, mas reconheceu-se que estavam os adquirentes, já nesta época, em união estável, a consequência é que o bem passa a comunicar-se, integrando o patrimônio comum dos conviventes em sua totalidade, ainda mais porque não houve formalização da união estável, aplicando-se o regime da comunhão parcial de bens, conforme art. 1.725 do Código Civil.

Se é este o regime de bens aplicável, e se adquiriram o bem na condição de companheiros, então o imóvel faz parte do patrimônio comum dos conviventes, sendo ambos proprietários de 100% do bem, que passará a ser partilhado.

Neste sentido:

”Aplica-se à união estável havida entre o falecido e [a companheira supérstite] o regime de bens da comunhão parcial nos termos do Art. 1.725 do Código Civil, o qual é conforme previsões normativas anteriormente vigentes, bem como, entendimento jurisprudencial majoritário. Essa previsão determina a formação de uma comunhão de direitos entre os conviventes, assim há uma universalidade de direitos relativamente ao patrimônio constituído na união. (…) Deste modo, havendo universalidade de direitos em relação aos bens que compõem a união estável, bem como aos que integram a herança, é necessário inventariar a totalidade do patrimônio (comum) e proceder sua partilha” (Apelação Cível nº 0000974-65.2011.8.26.0062, Rel. José Renato Nalini, j. 27/07/12)

Não há qualquer problema em dizer que, mesmo que se declararam solteiros à época da compra, agora constar que estavam em união estável: como se sabe, por muitos anos apenas eram reconhecidos os estados civis de solteiro, casado, separado, divorciado ou viúvo. Não era aceita a declaração do estado civil “em união estável”, condição que vem sendo reconhecida apenas mais recentemente, inclusive constando em escrituras públicas.

Ora, não podendo se declarar conviventes, declararam-se solteiros, sem prejuízo a possibilidade de reconhecimento futuro da existência da união estável quando adquiriam o bem, havendo assim a comunicação. Como dito, não importa que tal reconhecimento seja feito após a morte de um deles, vez que há permissão normativa para que seja realizado pelos herdeiros em comum acordo.

Ainda, a cadeia lógica do registro fica preservada. Inicialmente em condomínio na proporção de 80% e 20%, reconheceu-se a união estável, passando ambos a serem proprietários de 100% do bem. Com a morte de um deles, é feita a partilha, recebendo o supérstite 50% em razão da meação, sendo os 50% restantes partilhados entre os demais herdeiros, podendo ser incluído entre eles também o companheiro sobrevivente, nos termos da legislação sucessória.

No caso concreto, o bem passou a pertencer na sua totalidade ao suscitante apenas em razão de cessões de direitos sucessórios ocorridos na partilha, mas consta do título que, antes de tal cessão, a partilha foi feita conforme acima descrito: recebida a meação do suscitante e partilhada a meação correspondente a de cujus.

Vê-se, portanto, superada a preocupação do Oficial à fl. 185, quando diz que “se Décio já tinha 20%, ao receber mais 100%, ficaria com 120%”. Como explanado acima, com o reconhecimento da união estável, Décio não recebeu 100% do bem somado a sua parte ideal de 20%. Este 1/5 do bem deixou de ser de sua propriedade exclusiva, assim como os 4/5 de Fátima, passando a totalidade do bem ao patrimônio comum, com a partilha realizada partindo desta situação.

A questão é resolvida quando se considera que a situação é análoga a um bem pertencente a cônjuges em comunhão parcial: há a meação e o monte partilhável. Não há somas de partes ideais, mas a comunicação destas e posterior partilha.

Em outras palavras, Décio recebeu 100% do imóvel, 50% em meação e 50% em herança. Não recebeu 100% como herança, somados aos 20% de que já era proprietário. Quanto ao art. 5º da Lei 9.278/96, tal norma diz que o bem passa a pertencer em condomínio, na proporção das partes ideais estabelecidas pelos conviventes. Ocorre que, com o advento do Código Civil e o entendimento de que o regime de bens do casamento é aplicável à união estável, não há que se dizer em partes ideais e em condomínio: reconhecido o início da união estável antes da aquisição do bem e aplicável a comunhão parcial, há a comunicação do imóvel, que passa a pertencer 100% a ambos os conviventes, não havendo condomínio.

Ainda que tenham os conviventes adquirido o bem em proporção díspare, o reconhecimento ao direito à meação, conforme o item 113 das NSCGJ, importa na comunicação das partes ideais ao patrimônio comum destes. Ao adquirir o bem em proporções diversas, presume-se a propriedade particular de cada parte ideal, sendo proprietários da totalidade em condomínio.

Aqui, com a concordância de todos os herdeiros e interessados – o que afasta qualquer prejuízo a terceiros – tal presunção ficou afastada, pois foi reconhecida a comunicação do bem para fins de meação, que deixa de ter condôminos e passa a ter proprietários de sua totalidade em mancomunhão.

Ora, só assim se poderia dar aplicação a mencionada norma da corregedoria, pois não se poderia ver reconhecido direito a meação sem o reconhecimento de que o bem se comunicou ao patrimônio comum.

Neste sentido, já decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura que, uma vez que todos os herdeiros reconheceram a comunicação, não cabe ao registrador questioná-la, in verbis:

”[A]s duas únicas interessadas, maiores e capazes, (compareceram) perante o Tabelião e, consensualmente, realiza(m) a partilha com base no pressuposto de que todos os imóveis foram adquiridos na vigência de tal união, com comunicação. Deveras, foi esta a posição assumida pela filha comum dos conviventes e por sua mãe, companheira sobrevivente do de cujus. Logo, descabe questioná-la, embora ressalvados, como ocorreria em qualquer outra hipótese de sucessão, eventuais direitos de terceiros” (Apelação Cível nº 1.206-6/0, Rel. Munhoz Soares, j. 30/03/10)

Por fim, cumpre colacionar o exposto na sentença prolatada no Processo nº 504/91, desta Primeira Vara de Registros Públicos, pelo M.M. Juiz Marcelo Martins Berthe, em caso análogo, em que se discutia direitos de concubina falecida sobre o bem, com concordância do proprietário e dos demais herdeiros:

”Embora sejam sempre norteadas pelo rigor da forma, não podem (as normas registrais) passar ao largo dos fatos, desprezando a realidade, em nome de uma pseudo-segurança. Quando, como no caso, não se vislumbra prejuízo a terceiros, nem a qualquer princípio registrário; e sendo possível a superação do óbice formal como se viu, não há porque deixar de atender aos legítimos interesses de todas as partes envolvidas. Não se justifica a forma, pela forma apenas. Aquela só tem cabimento no superior interesse público, que no caso não será afrontado. Verificado isso, considerando a excepcionalidade e as peculiaridades de cada caso, cabe ao juiz deliberar pela solução mais adequada, de modo que não se alcance desfecho iníquo (…)”

De todo o exposto, fica superado o óbice. Apenas para esclarecimento quanto ao princípio da continuidade, deve o Oficial realizar único registro, em que conste que do título:

a) foi reconhecida a união estável entre os proprietários à época da aquisição,

b) com isso, o bem passou a pertencer a ambos em sua totalidade e

c) nesta condição, e com a morte de Fátima, foi partilhado conforme consta da escritura.

Finalmente, resta a questão atinente as formalidades da nota devolutiva. Consta do Capítulo XX das NSCGJ:

”40.1. A nota de exigência deve conter a exposição das razões e dos fundamentos em que o Registrador se apoiou para qualificação negativa do título, vedadas justificativas de devolução com expressões genéricas, tais como “para os devidos fins”, “para fins de direito” e outras congêneres.”

Da nota devolutiva, constou apenas:

”Retificar a escritura para constar que está sendo partilhado 80% [do bem]”

Em primeiro lugar, não há reprimenda a ser feita com relação ao óbice apresentado per se, tendo em vista partir da cautela do Oficial ao realizar o registro, além de ser amplamente justificável perante a legislação vigente, conforme constou do presente procedimento, apesar de restar superado por conta desta sentença.

Não obstante, da forma em que constou da nota devolutiva, nenhum esclarecimento é feito com relação às razões da exigência. O dever de fundamentação está claramente exposto nas Normas de Serviço.

Por óbvio, não se pode exigir que a nota devolutiva contenha ampla discussão teórica e legal das razões da recusa de registro. Ainda assim, deve ser dada ao menos alguma justificativa, para que o apresentante entenda o fundamento da recusa do título.

Do que se lê no presente caso, o Oficial apenas deu a solução para que o óbice fosse superado, e não a justificativa para sua oposição. Nem se diga que os e-mails juntados demonstram a compreensão do apresentante, pois este apenas procurou saber como melhor solucionar a pendência, nunca tendo tido a oportunidade para entender as razões para tal, que deveriam constar da nota.

Quando instado a se manifestar sobre a questão, se vê que o Oficial, diante da inconformidade do suscitante, passou a atacá-lo pessoalmente, ao denunciar o uso de e-mail funcional e a escolha de advogado que teria errado ao assisti-lo na escritura.

Em nenhum momento, contudo, explica porque deixou de seguir o disposto nas normas de serviço. Assim, conclui-se que o Oficial deixou de observar o disposto no item 40.1 das NSCGJ.

Por outro lado, trata-se de erro pontual, pois não há histórico de qualquer outra reclamação quanto as demais notas devolutivas apresentadas por ele, além de se tratar de falta de baixa gravidade, pois não trouxe ao apresentante qualquer prejuízo, ainda mais se considerado que este foi capaz de interpôr a presente dúvida inversa, com posterior afastamento do óbice.

Destarte, não há que ser tomada qualquer medida disciplinar, devendo apenas o Oficial atentar-se para que, em suas notas devolutivas, haja uma mínima fundamentação quanto ao seu entendimento.

Do exposto, julgo improcedente a dúvida inversa suscitada por D. D. M. em face do Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital, afastando o óbice apresentado.

Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

(DJe de 14.09.2017 – SP)