2ª VRP|SP: Pedido de providências – Inventário extrajudicial – Recusa de lavratura por procurações emitidas há mais de 90 dias – Norma das NSCGJ que fixa prazo de validade do mandato – Inexistência de previsão legal para limitação temporal, mas prevalência do caráter vinculante da norma administrativa no âmbito extrajudicial – Impossibilidade de flexibilização pelo juízo corregedor permanente – Regularidade da atuação da tabeliã – Ausência de responsabilidade funcional – Indeferimento do pedido e arquivamento dos autos, com remessa de cópia à Corregedoria Geral da justiça para eventual revisão normativa.
Processo nº 1045693-54.2025.8.26.0053
Pedido de Providências
Direitos da Personalidade
A.M. – M.G.M.
Juiz(a) de Direito: Marcelo Benacchio
Vistos.
Trata-se de pedido de providências formulado por A. M. e M. G. M., que se insurgem em face da negativa imposta pela Senhora 22ª Tabeliã de Notas desta Capital que negou a lavratura de Escritura Pública de Inventário em razão de que as Procurações apresentadas pelas interessadas excederam o prazo de 90 (noventa) dias de emissão.
Solicitam as Senhoras Requerentes que este Juízo autorize a dilação do prazo inicialmente estabelecido, sustentando que inexiste, no ordenamento jurídico, norma legal que limite, de forma objetiva e decisiva, o prazo de validade de procuração pública lavrada no exterior, desde que o instrumento atenda a todos os demais requisitos formais e materiais de legalidade e autenticidade exigidos para sua utilização em território nacional.
Alegam que, preenchidas tais condições, inclusive quanto à tradução juramentada, apostilamento e registro, não haveria óbice jurídico para o reconhecimento da eficácia do mandato além do prazo usualmente praticado, motivo pelo qual pleiteiam o deferimento da prorrogação solicitada.
A Senhora 22ª Tabeliã de Notas revisitou o tema da validade de Procurações na seara extrajudicial, noticiando que a questão foi mais de uma vez analisada pelas instâncias corregedoras.
Especialmente, destacou decisão pelo CNJ (processo nº 0007885-89.2023.2.00.0000) no sentido de que a validade do instrumento de mandato deve ser analisada caso a caso, não sendo exato o estabelecimento de termo temporal fixo ou a rejeição do ato pelos Delegatários pelo simples decurso do tempo.
Por fim, ressaltou que compreende possível o aceite do ato notarial em questão, mas que não dispõe, por si só, de autonomia para autorizar a dilação de prazo requerida (fls. 50/58).
A parte interessada tornou aos autos para reiterar os termos de seu pedido inicial (fls. 61/63).
O Ministério Público se manifestou pelo deferimento do pedido, no entendimento de que a jurisprudência do CNJ é suficiente para autorizar a dilação de prazo requerida (fls. 67/69).
É o relatório.
Decido.
Cuidam os autos de pedido de providências formulado por A. M. e M. G. M. em face da Senhora 22ª Tabeliã de Notas desta Capital.
O cerne da presente demanda recai sobre a existência de expressa previsão, pelas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, quanto à limitação temporal da validade da Procuração (item 42, “c”, do Cap. XVI), em 90 (noventa) dias, a contar de sua emissão.
Pois bem.
A Procuração, seja ela pública ou privada, formaliza o Contrato de Mandato, tendo este sua origem e validade amparadas no princípio da autonomia privada, expressão da autodeterminação do indivíduo também denominada autonomia da vontade, bem como nos direitos fundamentais da pessoa humana, consagrados constitucionalmente (Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: contratos, volume 3, 2. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. P. 13/14 e 190/200).
A concessão de mandato se trata de prerrogativa inerente à esfera de liberdade jurídica do particular, que detém a faculdade de, por ato voluntário, constituir representante para a prática de negócios jurídicos em seu nome (Op. Cit, parte geral, volume 1, P. 192).
Tais direitos, de natureza essencial e com status de garantias fundamentais, somente podem sofrer restrições ou limitações quando assim previsto de forma expressa em norma legal emanada do Poder Legislativo, isto é, por lei formalmente editada pelos representantes eleitos pelo povo.
Nesse sentido, inexistindo previsão legal que imponha restrição específica à duração ou eficácia de Procuração que atenda aos requisitos de legalidade e autenticidade, não se justificaria, em tese, a imposição de limitação temporal não prevista no ordenamento jurídico.
Com efeito, verifica-se que não há, seja na Constituição Federal, seja, de forma mais específica, no Código Civil, qualquer dispositivo que estabeleça limitação à validade do Mandato pelo simples decurso do tempo.
Ao contrário, o artigo 682 do referido diploma legal elenca, de maneira taxativa, as hipóteses em que o mandato se extingue, não contemplando, dentre elas, a perda de eficácia por mera fluência temporal, salvo se assim estipulado pelas partes ou em razão da natureza do ato (art. 682, IV, CC).
Desse modo, em nossa compreensão, ausente previsão legal nesse sentido, não se mostraria juridicamente admissível impor prazo de validade ao Instrumento de Procuração apenas com fundamento em critério temporal abstrato e não previsto expressamente no ordenamento.
Dentro desse contexto, entendemos mais adequado que a análise quanto à pertinência do aceite de Procuração Pública não se restrinja de forma mecânica ou exclusiva ao prazo de sua emissão.
Tal avaliação deve, ao revés, pautar-se na cautela e na prudência que são inerentes à atividade qualificadora exercida pelos Delegatários de Serventias Extrajudiciais, observando-se a análise individualizada de cada caso concreto, de modo a aferir a validade, a autenticidade e a atualidade das informações constantes do instrumento.
Esse entendimento, inclusive, encontra respaldo na supracitada decisão do Conselho Nacional de Justiça (processo nº 0007885-89.2023.2.00.0000), que reconhece a necessidade de abordagem casuística e criteriosa, evitando-se restrições automáticas não previstas em lei e assegurando-se a adequada proteção tanto da segurança jurídica quanto dos direitos fundamentais das partes envolvidas.
Cumpre ainda destacar a natureza jurídica das normas editadas pela Corregedoria Geral da Justiça, as quais se caracterizam como atos administrativos de natureza normativa, destinados a regulamentar e orientar a execução dos serviços notariais e de registro, bem como a uniformizar procedimentos no âmbito de sua atuação fiscalizatória.
Tais atos, contudo, não possuem hierarquia equivalente à lei em sentido formal, razão pela qual não poderiam, em tese, criar direitos, obrigações ou restrições que extrapolem ou contrariem o que dispõe o ordenamento jurídico, sob pena de violação ao princípio da legalidade.
Não obstante o todo argumentado, cumpre destacar que as normas editadas pela Corregedoria Geral da Justiça possuem caráter mandatório no âmbito de sua competência normativa e fiscalizatória, devendo ser observadas em sua integralidade pelas serventias extrajudiciais e pelas Corregedorias Permanentes.
No caso em análise, o item normativo examinado não admite gradação ou cumprimento parcial de seus requisitos de validade; ao contrário, estabelece de forma objetiva e taxativa que o prazo de validade da procuração é de 90 (noventa) dias, devendo tal disposição ser atendida na exata medida em que foi prevista – nem mais, nem menos.
Nesse sentido, como leciona Robert Alexy, as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos (Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros. 2008. P. 91).
Assim, o item normativo cuja flexibilização se pretende não ostenta natureza principiológica, que se caracteriza por permitir diferentes graus de satisfação conforme as possibilidades jurídicas e fáticas do caso concreto.
Ao revés, trata-se de regra dotada de caráter imperativo, cuja aplicação não se submete a ponderações ou relativizações, sendo indevida a interpretação que permita seu afastamento ou mitigação fora das hipóteses expressamente autorizadas pelo próprio texto normativo (Op. Cit., P. 86/91).
Por conseguinte, não obstante os argumentos deduzidos, favoráveis à desconsideração do prazo imposto, indefiro o pedido formulado, devendo a Senhora Titular, por ora, se ater ao cumprimento das NSCGJ, às quais está submetida, assim como este Juízo Corregedor Permanente.
Noutro turno, a negativa pela Senhora Titular se cuida de regular exercício de seu dever jurídico, não se verificando a ocorrência de falha na prestação do serviço extrajudicial ou ilícito administrativo pela Notária, de modo que não vislumbro responsabilidade funcional apta a ensejar a instauração de procedimento administrativo, no âmbito disciplinar.
Nessas condições, à míngua de providência censório-disciplinar a ser adotada, determino o arquivamento dos autos.
A despeito do indeferimento do pedido, servem os argumentos deduzidos, quanto à pertinência de supressão de tal mandamento, como opinião a ser submetida à elevada apreciação do órgão hierarquicamente superior, a E. CGJ, para ciência e eventuais providências.
Assim, encaminhe-se cópia integral dos autos, à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, por e-mail, servindo a presente como ofício.
Ciência à Senhora Delegatária e ao Ministério Público.
P.I.C.
São Paulo, 13 de agosto de 2025.
(DJEN de 14.08.2025 – SP)