1ª VRP|SP: Dúvida registral – Registro de escritura de compra e venda com renúncia de usufruto – Exigência de complementação do ITCMD (1/3) prevista no art. 31, § 3º, do Decreto estadual nº 46.655/2002 – Impossibilidade – Ausência de previsão na Lei estadual nº 10.705/2000 – Entendimento pacificado da Corregedoria Geral da Justiça de que a extinção ou renúncia de usufruto não configura fato gerador do imposto – Afastamento do óbice registral – Dúvida julgada improcedente.
Sentença
Processo nº: 1101980-90.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 4º Oficial de Registro de Imóveis da Capital
Suscitado: One Di 42 Empreendimento Imobiliário SPE Ltda
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 4º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de One Di 42 Empreendimento Imobiliários SPE Ltda., diante de negativa em se proceder ao registro de escritura de venda e compra envolvendo os imóveis objetos das matrícula n. 191.402 e n. 191.406 daquela serventia.
O Oficial informa que foi apresentada a escritura de venda e compra, lavrada pelo 13º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 5.628, págs. 73/77), por meio da qual a parte suscitada adquire os imóveis objetos das matrículas n. 191.402 e n. 191.406 da serventia; que por esse mesmo instrumento, Roberto Gentil Ferreira da Silva e Leila de Almeida Ferreira da Silva, representados pela suscitada, renunciaram ao usufruto vitalício que detém sobre os imóveis; que o usufruto se deu por ocasião da doação da nua-propriedade desses bens para Roberto de Almeida Ferreira da Silva e Liliana de Almeida Ferreira da Silva Marçal, oportunidade em que o ITCMD foi recolhido apenas sobre 2/3 do valor do imóvel, e a parcela remanescente do tributo, 1/3, foi postergada para recolhimento quando da consolidação da propriedade em nome dos nu- proprietários; que por isso, o título foi qualificado negativamente, exigindo-se a comprovação do recolhimento da parcela restante do imposto, diante do previsto no artigo 289 da Lei de Registros Públicos e artigo 31, 3º, 2, do Decreto Estadual n. 46.655/2002 (fls. 01/02).
Documentos vieram às fls. 03/85.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu que os imóveis telados estavam gravados com usufruto para Roberto Gentil Ferreira da Silva e Leila de Almeida Ferreira da Silva; que, em razão disso, na escritura de compra e venda, lavrada pelo 13º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 5.628, págs. 73/77), constou a renúncia ao usufruto assinada pelos, então, usufrutuários; que apresentou o título aquisitivo junto ao 4º Registro de Imóveis de São Paulo, sendo surpreendida com nota de devolução, condicionando o registro do título à complementação do recolhimento do ITCMD em razão da renúncia do usufruto; que a exigência contraria entendimento pacificado da E. Corregedoria Geral de Justiça, que considera ilegal a Decisão Normativa CAT n. 03/2010 da Secretaria Estadual da Fazenda, por estar fundamentada no Decreto n. 46.655/2002, que extrapolou os limites da competência legislativa, impondo tributo não previsto na Lei Estadual n. 10.705/2000 e que, nesses termos, requer o registro do título, afastando-se a exigência (fls. 86/90). Juntou documentos (fls. 91/144).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pelo afastamento do óbice (fls. 148/150).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
O Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No mérito, o pedido é improcedente, pelos seguintes fundamentos.
No caso, o dissenso envolve a necessidade de recolhimento do ITCMD complementar (1/3), em virtude da extinção do usufruto de Roberto Gentil Ferreira da Silva e Leila de Almeida Ferreira da Silva, representados pela suscitada (fls. 19/20).
Sobre a transmissão de bem por doação incide o ITCMD, nos termos da Lei Estadual n. 10.705/2000, artigo 2º, § 5º e artigo 9º, § 2º, itens 3 e 4 c/c artigo 1º, § 5º do Decreto 46.655/2002:
“Artigo 2º – O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
I – por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória;
II – por doação.
§ 1º – Nas transmissões referidas neste artigo, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários
(…)
§ 5º – Estão compreendidos na incidência do imposto os bens que, na divisão de patrimônio comum, na partilha ou adjudicação, forem atribuídos a um dos cônjuges, a um dos convive tes, ou a qualquer herdeiro, acima da respectiva meação ou quinhão”.
“Artigo 9º – A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido
(…)
§ 2º – Nos casos a seguir, a base de cálculo é equivalente a: (…)
3.1/3 (um terço) do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato não oneroso;
4. 2/3 (dois terços) do valor do bem, na transmissão não onerosa da nua- propriedade”.
A base de cálculo do imposto, portanto, é equivalente a um terço do valor do bem na instituição do usufruto por ato não oneroso e dois terços do valor do bem na transmissão não onerosa da nua-propriedade.
Entretanto, somente houve pagamento do tributo relativo à doação da nua-propriedade, optando a parte pelo recolhimento diferido da parcela correspondente ao futuro cancelamento do usufruto (1/3), como autoriza o artigo 31, § 3º, item 2, do Decreto Estadual n. 46.655/2002.
Referido dispositivo regulamentou o recolhimento do ITCMD, permitindo que, na hipótese de doação com reserva de usufruto em favor do doador, como ocorre na espécie, o imposto sobre o valor do usufruto seja recolhido por ocasião da consolidação da propriedade plena em favor do nu-proprietário.
O recolhimento sobre o valor integral da propriedade antes da lavratura da escritura de doação é facultativo, sendo permitido o adiamento do recolhimento da parcela correspondente ao futuro cancelamento do usufruto (artigo 31, § 3º, itens 2 e 3, do Decreto Estadual n. 46.655/2002).
Todavia, a orientação firmada pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo nos casos análogos é no sentido de que a legislação paulista não prevê a incidência do ITCMD quando da consolidação da propriedade plena ou quando da extinção do usufruto.
Assim, a complementação do ITCMD prevista no artigo 31 do Decreto n. 46.655/2002 caracteriza hipótese de incidência que não poderia ter sido criada por decreto regulamentar.
Nesse sentido:
“Registro de Imóveis – Averbação de cancelamento de usufruto pela morte da usufrutuária – Consolidação da propriedade em nome do nu- proprietário – Exigência do Sr. Oficial de complementação do ITCMD, por 1/3 do valor do bem, uma vez já ter havido recolhimento do tributo, por 2/3 do valor do bem, quando da instituição do usufruto – Exigência afastada pela MM. Juíza Corregedora Permanente – Consolidação da propriedade que não caracteriza hipótese de incidência do tributo – Precedente desta Corregedoria Geral – Decreto regulamentar nº 46.655/2002, que, na espécie, extrapola seus limites – Parecer pelo desprovimento do recurso.” (Processos 1057883-83.2017.8.26.0100, 1057875-09.2017.8.26.0100 e 1058147-03.2017.8.26.0100, Pareceres nºs 415/2017-E, 416/2017-E e 399/2017-E. Cor. Des. Pereira Calças, ap. em 06 e 07 de dezembro de 2017).
No parecer n. 399/2017-E, da lavra do MM. Juiz Assessor, Dr. Carlos Henrique André Lisboa, aprovado no processo de autos n. 1058147-03.2017.8.26.0100, tal posicionamento vem aclarado:
“A consolidação da propriedade não pode ser tida como transmissão decorrente de sucessão legítima ou testamentária e muito menos de doação. Por fim, o artigo 9º, § 2º, IV, da mesma Lei Estadual estabelece que, na transmissão não onerosa da nua propriedade, a base de cálculo do ITCMD é equivalente a 2/3 do valor do bem. Por outro lado, não há na Lei menção alguma à complementação desse valor por ocasião da consolidação da propriedade. Não há dúvida de que o artigo 31 do Decreto n° 46.655/2002, que regulamenta a Lei Estadual n° 10.705/2000, expressamente prevê a necessidade de complementação do ITCMD. por ocasião da consolidação da propriedade plena na pessoa do nu-proprietário. Essa hipótese de incidência, todavia, diante dos limites estabelecidos pela Constituição Federal (artigo 155, I, da CF) e do silêncio absoluto da Lei Estadual que o instituiu, não poderia ser criada por decreto regulamentar”.
Assim seguiram julgamentos mais recentes:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Averbação de cancelamento de usufruto, pela morte da usufrutuária – Consolidação da propriedade em nome do nu-proprietário – Exigência do Sr. Oficial de complementação do ITCMD sobre o valor de 1/3 dos bens – Reiterados precedentes desta Eg. Corregedoria Geral da Justiça no sentido de que a hipótese não caracteriza incidência do tributo – Necessidade de prestígio aos precedentes em prol da previsibilidade e segurança jurídica – Recurso desprovido.” (Processo 1120534-20.2018.8.26.0100, Parecer nº 357/2019-E, Corregedor Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, ap. em 22 de julho de 2019).
“Registro de Imóveis – Cancelamento de usufruto – Comprovação do recolhimento do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e de Doação – ITCMD incidente na diferença entre o valor total do imóvel e o valor que serviu como base de cálculo para a aquisição da nua- propriedade pela donatária – Hipótese de incidência não prevista na Lei Estadual nº 10.705/2000 – Ausência de transmissão da propriedade no cancelamento do usufruto – Precedentes da Corregedoria Geral da Justiça – Recurso provido.” (Processo 1005326-72.2020.8.26.0114, Parecer nº 410/2020-E, Corregedor Des. Ricardo Anafe, ap. em 25 de setembro de 2020).
Releve-se que a causa de cancelamento, renúncia ou morte do usufrutuário, como indicado nas ementas citadas, não altera a conclusão.
Destarte, em observância à posição superior no sentido de que não é possível exigir o pagamento de tributo sem lei que o institua, o óbice imposto pelo Registrador deve ser afastado.
Por fim, oriento o Oficial quanto à necessidade de observação do disposto no tem 39, inciso V, Cap. XX, das NSGCJ, devendo instruir os expedientes suscitados com certidão atualizada da(s) matrícula(s).
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 08 de agosto de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJEN de 11.08.2025 – SP)