1ª VRP|SP: Dúvida registral – Registro de instrumento particular de constituição de sociedade limitada unipessoal com integralização de capital mediante bem imóvel comum do casal – Cônjuge não sócio figura apenas como anuente – Regime da comunhão universal de bens – Necessidade de transferência da meação do cônjuge coproprietário à sociedade, não suprida por mera anuência – Exigência de escritura pública (art. 108 do CC) – Inaplicabilidade da dispensa prevista no art. 64 da lei nº 8.934/1994, por não se tratar de integralização de quotas próprias do cônjuge anuente – Manutenção do óbice – Dúvida julgada procedente.

Sentença

Processo nº: 1092996-20.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Edson de Miranda e outro

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Edson de Miranda e Marisa Duque Rodrigues de Miranda, diante de negativa em se proceder ao registro de instrumento particular de constituição de sociedade empresária por quotas de responsabilidade limitada unipessoal denominada MECC Participações Ltda., envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 93.034 daquela serventia.

O Oficial informa que o título foi apresentado para registro em 02/06/2025, tendo sido prenotado sob n. 469.116, e devolvido com exigências em 16/06/2025; que em 27/06/2025, o título foi novamente apresentado instruído com requerimento para suscitação de dúvida; que a exigência que repete os termos da nota de devolução anterior foi formulada nos seguintes termos: (i) trata-se de instrumento particular de constituição de sociedade empresária por quotas de responsabilidade limitada unipessoal denominada MECC Participações Ltda., constituída pelo único sócio Edson de Miranda, com cláusula de anuência de sua esposa Marisa Duque Rodrigues de Miranda; (ii) pelo referido instrumento, o sócio Edson de Miranda utilizou, para a integralização do capital social da sociedade empresária, o imóvel consistente no apartamento n. 122, localizado no 12º andar ou 17º pavimento do “Edifício Classique Klabin I”, Bloco A, integrante do “Condomínio Classique Klabin”, situado na Rua Ernesto de Oliveira, n. 400, no 9º Subdistrito – Vila Mariana, nesta Capital, matriculado sob o n. 93.034, no 1º RI; (iii) o imóvel é de propriedade de Edson Miranda e Marisa Duque Rodrigues de Miranda, casados sob o regime da comunhão universal de bens, conforme R.03/M.93.034, de 22/10/2002, na vigência da Lei n. 6.515/1977, nos termos da escritura pública de pacto antenupcial registrada sob n. 4.450, Livro n. 03, do 14º RI; que, tendo em vista o o caráter de titularidade de domínio, a transmissão do direito real de propriedade exige o título e o modo, pelo qual a transferência do imóvel se efetive, o que não é alcançado mediante simples anuência; (iv) nesse sentido, em recente julgado deste Juízo da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, decidiu que nos casos em que o cônjuge é coproprietário do bem imóvel conferido à sociedade, mas não figura como sócio, não basta a anuência, mas a efetiva transferência da propriedade de sua parte ideal à sociedade através de instrumento público, em atenção ao princípio da legalidade estrita; (v) assim, o interessado deverá formalizar a completa transmissão do imóvel mediante transferência, também, por parte de Marisa Duque Rodrigues de Miranda, por meio de escritura pública notarial.

O Oficial esclarece que a síntese da exigência formulada é a seguinte: para a transferência da titularidade de domínio do imóvel, o interessado deverá providenciar a lavratura de escritura pública, conforme previsto no artigo 108 do Código Civil, a fim de que a esposa efetive a transmissão de sua parte ideal do imóvel; que a anuência atende apenas o preceito do artigo 1647 do Código Civil que, como regra, em seu inciso I, exige autorização (anuência) do outro cônjuge para a prática de alguns atos, dentre eles, a alienação de imóvel de propriedade exclusiva; que, quando a redação do sobredito artigo usa o vocábulo “autorização”, leva a entender que quem vier a se apresentar no instrumento, para desta forma se manifestar, ali estará não como contratante transmitente, mas somente como interveniente anuente, pois nenhuma relação tem diretamente com o direito ali transmitido; que a exigência segue o entendimento adotado por esta Corregedoria Permanente sentença nos autos do processo de dúvida n. 1011958-83.2025.8.26.0100; que, portanto, o óbice deve ser mantido (fls. 01/04).

Documentos vieram às fls. 05/140.

Em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu que, no caso, a cônjuge do sócio, Marisa Duque Rodrigues de Miranda, comparece no contrato social como anuente, interveniente e administradora; que não é hipótese de inclusão de Marisa como sócia no contrato social da empresa MECC Participações Ltda., diante do regime de bens do casamento com o sócio Edson Miranda, e impedimento legal expresso contido no artigo 977 do Código Civil; que, conforme artigo 1.647, inciso II, do Código Civil, uma vez casados sob o regime da comunhão universal de bens, a autorização do outro cônjuge é suficiente para a transferência da propriedade do imóvel à sociedade empresária; que, por tais razões, requer a improcedência da dúvida, afastando-se o óbice registrário (fls. 07/12 e 142/152). Juntou documentos (fls. 153/191).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice registrário (fls. 194/196).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No Sistema Registral, vigora o princípio da legalidade estrita. Assim, quando o título ingressa para acesso ao fólio real, o Registrador perfaz a sua qualificação mediante o exame dos elementos extrínsecos e formais do título, de acordo com os princípios registrários e legislação de regência da atividade, devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

No mérito, a dúvida é procedente, senão vejamos.

No caso sub judice, o título apresentado consiste em certidão de inteiro teor expedida pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, atinente a instrumento particular de constituição de sociedade empresária por quotas de responsabilidade limitada unipessoal denominada MECC Participações Ltda., com capital social subscrito no valor de R$329.814,00, por meio do qual o único sócio Edson de Miranda, integralizou 100% de suas quotas ao capital social, no total de R$329.814,00, mediante transferência de um único bem imóvel objeto da matrícula n. 93.034 do 1º RI, “saindo do patrimônio pessoal de Edson de Miranda e de sua esposa” Marisa Duque Rodrigues de Miranda, pelo valor de transação de R$329.814,00, tendo como contribuinte municipal a inscrição n. 039.178.0215-5, e valor venal atribuído pela Municipalidade de São Paulo de R$1.161.567,00 (fls. 13/52).

O único sócio Edson de Miranda é casado com Marisa Duque Rodrigues de Miranda, sob o regime da comunhão universal de bens, na vigência da Lei n. 6.515/1977, a qual não é sócia e assinou o documento de constituição da sociedade limitada unipessoal como interveniente anuente.

Verifica-se da matrícula 93.034, que o imóvel consistente no apartamento n. 122, localizado no 12º andar ou 17º pavimento do “Edifício Classique Klabin I”, Bloco A, integrante do “Condomínio Classique Klabin”, situado na Rua Ernesto de Oliveira, n. 400, no 9º Subdistrito – Vila Mariana, nesta Capital, é de propriedade de Edson Miranda e Marisa Duque Rodrigues de Miranda, casados sob o regime da comunhão universal de bens, conforme R.03/M.93.034, de 22/10/2002, nos termos da escritura pública de pacto antenupcial registrada sob n. 4.450, Livro n. 03, do 14º RI (fls. 139/140).

É cediço que o artigo 1.667 do Código Civil dispõe que o regime da comunhão universal de bens importa a comunicação de todos os bens e dívidas dos cônjuges, exceto nas hipóteses do artigo 1.668. Assim, todos os bens formam um patrimônio comum do casal, fazendo parte de uma massa patrimonial, sendo que cada cônjuge torna-se meeiro dos bens do outro, ou seja, ambos são meeiros de todo o acervo, salvo as exceções previstas no artigo 1.668 do CC.

Deste modo, embora não haja óbice algum à transferência dos bens imóveis para o fim de integrar quota social, nos termos do disposto no artigo 167, inciso I, 32, da Lei de Registros Públicos, e por meio de instrumento particular, na situação concreta, o fato de o regime de bens do casamento do aludido sócio ser o da comunhão universal de bens – a transmissão do direito real de propriedade (exige o título e o modo) – reclama efetiva alienação, à sociedade constituída, da meação que cabe a Marisa Duque Rodrigues de Miranda sobre o imóvel em questão, e não a simples anuência por parte da cônjuge (a anuência nada mais é senão a prova de que um cônjuge não discorda da atuação do outro, mas não é modo de alienação), já que ela também é proprietária tabular do imóvel e não figura como sócia da sociedade empresária limitada unipessoal.

Neste ponto (título hábil), o artigo 108 do Código Civil preceitua: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país”.

De fato, a Lei n. 8.934/1994, ao dispor sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e atividades afins, admite a dispensa de escritura pública para fins de transmissão de bens móveis e imóveis para a pessoa jurídica – sociedade – em caso de integralização de quotas ou ações, para formar o capital social.

É exatamente o que estabelece o artigo 64, da Lei n. 8.934/1994 (nosso destaque): “A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital“.

Como fica evidente, a lei dispensa a escritura pública para os casos em que o próprio subscritor das quotas as integralize utilizando-se de seu bem imóvel. Veja-se: o próprio subscritor das quotas utiliza-se do seu bem imóvel para tornar-se sócio da sociedade ou aumentar o capital social da mesma, desde que, evidentemente, para fins de se tornar sócio ou ampliar sua participação na sociedade.

Na hipótese, somente se poderia cogitar de dispensa de escritura pública (art. 108, CC) para a transferência da titularidade do imóvel à sociedade, se a cônjuge do único sócio, a Sra. Marisa Duque Rodrigues de Miranda, também ostentasse a qualidade de sócia da sociedade e estivesse conferindo com a meação que lhe cabe sobre o imóvel objeto da matrícula n. 93.034, em pagamento (integralização) das suas próprias quotas sociais que houvesse subscrito.

Releva observar a situação consubstancia uma verdadeira alienação à sociedade constituída, uma vez que, a partir da integralização e subsequente ingresso do título no fólio real (registro) – transferência da titularidade de domínio – o imóvel será de propriedade da pessoa jurídica, e não mais do sócio.

Portanto, não basta que a cônjuge anua com a conferência de bens, pois é ela proprietária de parte do imóvel, ou seja, caso deseje integralizar as cotas do marido deverá transferir a sua parte da propriedade à sociedade através de instrumento público, conforme exige a lei civil.

Ademais, sendo a transmissão de imóveis matéria de ordem pública, de notável relevância, exige-se que a regra seja seguida com rigor, a fim de evitar fraudes e erros.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida julgada procedente. Recusa de registro de instrumento particular de constituição de sociedade, pelo qual um dos sócios, casado sob o regime da comunhão universal de bens, pretende a conferência de bens imóveis para integrar sua quotas sociais mediante mera anuência da mulher. Inviável o registro, em razão da necessidade de a mulher transferir a parte que lhe cabe e não apenas anuir, o que é possível somente por escritura pública, já que não é sócia e, portanto, não busca integrar quotas sociais, a exemplo de seu cônjuge. Sentença mantida. Recurso não provido.” (Apelação Cível nº 626-6/9, Comarca de Bauru, Rel. Gilberto passos de Freitas 22/02/2007).

A propósito, pertine menção a trecho do artigo jurídico da coleção “Doutrinas Essenciais: Direito Empresarial” – “Da integralização de quotas societárias com bens imóveis por sócio casado no regime da comunhão universal de bens”, de autoria da Tabeliã Ana Paula Frontini, que trata exatamente do precedente julgado acima citado:

“Não há dúvida de que, em se tratando de regime universal de bens, todas as quotas em uma sociedade, pertencentes a um dos cônjuges, comunicam-se ao outro, ou seja, passam a integrar o patrimônio do outro.

No presente caso, não é o fato do imóvel ser comum ao casal que gera a comunhão das quotas. Essa comunhão existirá de qualquer forma, em decorrência do regime patrimonial escolhido pelos cônjuges. Assim, a mera anuência serviria para a transferência de 50% do imóvel e não para a transferência da totalidade do mesmo. A integralização de quotas com imóvel comum ao casal demanda que os dois figurem como futuros sócios, ou que haja transferência por meio de negócio jurídico diverso da integralização (doação, venda, permuta, dação em pagamento) à sociedade. Pois bem, tendo sido estabelecida a necessidade de alienação lato sensu, a forma determinada por Lei para que esta ocorra é a escritura pública, salvo se incursa na hipótese de dispensa trazida pelo art. 108 do CC/2002 brasileiro (desnecessidade de escritura pública em negócios jurídicos sobre imóveis de valor até trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país). Outra não foi a exigência feita pelos julgadores de primeira e segunda instâncias. (…)

Os negócios jurídicos que envolvem bens imóveis historicamente são tratados com um amparo legal mais rígido e mais solene. Isto porque é inerente à sua natureza uma maior relevância e uma importância mais acentuada no âmbito social. Seja por envolver maior monta financeira, seja por envolver alguns dos direitos fundamentais das pessoas: direito à habitação, bem de família, propriedade etc.

Dessa forma o ordenamento jurídico sempre considerou imprescindível a realização dos negócios imobiliários na presença de (perante) um profissional do direito dotado de fé pública. (…) Segundo a Lei federal 8.935/1994 , que dispõe sobre os serviços notariais e de registro, o Tabelião é profissional do direito, dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial. (…)

Portanto, não há como evitar na integralização total de um bem imóvel por um dos cônjuges casado sob o regime da comunhão de bens que ocorra alienação da meação do não sócio por escritura pública, ou tornem-se ambos sócios da pessoa jurídica, podendo ocorrer nesta última hipótese integralização por instrumento particular.” (FRONTINI, Ana Paula. Da integralização de quotas societárias com bens imóveis por sócio casado no regime da comunhão universal de bens. In: Doutrinas Essenciais: Direito Empresarial, volume I, capítulo V. Arnoldo Wald (org.), Revista dos Tribunais, 2010, E-book. Disponível em: <https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/74 368138/v1/document/74416142/anchor/a-74416142>. Acesso em: 05 ago. 2025.)

Nesse quadro, irretocável a exigência formulada pelo Oficial, que fica mantida.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 05 de agosto de 2025.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 11.08.2025 – SP)