STF: Ementa: Recurso Extraordinário – Repercussão geral reconhecida – Direito Civil e Constitucional – Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica – Paradigma do casamento – Superação pela Constituição de 1988 – Eixo central do direito de família: deslocamento para o plano constitucional – Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) – Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias – Direito à busca da felicidade – Princípio constitucional implícito – Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político – Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos – Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares – União Estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (art. 226, § 4º, CRFB) – Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB) – Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva – Necessidade de tutela jurídica ampla – Multiplicidade de vínculos parentais – Reconhecimento concomitante – Possibilidade – Pluriparentalidade – Princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CRFB) – Recurso a que se nega provimento – Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. LUIZ FUX

RECTE.(S): A. N.

ADV.(A/S): RODRIGO FERNANDES PEREIRA

RECDO.(A/S): F. G.

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3º, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES.

1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem.

2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo.

3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade.

4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar- se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).

5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.

6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.

7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.

8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).

9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não- reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil (ADI nº. 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).

10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber:

(i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais,  (ii) pela  descendência  biológica ou (iii) pela afetividade.

11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser.

12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio).

13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.

14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina.

15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).

16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. LUIZ FUX

RECTE.(S): A. N.

ADV.(A/S): RODRIGO FERNANDES PEREIRA

RECDO.(A/S): F. G.

PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E PLURIPARENTALIDADE.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Senhora Presidente, egrégio Plenário, ilustre representante do Ministério Público, senhores advogados e demais presentes.

O caso ora em julgamento, seja qual for o resultado proclamado pelo colegiado, constituirá precedente essencial para a definição do estatuto constitucional das famílias, em especial a densificação conceitual de um dos componentes mais elementares dos direitos da personalidade: a filiação.

Admissibilidade do recurso extraordinário

A recorrida arguiu questões processuais preliminares atinentes à admissibilidade recursal que devem ser enfrentadas antes de se adentrar no mérito do recurso extraordinário, a saber: (i) a matéria constitucional discutida nesta sede não teria sido objeto de prequestionamento nas instâncias ordinárias (óbices das Súmulas 282 e 356 do STF); e (ii) haveria necessidade de reexame de fatos controvertidos e de provas produzidas nos autos (óbice da Súmula 279 do STF).

Primeiramente, quanto à arguição de falta de prequestionamento, ressoa inequívoco que a controvérsia sobre a prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica, à luz do artigo 226, caput, e outros dispositivos constitucionais, foi amplamente debatida nas instâncias ordinárias, como se verifica da simples leitura dos acórdãos proferidos pela Quarta Câmara de Direito Civil do TJSC, em sede de apelação, e pelo Grupo de Câmaras de Direito Civil do TJSC, em sede  de embargos infringentes. Nesse sentido, destaco os seguintes excertos desses julgados (grifos meus):

“Estabelece o Código Civil de 2002, em seu art. 1.603, que ‘a filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil’.

Ao tratar sobre a filiação, Luiz Edson Fachin registra que ‘a prova da filiação mencionada no art. 1.603 pode também sustentar a posse do estado de filho, fundada em elementos que espelham o nomem, a tractatio, e a fama (reputação). Por conseguinte, o termo de nascimento pode espelhar uma filiação socioafetiva’ (in Comentários ao novo Código Civil, Coord. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 89).

(…)

A Carta Magna estabelece, in verbis, que

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[…]

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

E o prefalado Luiz Edson Fachin, ao discorrer acerca da posse do estado de filho – com destaque para a paternidade sócio-afetiva -, afirma que

[…] o chamamento de filho, os cuidados na alimentação e na instrução, o carinho no tratamento (quer em público, quer na intimidade do lar) revelam no comportamento a base da parentalidade. A verdade sociológica da filiação se constrói. Essa dimensão da relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética que deveria pressupor aquela e serem coincidentes. Apresenta-se então a paternidade como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, ‘reside antes no serviço e amor que na procriação’ (in A tríplice paternidade dos filhos imaginários. Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Direito de Família.

Aspectos Constitucionais, Civis e Processuais. Teresa Arruda Alvim (coord.). Ed. RT, v. 2, 1995, p. 178/179).

(…)

Por isso, em que pese ter o vínculo de afetividade origem em registro cuja informação não corresponde à verdade biológica, ante a consolidação dos laços sentimentais/afetivos entre F. G. e I. G., o estado de filiação que esta última agora vindica em relação ao réu/apelante, não poderá ser reconhecido, simplesmente porque outro já se estabeleceu antes, com o pai registral, o qual não deverá ser desfeito.” (Apelação Cível 2011.027498-4)

“Não há, data venia, como se conceber que, diante da expressa vontade da embargante de desvendar a sua verdadeira ascendência genética, possa prevalecer no registro a paternidade sócio-afetiva iniciada por ignorância da verdade.

(…)

A dignidade da pessoa humana encontra proteção constitucional, sendo, inclusive, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição Federal).

E é a própria Constituição Federal que estabelece, expressamente (art. 227, § 6º), o princípio da igualdade entre os filhos, in verbis: ‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação’.

(…)

Dessa forma, não se pode negar o direito de todas as partes envolvidas em relações de filiação – genitores biológicos, afetivos e filhos – de ver respeitado tal princípio, porquanto, nas palavras de Claudete Carvalho Canezin, ’A dignidade constitui-se num fato primordial à formação da personalidade humana, sendo essencial ao relacionamento paterno-filial’ (CANEZIN, Claudete Carvalho. Da reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 8).” (Embargos Infringentes 2012.038525-9).

Fica claro, portanto, que não apenas a discussão jurídica dotada de repercussão geral foi travada nas instâncias ordinárias, mas também que o seu deslinde foi alcançado mediante fundamentação expressamente baseada nos preceitos constitucionais pertinentes, razão pela qual não há que se falar em ausência de prequestionamento.

No que diz respeito à alegação da ora recorrida de que incidiria, na espécie, o óbice da Súmula 279 do STF, saliente-se que todas as controvérsias relativas a fatos e provas, no presente caso, já foram devidamente equacionadas pelo tribunal de origem, remanescendo apenas a controvérsia relativa à prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica, matéria estritamente de direito.

Superadas essas questões preliminares, o recurso é tempestivo, preparado e apresenta preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, estando igualmente presentes os demais requisitos de admissibilidade.

Por tais motivos, deve ser conhecido o recurso extraordinário, passando-se ao exame do seu mérito, nos limites da questão constitucional de repercussão geral reconhecida pelo Plenário Virtual, sintetizados na ementa transcrita abaixo:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL.” (ARE 692.186 RG, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário Virtual, DJe de 21/02/2013)

Mérito do recurso extraordinário

Nos presentes autos, o recorrente sustenta a necessidade de preponderância da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica, com fundamento nos artigos 226, §§ 4º e 7º, 227, caput e § 6º, 229 e 230 da Constituição Federal. Cumpre definir, assim, nos casos em que há vínculo parental previamente reconhecido, quais os efeitos jurídicos da descoberta posterior da paternidade biológica.1

A Constituição de 1988 promoveu verdadeira revolução no campo do Direito de Família. Sabe-se que, sob a égide do Código Civil de 1916, a família era centrada no instituto do casamento, vínculo indissolúvel e objeto de especial proteção da lei. Era estabelecida vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, baseando-se a filiação na rígida presunção de paternidade do marido (pater is est quem nuptiae demonstrant). O paradigma de então não era nem o afeto entre os familiares, nem sequer a origem biológica, mas sim a presunção baseada na centralidade do casamento.

Ocorre que, com o passar dos anos, a sociedade evoluiu e novas formas de organização familiar à margem do casamento começaram a proliferar. Sociedades de fato, uniões estáveis, coabitações concubinárias, famílias monoparentais, entre outras estruturas familiares passaram a se tornar cada vez mais frequentes. Esse quadro é muito bem retratado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, ex-professor das universidades de Cambridge e London School of Economics:

Ao longo das últimas décadas, a Grã-Bretanha e outros países ocidentais passaram por mudanças nos padrões familiares, que seriam inimagináveis para gerações anteriores. A grande diversidade de famílias e formas de agregados familiares tornou-se um traço distintivo da época actual. As pessoas têm menos probabilidades de se virem a casar do que no passado, e fazem-no numa idade mais tardia. O índice de divórcios subiu significativamente, contribuindo para o crescimento de famílias monoparentais. Constituem-se ‘famílias recompostas’ através de segundos casamentos, ou através de novas relações que envolvem filhos de relações anteriores. As pessoas optam cada vez mais por viver juntas em coabitação antes do casamento, ou em alternativa ao casamento. Em resumo, o mundo familiar é hoje muito diferente do que o era há cinquenta anos atrás. Apesar das instituições do casamento e da família ainda existirem e serem importantes nas nossas vidas, o seu carácter mudou radicalmente.”

Era preciso evoluir. E a necessidade de modernizar a disciplina jurídica da filiação constituiu preocupação central do texto constitucional que informa a democracia em que hoje vivemos. O eixo central do sistema se deslocou do Código Civil para a Constituição, cujo conjunto axiológico-normativo deve informar a interpretação dos institutos que regem o Direito de Família.

Assumindo caráter de sobreprincípio fundante do ordenamento, insculpido logo no art. 1º, III, da Carta magna, a dignidade humana passa a exercer papel fundamental nesse contexto. O núcleo base da dignidade humana é expresso na formulação do imperativo categórico de Immanuel Kant: o ser humano deve sempre ser um fim em si mesmo, nunca um meio para um fim (“Handle so, dass du die Menschheit sowohl in deiner Person, als in der Person eines jeden anderen jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloß als Mittel brauchst” – KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. AA IV. Berlim: Ausgabe der Preußischen Akademie der Wissenschaften, 1900. p. 429).

Como afirma o Tribunal Constitucional Federal alemão, a dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade (“Dem liegt die Vorstellung vom Menschen als einem geistig-sittlichen Wesen zugrunde, das darauf angelegt ist, in Freiheit sich selbst zu bestimmen und sich zu entfalten”) (BVerfGE 45, 187). Cuida-se, assim, da assunção, pelo ordenamento jurídico, de que a eleição das próprias finalidades e objetivos de vida do indivíduo tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. No campo da família, tem-se que a dignidade humana exige a superação de óbices impostos por arranjos legais ao pleno desenvolvimento dos formatos de família construídos pelos próprios indivíduos em suas relações afetivas interpessoais.

Em estreita conexão com a dignidade humana, dela derivando ao mesmo passo que constitui o seu cerne, apresenta-se o denominado direito à busca da felicidade. Se a referência a este direito é relativamente recente no Brasil, a sua origem remonta ao próprio surgimento do conceito moderno de Constituição.

Em 4 de julho de 1776, na Filadélfia, Pensilvânia, foi publicada a declaração de independência dos Estados Unidos da América. Em seu preâmbulo, o documento exibe a memorável frase elaborada por Thomas Jefferson em seus rascunhos para a declaração e que  sobreviveu às revisões posteriores, segundo a qual seriam verdades autoevidentes certos direitos inalienáveis, dentre os quais os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade (“We hold these truths to be self- evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness”). Dias antes, a declaração de direitos da Virgínia, pela pena de George Mason, já havia reconhecido a todos os homens certos direitos inerentes, que jamais podem ser molestados na vida em sociedade, em especial o desfrute da vida e da liberdade, com os meios para aquisição de propriedade, bem como a busca e obtenção de felicidade e segurança (“all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety”). Massachusetts e Wisconsin adotam preceitos semelhantes em suas Constituições. Muito embora não exista previsão expressa do direito à busca da felicidade no texto da Constituição dos Estados Unidos, é inegável a sua importância histórica e seu enorme valor para a interpretação das demais cláusulas da carta fundamental.

Cuida-se, a busca da felicidade, de preceito que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhecendo-se não apenas as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, mas também que o Estado, então recém-criado, deveria atuar apenas na extensão em que essas capacidades próprias fossem respeitadas. Traduz-se em um mandamento a que o governo se abstenha de eleger finalidades a serem perseguidas nas mais diversas esferas da vida humana, bem assim a que não se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Nenhum arranjo político é capaz de prover bem-estar social em caso de sobreposição de vontades coletivas a objetivos individuais.

O primeiro caso em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a força normativa do direito à busca da felicidade foi no caso Meyer v. Nebraska, de 1923 (262 U.S. 390). Na oportunidade, um professor de alemão chamado Robert T. Meyer desafiou a constitucionalidade de uma lei do Estado de Nebraska de 1919 que proibia o ensino conduzido em idiomas estrangeiros, assim como o estudo de línguas estrangeiras, como objeto de aprendizado, por estudantes até determinado nível. O objetivo da lei, denominada Siman Act, era a de perseguição aos imigrantes alemães, no contexto da primeira guerra mundial. Na oportunidade, a Corte reconheceu que a cláusula do devido processo legal (due process), prevista na décima quarta emenda à Constituição, sem dúvidas, denota não apenas a mera liberdade contra restrições de ordem corporal, mas também o direito do indivíduo de contratar, de se engajar em qualquer das ocupações ordinárias da vida, de adquirir conhecimento útil e em geral gozar de tudo o que for reconhecido como essencial para a busca ordenada da felicidade por homens livres (“denotes not merely freedom from bodily restraint but also the right of the individual to contract, to engage in any of the common occupations of life, to acquire useful knowledge (…) and generally to enjoy those privileges long recognized at common law as essential to the orderly pursuit of happiness by free men”). Ante o reconhecimento do direito à busca da felicidade como norma constitucional implícita, reconheceu-se a invalidade da lei que interferiu na vocação de professores, nas oportunidades dos alunos de adquirirem conhecimento e na prerrogativa dos pais de controlar a educação de seus  descendentes (“Evidently the Legislature has attempted  materially  to interfere with the calling of modern language teachers, with the opportunities  of pupils  to acquire  knowledge,  and  with the power  of parents to  control the education of their own”). A lição mais importante a ser extraída do caso é a de que sequer em tempos de guerra, excepcionais por natureza, poderá o indivíduo ser reduzido a mero instrumento de consecução da vontade dos governantes.

Transportando-se a racionalidade para o Direito de Família, o direito à busca da felicidade funciona como um escudo do ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei. É o direito que deve se curvar às vontades e necessidades das pessoas, não o contrário, assim como um alfaiate, ao deparar-se com uma vestimenta em tamanho inadequado, faz ajustes na roupa, e não no cliente.

A Suprema Corte norteamericana teve a oportunidade de aplicar o direito à busca da felicidade no contexto familiar em algumas oportunidades. No caso Loving v. Virginia, de 1967 (388 U.S. 1), o referido Tribunal reverteu a condenação de Mildred Loving, uma mulher negra, e de Richard Loving, um homem branco, que haviam sido sentenciados a um ano de prisão por terem se casado em descumprimento do Racial Integrity Act de 1924, estatuto que proibia casamentos considerados “interraciais”. Por decisão unânime, a Corte declarou a proibição inconstitucional, adotando, dentre outros fundamentos, o de que o direito à liberdade de casamento é um dos direitos individuais vitais e essenciais para a busca ordenada da felicidade por homens livres (“freedom to marry has long been recognized as one of the vital personal rights essential to the orderly pursuit of happiness by free men”).

Esse precedente foi essencial para a recente decisão da Suprema Corte sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, no caso Obergefell Hodges, de 2015 (576 U.S.). Neste último, a maioria do colegiado reputou que a Constituição exige o reconhecimento, pelos Estados, do casamento de casais homoafetivos, na medida em que o direito a casar seria decorrência essencial do direito à busca da felicidade. Cumpre transcrever a primeira frase do voto do Justice Anthony Kennedy, que escreveu pela maioria vencedora: “A Constituição promete liberdade a todos aqueles sob seu alcance, uma liberdade que inclui certos direitos específicos que permitem a pessoas, dentro de um âmbito legal, definir e expressar sua identidade” (“The Constitution promises liberty to all within its reach, a liberty that includes certain specific rights that allow persons, within a lawful realm, to define and express their identity”).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de invocar o direito à busca da felicidade, como se colhe dos seguintes arestos:

O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. – Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia- força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.” (RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011)

Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa humana’: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual.” (ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011)

Tanto a dignidade humana, quanto o devido processo legal, e assim também o direito à busca da felicidade, encartam um mandamento comum: o de que indivíduos são senhores dos seus próprios destinos, condutas e modos de vida, sendo vedado a quem quer que seja, incluindo-se legisladores e governantes, pretender submetê-los aos seus próprios projetos em nome de coletivos, tradições ou projetos de qualquer sorte.

Sob essa lógica merece ser interpretada a legislação infraconstitucional, abdicando-se o operador do direito de pré-compreensões e formatos padronizados de família para atender, na sua totalidade, às idiossincrasias das formulações particulares de organização familiar. Como explica Gustavo Tepedino, in verbis:

“O fato de os princípios de ordem pública permearem todas as relações não significa ter o direito de família migrado para o direito público; devendo-se, ao reverso, submeter a convivência familiar, no âmbito do próprio direito civil, aos princípios constitucionais, de tal  maneira que a família deixe de ser valorada como instituição, por si só merecedora de tutela privilegiada, como quisera o Código Civil de 1916, em favor de uma proteção funcionalizada à realização da personalidade e da dignidade dos seus integrantes, como quer o texto constitucional.”

A partir da Carta de 1988, exige-se uma inversão de finalidades no campo civilístico: o regramento legal passa a ter de se adequar às peculiaridades e demandas dos variados relacionamentos interpessoais, em vez de impor uma moldura estática baseada no casamento entre homem e mulher. De forma percuciente, esclarece o Ministro Luiz Edson Fachin aquilo que denomina “concepção eudemonista da família”:

“Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.”

A própria Constituição, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º). Por outro lado, a Carta fundamental enfatizou que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas. Um exemplo da tradição civilística brasileira é a adoção, capaz de estabelecer um vínculo parental na ausência de casamento ou liame sanguíneo, bastando o amor entre os indivíduos que se recebem como pais e filhos. O art. 227, § 6º, da Constituição é assertivo ao determinar que, verbis: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Ante a impossibilidade de engessamento da configuração familiar, esta Egrégia Corte atribuiu a qualidade de entidade familiar às uniões estáveis homoafetivas, em julgamento histórico cujo acórdão estabelece premissa indispensável para o caso ora examinado. Invocando o direito à busca da felicidade, este colegiado declarou a “Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil”, bem como a “Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico” (ADI 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).

Se o conceito de família não pode ser reduzido a modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a fecundação artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga – art. 1.597, III a V do Código Civil de 2002); (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade.

O Código Civil de 2002 promoveu alguns passos à frente nessa concepção cosmopolita do Direito de Família. Conforme observa o Ministro Luiz Edson Fachin, o diploma inovou ao reconhecer o direito fundamental à paternidade, independentemente do estado civil dos pais; a possibilidade de declaração de paternidade sem que haja ascendência genética; o reconhecimento de filho extramatrimonial; a igualdade material entre os filhos; a presunção de paternidade na fecundação artificial, seja ela homóloga ou heteróloga; e a abertura de espaço jurídico para a construção do conceito de paternidade socioafetiva.

Igualmente, a evolução da ciência contribuiu para que a paternidade baseada no casamento, outrora central ao sistema, perdesse a sua importância para dar lugar a outras modalidades de filiação. A popularização do exame de DNA permitiu o alcance de resultados seguros e rápidos sobre vínculos biológicos para fins de ações de investigação e negatórias de paternidade, tornando despiciendo, na maioria dos casos, o recurso a presunções para a definição da filiação. Inclusive, este Pretório Excelso assegurou a possibilidade de relativização da coisa julgada para a realização posterior de exame de DNA, em homenagem ao “direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser” (RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 16/12/2011). Além de direito constitucional implícito, como esclareceu esta Corte, a busca da identidade genética é garantida pela legislação infraconstitucional, prevendo o art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente o “direito de conhecer sua origem biológica”.

Em paralelo à filiação biológica, demanda igual proteção jurídica o vínculo de parentalidade construído apenas a partir do afeto. Para evitar situações de extrema injustiça, desde o Código de 1916 já reconheciam a doutrina e a jurisprudência a figura da posse do estado de   filho, mediante   interpretação   elástica   do   art.   349, II, daquele

Diploma, segundo o qual a filiação poderia ser provada, na falta de registro, por “veementes presunções resultantes de fato já certos”. Assim, seria considerado filho aquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). Na lição de Silvio Rodrigues, a “posse do estado consiste no desfrute público, por parte de alguém, daquela situação peculiar ao filho legítimo, tal o uso do nome familiar, o fato de ser tratado como filho pelos pretensos pais, aliado à persuasão geral de ser a pessoa, efetivamente, filho legítimo”.

Mais que reproduzir a norma do art. 349, II, do diploma anterior em seu art. 1.605, o Código Civil de 2002 passou a preceituar, em seu art. 1.593, que o “parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Desse modo, a própria lei passa a reconhecer que a consanguinidade concorre com outras formas de parentesco, dentre as quais certamente se inclui a afetividade.

Um exemplo bastante comum na realidade pátria é a chamada “adoção à brasileira”, em que o sujeito se vale da presunção de veracidade do registro público para declarar a paternidade em relação a criança que sabe não possuir sua herança genética. Cuida-se de gesto nobre, decorrente da vontade de preencher um espaço afetivo que de outra forma restaria vago na vida do menor. Por isso mesmo, alguns Tribunais de Justiça já regulamentaram o reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva diretamente perante o Registro Civil de Pessoas Naturais, independentemente de declaração judicial. Tal regramento já existe, por exemplo, no âmbito do TJMA (Provimento 21/2013), do TJPE (Provimento 9/2013), do TJCE (Portaria 15/2013), do TJSC (Provimento 11/2014) e do TJAM (Provimento 234/2014), por exemplo. A filiação socioafetiva, porém, independe da realização de registro, bastando a consolidação do vínculo afetivo entre as partes ao longo do tempo, como sói ocorrer nos casos de posse do estado de filho.

Estabelecida a possibilidade de surgimento da filiação por origens distintas, é de rigor estabelecer a solução jurídica para os casos de concurso entre mais de uma delas.

O sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de tutela da felicidade e realização pessoal dos indivíduos a partir de suas próprias configurações existenciais, impõe o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional. O espectro legal deve acolher, nesse prisma, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição.

Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar- se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário.

O conceito de pluriparentalidade não é novidade no Direito Comparado. Nos Estados Unidos, onde os Estados têm competência legislativa em matéria de Direito de Família, a Suprema Corte de Louisiana ostenta jurisprudência consolidada quanto ao reconhecimento da “dupla paternidade” (dual paternity). No caso Smith Cole (553 So.2d 847, 848), de 1989, o Tribunal aplicou o conceito para estabelecer que a criança nascida durante o casamento de sua mãe com um homem diverso do seu pai biológico pode ter a paternidade reconhecida com relação aos dois, contornando o rigorismo do art. 184 do Código Civil daquele Estado, que consagra a regra “pater ist est quem nuptiae demonstrant”. Nas palavras da Corte, a “aceitação, pelo pai presumido, intencionalmente ou não, das responsabilidades paternais, não garante um benefício para o pai biológico. (…) O pai biológico não escapa de suas obrigações de manutenção do filho meramente pelo fato de que outros podem compartilhar com ele da responsabilidade” (“The presumed father’s acceptance of paternal responsibilities, either by intent or default, does not ensure to the benefit of the biological father. (…) The biological father does not escape his support obligations merely because others may share with him the responsibility.”).

Em idêntico sentido, o mesmo Tribunal assentou, no caso T.D., wife of M.M.M. v. M.M.M., de 1999 (730 So. 2d 873), o direito do pai biológico à declaração do vínculo de filiação em relação ao seu filho, ainda que resulte em uma dupla paternidade. Ressalvou-se, contudo, que o genitor biológico perde o direito à declaração da paternidade, mantendo as obrigações de sustento, quando não atender ao melhor interesse da criança, notadamente nos casos de demora desarrazoada em buscar o reconhecimento do status de pai (“a biological father who cannot meet the best-interest-of-the-child standard retains his obligation of support but cannot claim the privilege of parental rights”).

A consolidação jurisprudencial levou à revisão do Código Civil estadual de Louisiana, que a partir de 2005 passou a reconhecer a dupla paternidade nos seus artigos 197 e 198 (PALMER, Vernon Valentine. Mixed Jurisdictions Worldwide: The Third Legal Family. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2012). Louisiana se tornou, com isso, o primeiro Estado norteamericano a permitir legalmente que um filho tenha dois pais, atribuindo-se a ambos as obrigações inerentes à parentalidade (McGINNIS, Sarah. You Are Not The Father: How State Paternity Laws Protect (And Fail To Protect) the Best Interests of Children. In: Journal of Gender, Social Policy & the Law, v. 16, issue 2, 2008, pp. 311-334).

A omissão do legislador brasileiro quanto ao reconhecimento dos mais diversos arranjos familiares não pode servir de escusa para a negativa de proteção a situações de pluriparentalidade. É imperioso o reconhecimento, para todos os fins de direito, dos vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos. Na doutrina brasileira, encontra-se a valiosa conclusão de Maria Berenice Dias, in verbis: “não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação.

Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (…) Tanto é este o caminho que já há a possibilidade da inclusão do sobrenome do padrasto no registro do enteado” (Manual de Direito das Famílias. 6ª. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 370). Tem-se, com isso, a solução necessária ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).

No caso concreto trazido à Corte pelo Recurso Extraordinário, infere-se da leitura da sentença prolatada pelo Juízo da 2ª Vara da Família da Comarca de Florianópolis e dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, a autora, F. G., ora recorrida, é filha biológica de A. N., como ficou demonstrado, inclusive, pelos exames de DNA produzidos no decorrer da marcha processual (fls. 346 e 449-450). Ao mesmo tempo, por ocasião do seu nascimento, em 28/8/1983, a autora foi registrada como filha de I. G., que cuidou dela como se sua filha biológica fosse por mais de vinte anos. Por isso, é de rigor o reconhecimento da dupla parentalidade, devendo ser mantido o acórdão de origem que reconheceu os efeitos jurídicos do vínculo genético relativos ao nome, alimentos e herança.

Ex positis, nego provimento ao Recurso Extraordinário e proponho a fixação da seguinte tese para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.

É como voto.

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1 Art. 226, § 4º “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

Art. 226, § 7º “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”

Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Art. 227, § 6º “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os  mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

Art. 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

Art. 230. “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”