CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Escrituras públicas de venda e compra – Condomínio pro-indiviso – Situação de indivisão que persiste – Ausência de elementos indicativos de divisão fática, com anuência dos condôminos – Alienações de frações ideais com medidas certas – Negócios jurídicos que mascaram transmissão de posse localizada e indevida divisão da coisa comum – Ofensa ao item 171 do Cap XX das NSCGJ e ao princípio da disponibilidade qualitativa – Pertinência da exigência relativa ao CCIR, que deve referir-se à área total do imóvel rural – Erros passados não justificam os registros pretendidos – Exclusão das exigências atinentes às certidões negativas de débitos e ao ITR (subitem 119.1 do Cap XX das NSCGJ) – Adequação da exigência referente à reserva legal florestal – Falta de pagamento dos emolumentos que não pode obstar os registros, se não houve exigência de depósito prévio – Dúvida procedente – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1016790-38.2015.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que são partes é apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, é apelada ERICA APARECIDA AGOSTINHO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar procedente a dúvida inversa, de sorte a restar desautorizado o acesso das escrituras públicas ao álbum imobiliário, v.u. Vencido na preliminar o Desembargador Ricardo Dip, que declarará voto.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO, LUIZ ANTONIO DE GODOY, RICARDO DIP E SALLES ABREU.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2017.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1016790-38.2015.8.26.0577

Apelante: Ministério Público do Estado de São Paulo

Apelado: Erica Aparecida Agostinho

VOTO Nº 29.632

Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Escrituras públicas de venda e compra – Condomínio pro-indiviso – Situação de indivisão que persiste – Ausência de elementos indicativos de divisão fática, com anuência dos condôminos – Alienações de frações ideais com medidas certas – Negócios jurídicos que mascaram transmissão de posse localizada e indevida divisão da coisa comum – Ofensa ao item 171 do Cap XX das NSCGJ e ao princípio da disponibilidade qualitativa – Pertinência da exigência relativa ao CCIR, que deve referir-se à área total do imóvel rural – Erros passados não justificam os registros pretendidos – Exclusão das exigências atinentes às certidões negativas de débitos e ao ITR (subitem 119.1 do Cap XX das NSCGJ) – Adequação da exigência referente à reserva legal florestal – Falta de pagamento dos emolumentos que não pode obstar os registros, se não houve exigência de depósito prévio – Dúvida procedente – Recurso provido.

A interessada, por meio da dúvida inversa suscitada, expressando seu inconformismo quanto ao juízo negativo de qualificação registral, pretende o registro de duas escrituras públicas de compra e venda [1], recusado pelo Oficial de Registro [2], mas determinado, pelo MM Juízo Corregedor Permanente, em sentença [3], depois impugnada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Nas razões de apelação, o recorrente argumenta não ser admissível alienar frações ideais de bem imóvel rural expressas, nas escrituras públicas – e não se sabe se de maneira fidedigna –, em partes certas e delimitadas, a mascarar extinção anômala de condomínio, sequer antecedida de concordância dos demais condôminos. Pondera, por fim, que erros pretéritos não se prestam a legitimar o ato registral pretendido. [4]

A suscitante ofereceu contrarrazões [5], instruídas com documentos [6], os autos foram encaminhados ao C. CSM, a Procuradoria Geral da Justiça opinou pelo desprovimento do recurso [7] e, no mais, as certidões das matrículas n.ºs 31.490 e 45.736, respectivamente do 2.º RI e do 1.º RI de São José dos Campos, foram juntadas aos autos [8].

É o relatório.

A interessada, recorrida Erica Aparecida Agostinho, inconformada com o juízo negativo de qualificação registral, suscitou dúvida inversa, criação pretoriana historicamente admitida por este C. CSM [9] e disciplinada pelas NSCGJ [10]: ao invés de requerer a suscitação de dúvida ao Registrador, dirigiu sua irresignação diretamente ao MM Juiz Corregedor Permanente.

Ao reverso do alegado pela apelada, não há óbice ao conhecimento do recurso. As razões de apelação guardam relação com a exigência registral pertinente à inadmissibilidade de alienações de frações ideais com medida certa. Retomam tema arguido no parecer oferecido pelo apelante antes da prolação da sentença. [11] Enfim, o exame da questão ventilada na apelação, em cuja peça também se questiona a ocorrência de extinção anômala de condomínio, foi devolvido a este C. CSM. Ademais, a requalificação dos títulos, com reapreciação da dúvida em sua plenitude, é própria deste procedimento administrativo.

O dissenso versa sobre a registrabilidade de duas escrituras públicas: a primeira, lavrada no dia 10 de junho de 2003, mediante a qual Thiago, André, Felipe da Cunha Alcântara Corrêa, Ana Lúcia da Cunha e Pedro Alcântara Corrêa alienaram a Erica Aparecida Agostinho, interessada, a parte ideal equivalente a 2 ha (hectares) ou 20.000 m² (ou 0,8264 alqueires paulistas) do imóvel descrito na mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos [12]; e a segunda, ajustada em 27 de dezembro de 2012, por meio da qual a interessada, lastreada na aquisição anterior, vendeu a Aparecida Mendes Santos a parte ideal correspondente a 0,1180% do todo [13].

Os primeiros alienantes, convém anotar, dispuseram de direitos inscritos em extensão inferior aos então por eles titulada: ora, titulares de 2,64 alqueires (em imóvel rural com área de 7 alqueires ou 16,94 ha) – equivalentes, consoante a retificação objeto da av. 1 da mat. n.º 31.490, a 37,7143% do bem imóvel [14] –, venderam 2 ha (ou 0,8264 alqueires paulistas).

Da mesma forma, a interessada, anos depois, com base na aquisição feita, dispôs de menos do que havia incorporado ao seu patrimônio, porque, tendo adquirido 2 ha (ou, a partir de simples regra de três, 11,80637% do todo), alienou parte ideal correspondente 0,1180% do imóvel rural.

Vale dizer, as operações econômicas realizadas não ofenderam o princípio da disponibilidade quantitativa. Ao lado disso, em ambos os títulos, a descrição do imóvel sobre o qual recaem as partes ideais negociadas coincide com a identificação tabular, ou seja, está em conformidade com a lançada na mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos. Em suma, reporta-se aos dados descritivos da matrícula, a descartar, sob esse enfoque, a vulneração do princípio da especialidade objetiva.

Ao expor as razões da recusa, o Oficial, contudo, de modo a ratificar as devoluções pretéritas, ponderou, inicialmente, a impossibilidade do título – do primeiro, então – fazer alusão a partes ideais com medida certa, porque devem ser expressas em percentuais incidentes sobre a área total do bem imóvel. Entretanto, ressalvou a inexistência de indícios de fraude à lei de parcelamento do solo ou de transmissão de posse localizada. [15]

Quanto a essa exigência, observo que o bem imóvel envolvido nos negócios jurídicos especificados, objeto da mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos (com origem na mat. n.º 5.736 do 1.º RI de São José dos Campos, em cuja circunscrição territorial aquele se situava), pertence a mais de uma pessoa e se encontra em estado de indivisão.

O condomínio(no caso, tradicional), com origem convencional, é pro-indiviso: não há sequer elementos mínimos a indicar a efetiva divisão fática da coisa tabularmente indivisa, muito menos a sugerir uma divisão fática que tenha contado com a anuência (ainda que tácita) de todos os condôminos. Não se pode afirmar, realmente, que cada condômino está localizado em parte certa e determinada do imóvel comum. Enfim, a situação de indivisão persiste.

Assim sendo, na justa lição de Caio Mário da Silva Pereira, “a cada condômino é assegurada uma quota ou fração ideal da coisa e não parcela material desta.” [16] (grifei) Consoante esclarece Luiz Edson Fachin, cada condômino exerce o domínio (elemento interno do direito real de propriedade) sobre a totalidade da coisa, enquanto, sob outro prisma, exerce a titularidade formal (abstrata, elemento externo, de ordem obrigacional, que é a relação jurídica que se estabelece com o sujeito passivo universal) sobre uma parte ideal da coisa indivisa. [17]

Na mesma linha segue Francisco Eduardo Loureiro, ao apontar as duas características básicas do condomínio geral:

… A primeira é a cotitularidade dominial sobre uma mesma coisa. A segunda é o regime jurídico de cotas ou partes ideais sobre a coisa, cabendo a cada condômino uma fração ou percentagem sobre o todo, sem que o direito incida sobre uma parte fisicamente determinada. Os direitos dos condôminos, assim, são qualitativamente iguais, porque incidem em partes ideais sobre a totalidade da coisa, embora possam ser quantitativamente distintos, proporcionais à força de seus quinhões. [18] (grifei)

Logo, correta a objeção apresentada pelo Oficial, em relação a qual, porém, cabe uma ressalva, para sublinhar que os negócios jurídicos mascaram, sim, indevida transmissão de posse localizada. A fragmentação física, e fática, da coisa comum indivisa, idealizada pelos contratantes, avulta.

Ressai tanto, e principalmente, do primeiro título, da menção a fração ideal com metragem certa, como ainda da subsequente alienação feita pela interessada, que dispôs de menos de 1% da fração ideal anteriormente adquirida: aliás, na primeira operação econômica, os alienantes venderam, também, e com metragem certa (já se pontuou) – para piorar –, quota inferior a que titulam.

De resto, a situação fica ainda mais clara quando a interessada, nas contrarrazões, afirma que o condomínio é pro-diviso [19]. Embora o argumento não tenha respaldo nos autos, evidencia que, no plano fático, as frações ideais alienadas estão sendo destacadas da gleba maior; revela (reforça a conclusão de) vendas de partes ideais como se unidades autônomas fossem, com posse, portanto, localizada.

A hipótese dos autos desnuda a violação do item 171 do Cap. XX das NSCGJ, de acordo com o qual “é vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. …”

O contexto expõe, ademais, o propósito disfarçado de divisão (parcial) da coisa comum, sem, no entanto, o indispensável consentimento de todos os condôminos, que, prescindível, é verdade, para disposição da fração ideal, exsurge necessário, ainda que divisível o imóvel, para fins de divisão (extinção) amigável do condomínio.

No tocante a esse ponto, é oportuno assinalar que, se a controvérsia se limitasse a simples alienações de frações ideais, de quotas ideais sobre o todo e cada uma das partes do bem comum indiviso (em estado de indivisão) sob titularidade dos alienantes, a falta de prévia notificação dos demais condôminos para eventual exercício do direito de preferência (art. 504 do CC) não obstaria a inscrição dos títulos causais. E isso porque seriam válidas, embora ineficazes temporariamente (pelo prazo decadencial de cento e oitenta dias) em relação aos preteridos [20].

A conjuntura, entretanto, não é essa; é bem diversa, destacou-se acima. Inclusive, para agravar, expressa violação de outro princípio registral, o da disponibilidade, em sua vertente qualitativa. Ora, até a divisão da coisa comum (em estado de indivisão), não se saberá o quinhão individuado que tocará a cada um dos condôminos, com valor proporcional à fração ideal deles; não terá ocorrido, com registro na serventia predial, a modificação patrimonial qualitativa ínsita à divisão. Ou seja, por enquanto, o que é abstrato, ainda não se tornou concreto.

Portanto, também por isso, em prestígio do princípio da disponibilidade, os títulos qualificados, contemplando alienações de frações ideais localizadas, não comportam acesso ao fólio real, à mat. n.º 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos. Estão em desconformidade com o efetivo poder de disposição dos alienantes; em desacordo com a titularidade formal a eles atribuída. E aqui, novamente, calham as lúcidas considerações de Luiz Edson Fachin:

Quanto à possibilidade de alienação, gratuita ou onerosa, ainda que se origine no poder de disposição, projeta-se para a seara da titularidade na qual não incide a comunhão: nesse âmbito, há propriedade individual sobre partes ideais da coisa indivisa. Trata-se de dimensão que não concerne ao poder direto sobre a coisa, elemento interno que caracteriza o domínio, mas de dimensão que se projeta externamente, para produzir relação jurídica de natureza contratual com terceiros, que terá o bem como objeto mediato. Consoante essa ordem de ideias, como é evidente, o condômino só pode alienar sua parte ideal, sobre a qual exerce titularidade formal. Sobre a cota-parte, que se projeta no âmbito da titularidade incide exclusividade, podendo o condômino aliená-la gratuita ou onerosamente, sem necessidade de anuência dos demais. [21] (grifei e sublinhei)

No que se refere ao registro anterior (antiquíssimo) de escritura pública de venda e compra tendo por objeto parte ideal com metragem certa [22], é de rigor recordar, e reafirmar, a jurisprudência administrativa desta Corte, segundo a qual erros pretéritos não justificam nem legitimam outros; quero dizer, não se prestam a respaldar os atos registrais pretendidos, na justa compreensão deste C. CSM [23].

Por sua vez, a respeito da exigência atinente ao CCIR [24], a cada imóvel, em atenção ao princípio da unitariedade, deve corresponder uma única matrícula. E a identificação do imóvel, por força do princípio da especialidade objetiva e, especialmente, da regra do art. 176, II, 3, a, da Lei n.º 6.015/1973, supõe os dados constantes do CCIR.

Esse, portanto, o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, deve referir-se a sua área total (16,94 há, no caso), de modo a singularizá-lo, e não, sob essa ótica, reportar-se a fração ideal da coisa, a parte da extensão do bem (14,5 há, como o apresentado [25]). Destarte, na hipótese, porque os negócios jurídicos abrangem alienações de frações ideais de imóveis em estado de indivisão, exige-se CCIR correspondente ao todo, não atendendo o rigor legal alusão a certificado de parte do bem.

A exigência de exibição do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) expedido pelo INCRA, previsto no Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964 [26]), não é nova: consta do art. 22 da Lei n.º 4.947/1966 e, mais recentemente, do art. 1.º do Decreto n.º 4.449/2002, que regulamentou a Lei n.º 10.267/2001, diploma legal que, entre outras, promoveu alterações no art. 176 da Lei n.º 6.015/1973 para fazer constar a necessidade da identificação do imóvel rural contemplar seu código e os dados constantes do CCIR.

Em síntese, a deficiente identificação do bem imóvel rural, presa ao CCIR, também está a impedir as inscrições perseguidas, porquanto em desconformidade com os princípios da legalidade e da especialidade objetiva [27], conforme, aliás, recente deliberação deste C. CSM [28].

De mais a mais, a superação de exigência símile em procedimento de dúvida anterior, resolvido em primeira instância [29], não basta para relevá-la. Vale, aqui, o que acima se afirmou sobre os erros pretéritos.

Agora, não se justifica, por variadas e diferentes causas, a exibição de CNDs (certidões negativas de débitos tributários e previdenciários), seja porque sem relação com o registro pretendido, seja diante da atual compreensão do C. CSM, iluminada por diretriz fixada pela Corte Suprema [30], a dispensá-la, pois, mantida fosse a exigência [31], prestigiaria vedada sanção política [32].

A confirmação dessa exigência importaria restrição indevida ao acesso de títulos à tábua registral, imposta então como forma oblíqua, instrumentalizada para, ao arrepio e distante do devido processo legal, desatrelada da inscrição visada e contrária à eficiência e segurança jurídica ínsitas ao sistema registral, forçar, constranger o contribuinte ao pagamento de tributos [33].

Levaria a restrição de interesses privados em aberto desacordo com a orientação do E. STF, a qual se alinhou este C. CSM; incompatível com limitações inerentes ao devido processo legal, porque mascararia uma cobrança por quem não é a autoridade competente, longe do procedimento adequado à defesa dos direitos do contribuinte, em atividade administrativa estranha à fiscalização que lhe foi cometida, ao seu fundamento e fins legais, dado que as obrigações tributárias em foco não decorrem dos atos registrais intencionados.

Conforme Humberto Ávila, “a cobrança de tributos é atividade vinculada procedimentalmente pelo devido processo legal, passando a importar quem pratica o ato administrativo, como e dentro de que limites o faz, mesmo que – e isto é essencial – não haja regra expressa ou a que seja prevista estabeleça o contrário.” [34]

Na mesma trilha, sob inspiração desses precedentes, escudado, assim, no ideal de protetividade dos direitos do contribuinte, na eficácia e na função bloqueadora próprios do princípio do devido processo legal [35], segue o subitem 119.1. do Cap. XX das NSCGJ, in verbis: “com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.”

Com essas considerações, suficientes para afastar, in concreto, toda e qualquer exigência ligada à comprovação de pagamento ou inexistência de débitos fiscais despegados dos registros idealizados, é oportuno, em acréscimo, e particularmente quanto ao ITR (imposto sobre propriedade territorial rural), tendo em vista o comando emergente do art. 21, caput, da Lei n.º 9.393/1966 [36], realçar, à luz do argumentado, a desnecessidade de comprovação de seu pagamento, a ser fiscalizado e perseguido pela União, pela Fazenda Pública Federal ou, nos termos do art. 153, § 4.º, III, da CF [37], pelos Municípios. Dela (a comprovação), por isso, também independe o registro.

À dispensa afirmada, ademais, conduz a intelecção do par. único do art. 21 da Lei n.º 9.393/1966 [38], que, ao fazer remissão à regra do art. 134 do CTN, condicionou a responsabilidade solidária (e subsidiária) dos tabeliães e registradores pelas obrigações não cumpridas pelo contribuinte à existência de um vínculo entre o tributo não pago e o ato praticado, ausente, em se tratando do ITR, cujo fato gerador, sendo a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel rural, é alheio aos registros visados.

Nessa trilha, os registros, inviabilizados por razões outras, independem de certidões negativas de débitos e Documento de Informação e Apuração do ITR – DIAT e demonstração de quitação desse tributo.

No que se refere à averbação da reserva legal, a especialização exigida [39] (porque a qualificação envolve transmissão de domínio) é imprescindível, mormente porque não consta o registro da reserva legal florestal no órgão ambiental competente, então por meio de inscrição do bem imóvel rural no CAR; está, dessarte, em harmonia com recente precedente deste C. CSM [40].

Em arremate, uma última observação, à vista dos emolumentos exigidos [41]. Sem dúvida, assim como as despesas relativas às inscrições recusadas, o Registrador, por ocasião da apresentação e da prenotação dos títulos, pode exigi-los, a título de depósito prévio. Isto é, eram passíveis de cobrança, antecipadamente aos atos pretendidos [42]. Condicionariam legitimamente a recepção, a prenotação dos títulos e o juízo de qualificação registral. [43]

Em outras palavras, a suscitação de dúvida pode depender mediatamente do depósito prévio: sem este, realmente, se exigido, o que é uma faculdade do Oficial, não haverá protocolização do título, qualificação nem juízo de qualificação negativo, antecedente da dúvida. Todavia, se dispensado, e superadas as exigências, a falta de pagamento dos emolumentos e das custas não pode travar a marcha dos procedimentos registrais.

Isto posto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso para julgar procedente a dúvida inversa, de sorte a restar desautorizado o acesso das escrituras públicas ao álbum imobiliário.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Conselho Superior da Magistratura

Apelação 1016790-38.2015.8.26.0577 – SEMA

Dúvida de registro

VOTO DE VENCIDO (Voto n. 45.605)

1. Registro, à partida, adotar o relatório lançado pelo insigne Relator da espécie.

2. Sem embargo, da veniam, permito-me lançar um reparo.

Já é tempo de deixar de admitir o que se convencionou chamar dúvida “inversa”, ou seja, aquela levantada pelo próprio interessado, diretamente ao juízo corregedor.

A prática, com efeito, não está prevista nem autorizada em lei, o que já é razão bastante para repeli-la, por ofensa à cláusula do devido processo (inc. LIV do art. 5º da Constituição), com a qual não pode coadunarse permissão ou tolerância (jurisprudencial, nota) para que os interessados disponham sobre a forma e o rito de processo administrativo, dispensando aquele previsto no estatuto de regência (Lei n. 6.015, de 31-12-1973, arts. 198 et seqq.).

Se o que basta não bastara, ainda há considerar que ao longo de anos a dúvida inversa tem constituído risco para a segurança dos serviços e mesmo para as justas expectativas dos interessados. É que, não rara vez, o instrumento vem sendo manejado sem respeito aos mais elementares preceitos de processo registral (o primeiro deles, a existência de prenotação válida e eficaz), de modo que termina sem bom sucesso, levando a delongas que o paciente respeito ao iter legal teriam evitado.

Meu voto preliminar, pois, julgava extinta a dúvida, sem apreciação de seu mérito, prejudicado o exame do recurso de apelação.

3. Superada a preliminar, entretanto, voto pelo provimento do recurso, porque, havendo fundados indícios de que o pretendido registro stricto sensu sirva para parcelar solo sem o cumprimento das exigências urbanísticas pertinentes, a dúvida é de fato procedente. Mais que isso (e como faz notar o voto de relatoria), também impedem a inscrição a falta de certificado de cadastro do imóvel rural (CCIR) e a ausência de averbação de reserva legal, exigíveis in casu.

DO EXPOSTO, por meu voto preliminar, julgava extinto o processo, sem resolução de mérito, prejudicado o recurso de apelação do Ministério Público do Estado de São Paulo.

No mérito, dou provimento ao recurso, para o fim de que, reformado o r. decisum da inferior instância, não se proceda ao rogado registro stricto sensu.

É como voto.

Des. RICARDO DIP

Presidente da Seção de Direito Público

Notas:

[1] Fls. 2-9.

[2] Fls. 99-102.

[3] Fls. 113-114.

[4] Fls. 117-123.

[5] Fls. 128-148.

[6] Fls. 149-170.

[7] Fls. 174-176.

[8] Fls. 184-186 e 190-192.

[9] Apelação Cível n.º 23.623-0/1, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 20.2.1995; Apelação Cível n.º 76.030-0/8, rel. Des. Luís de Macedo, j. 8.3.2001; e Apelação Cível n.º 990.10.261.081-0, rel. Des. Munhoz Soares, j. 14.9.2010.

[10] Item 41.1. do Cap. XX.

[11] Fls. 109.

[12] Fls. 26-29.

[13] Fls. 90-92.

[14] Fls. 185.

[15] Fls. 99-100, item 1, e 101, item I, parte final.

[16] Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. 20.ª ed. Atualizada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 151. v. IV.

[17] Comentários ao Código Civil: Direito das Coisas (arts. 1.277 a 1.368). Antônio Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 169-170. v. 15.

[18] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (coord.). 7.ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 1.315-1.316.

[19] Fls. 137.

[20] Cf. Francisco Eduardo Loureiro, op. cit., p. 1.317. E também Ronaldo Alves de Andrade, in Comentários ao Código Civil Brasileiro: direito das obrigações (arts. 421 a 578). Arruda Alvim; Thereza Alvim (coords.). Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 802-803. v. V.

[21] Op. cit., p. 177.

[22] R. 2 da mat. (matriz) n.º 45.736 do 1.º RI de São José dos Campos fls. 190.

[23] Apelação Cível n.º 20.603-0/9, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 9.12.1994; Apelação Cível n.º 19.492-0/8, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 17.02.95; e Apelação Cível n.º 024606-0/1, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 30.10.1995.

[24] Fls. 100, itens 2 e 1, e 101-102, itens I e II.

[25] Fls. 30, 36, 82.

[26] Cf. art. 46.

[27] Cf., ainda, itens 59, II, e 59.1, do Cap. XX das NSCGJ.

[28] Apelação n.º 9000002-83.2015.8.26.0099, de minha relatoria, j. 9.6.2016.

[29] Fls. 13-22 e 84. Cf., ainda, r. 2, r.3 e av. 4 da mat. 31.490 do 2.º RI de São José dos Campos fls. 185-186.

[30] ADI n.º 173/DF e ADI n.º 394/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 25.9.2008.

[31] Fls. 100, itens 3 e 2, e 101-102, itens I e II.

[32] Apelação Cível n.º 0013759-77.2012.8.26.0562, rel. Des. Renato Nalini, j. 17.1.2013; Apelação Cível n.º 0021311-24.2012.8.26.0100, rel. Des. Renato Nalini, j. 17.1.2013; Apelação Cível n.º 0013693-47.2012.8.26.0320, rel. Des. Renato Nalini, j. 18.4.2013; Apelação Cível n.º 9000004-83.2011.8.26.0296, rel. Des. Renato Nalini, j. 26.9.2013; e Apelação Cível n.º 0002289-35.2013.8.26.0426, rel. Des. Hamilton Elliot Akel, j. 26.8.2014.

[33] A respeito da proscrição das sanções políticas, cf. Hugo de Brito Machado, in Curso de Direito Tributário. 32.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 509-511.

[34] Sistema constitucional tributário. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173.

[35] A propósito dessa estrutura do princípio do devido processual legal, cf. Humberto Ávila, op. cit., p. 173-176.

[36] Art. 21. É obrigatória a comprovação do pagamento do ITR, referente aos cinco últimos exercícios, para serem praticados quaisquer dos atos previstos nos arts. 167 e 168 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), observada a ressalva prevista no caput do artigo anterior, in fine.

[37] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: VI propriedade territorial rural;

  • 4.º O imposto previsto no inciso VI do caput:

III será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.

[38] Art. 21. (…)

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis pelo imposto e pelos acréscimos legais, nos termos do art. 134 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 Sistema Tributário Nacional, os serventuários do registro de imóveis que descumprirem o disposto neste artigo, sem prejuízo de outras sanções legais.

[39] Fls. 102, parte final.

[40] Apelação n.º 1000891-63.2015.8.26.0362, de minha relatoria, j. 2.6.2016.

[41] Fls. 100, item 4.

[42] Cf. art. 14, caput, da Lei n.º 6.015/1973, art. 13 da Lei Estadual n.º 11.331/2002 e item 69 do Cap. XIII das NSCGJ.

[43] Cf. subitem 26.4 do Cap. XX das NSCGJ.

(DJe de 24.03.2017 – SP)