CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Recusa de ingresso de carta de sentença – Instituição de servidão – Descrição precária do imóvel serviente – Inexistência de elementos mínimos de identificação e localização – Necessidade de prévia retificação da área, em observância ao princípio da especialidade objetiva – Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 0000491-27.2015.8.26.0472, da Comarca de Porto Ferreira, em que é apelante COMPANHIA DE GÁS DE SÃO PAULO COMGÁS, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE PORTO FERREIRA.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores JOSÉ RENATO NALINI (Presidente), JOSÉ DAMIÃO PINHEIRO MACHADO COGAN (DECANO), ARTUR MARQUES, RICARDO TUCUNDUVA (PRES SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), RICARDO ANAFE E EROS PICELI.
São Paulo, 9 de novembro de 2015.
JOSÉ CARLOS GONÇALVES XAVIER DE AQUINO
CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR
Apelação Cível n.° 0000491-27.2015.8.26.0472
Apelante: Companhia de Gás de São Paulo COMGÁS
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Porto Ferreira
VOTO N° 29.033
Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Recusa de ingresso de carta de sentença – Instituição de servidão – Descrição precária do imóvel serviente – Inexistência de elementos mínimos de identificação e localização – Necessidade de prévia retificação da área, em observância ao princípio da especialidade objetiva – Recurso não provido.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a sentença do MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Porto Ferreira, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve a exigência de necessidade de georreferenciamento do imóvel no qual foi instituída a servidão, em observância aos princípios da legalidade e da especialidade.
A apelante afirma, em síntese, que é imprescindível, mais que a perfeita descrição do imóvel que suporta a servidão, o conhecimento geral sobre a instalação dos dutos no local para que ninguém alegue desconhecimento das restrições do uso do imóvel decorrente da servidão, razão pela qual a negativa de registro, além de violar o princípio da publicidade, não contribuirá para a segurança que deve emanar dos registros públicos. Diz que a área servienda está perfeitamente descrita e pormenorizada e que o registro da servidão não interfere na aplicação dos princípios da anterioridade e continuidade, além de não implicar em destaque de qualquer parcela do imóvel, como ocorre na desapropriação, de modo que não guarda relevância maior no controle da disponibilidade. Aduz que não há alteração de proprietários, mas apenas restrições de uso da área servienda, e que por não se tratar de servidão civil, a qual é instituída em favor do particular, e sim servidão administrativa pautada em Decreto de Utilidade Pública, deve prevalecer o interesse público. Acrescenta que a regularização da situação do imóvel no registro imobiliário para atender as exigências da nova lei é dever do proprietário.
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso.
É o relatório.
O recurso não comporta acolhida.
A matrícula número 629 relativa ao imóvel serviente assim o descreve:
“O imóvel rural denominado ‘SITIO ITÁLIA’, situado neste município e comarca de Pôrto Ferreira, constituído de uma parte de um sítio, na Fazenda São Vicente, dividida judicialmente, com área de quinze (15) alqueires, equivalente a 36,30 hectares, em terras de cultura, capoeira, pasto, campo e brejo, com as benfeitorias e instalações aí existentes, confrontando em sua integridade e divisas gerais com o Córrego São Vicente, com o Sítio Princezinha (de Dimas de Santis e Ângelo Roque de Santis), com o Sítio São Vicente (de Manoel de Andrade e outro) e com a Estrada Municipal da Fazenda Rio Corrente”;…”
Verifica-se que se trata de matrícula aberta com base em descrição antiga e precária, ou seja, na transcrição número 4.745 do livro 3-C, conforme indicado, e de imóvel de área extensa, a qual não apresenta nenhuma técnica, pois indica como pontos de referência de suas medidas e limites “parte de um sítio na Fazenda São Vicente”, confrontando com “Córrego”, com o “Sítio Princezinha”, com o “Sítio São Vicente” e com a “Estrada Municipal”, de modo que não há o mínimo de elementos que permita a sua identificação e localização. A imprecisão da descrição da área na matrícula impossibilita o registro da área dominante, objeto da servidão descrita no memorial descritivo apresentado, pois é impossível identificar onde esta se insere na área serviente.
Na sistemática da Lei de Registros Públicos em vigor, a matrícula é o núcleo do assentamento imobiliário e reclama observância ao princípio da especialidade objetiva, porém, mesmo que assim não fosse, seria inviável o registro da carta de sentença, pela ausência de elementos mínimos identificadores do imóvel serviente.
Afrânio De Carvalho, na clássica obra “Registro de Imóveis”, 4ª edição, Editora Forense, ao tratar do tema “Matrícula No Registro Geral”, Capítulo 18, consigna que na relação dos cinco livros que possuem divisão completa em cinco espécies (Protocolo; Registro Geral; Registro Auxiliar; Indicador Real; Indicador Pessoal) e que têm por princípio único diretivo a função desempenhada, se sobressai, por sua importância, o “registro geral”, que, como recipiente dos direitos reais, aos quais transmite os efeitos de publicidade e de constitutividade, aparece como verdadeiro sensório do registro, de onde emanam os reflexos que movimentam o tráfico jurídico imobiliário. Este livro tem função precípua de centro de convergência de atos jurídicos de aquisição, transmissão, oneração ou extinção de direitos reais, sem que essa especificidade seja turvada pela intromissão de atos de outra natureza.
Nessa linha de raciocínio, a presença da matricula no registro geral já indica, por si só, que ela exprime um ato de movimentação de direito real e a posição eminente que aí lhe foi conferida atesta, por sua vez, que se trata do mais importante: a aquisição da propriedade. É a matrícula que define, em toda a sua extensão, modalidades e limitações, a situação jurídica do imóvel.
O inciso II do artigo 176 da Lei de Registros Públicos dispõe sobre os requisitos da matrícula, e, no número “3”, alíneas “a” e “b”, consagra o princípio da especialidade objetiva, ao exigir a identificação do imóvel como um corpo certo, permitindo o encadeamento dos registros e averbações subsequentes, em conformidade ao principio da continuidade.
De acordo com o conceito de Afrânio de Carvalho, na mesma obra acima mencionada, “O princípio da especialidade significa que toda inscrição dever recair sobre um objeto precisamente individuado”, e, ao se referir ao mandamento da individuação do imóvel lançado no regulamento dos registros públicos, consigna que “Além de abranger a generalidade dos atos, contratuais e judiciais, o mandamento compreende também a generalidade dos imóveis, urbanos e rurais, exigindo a cabal individuação de todos para a inscrição no registro”, e que “A sua descrição no título há de conduzir ao espírito do leitor essa imagem. Se a escritura de alteração falhar nesse sentido, por deficiência de especialização, terá de ser completada por outra de rerratificação, que aperfeiçoe a figura do imóvel deixada inacabada na primeira. Do contrário, não obterá registro.”
Neste sentido: Apelações Cíveis números 745-6/1; 1.204-6/0; 943-6/5; 0017110.60.2008.8.26.0348, 3003724-22.2013.8.26.0481, 3000623-74.2013.8.26.0481 e 0001620-50.2014.8.26.0586.
Nas Apelações Cíveis números 0001243-53.2013.8.26.0315 e 0001619-65.2014.8.26.0586, do mesmo modo, foi decidido acerca da necessidade da prévia retificação da área serviente, para possibilitar o registro do título apresentado. As ementas assim dispõem, respectivamente:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – FALTA DE REPRESENTAÇÃO – ADVOGADO NÃO CONSTITUÍDO PELA APELANTE NOS AUTOS – PREJUDICIALIDADE – EXAME EM TESE DA PERTINÊNCIA DA RECUSA – ESCRITURA DE INSTITUIÇÃO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM – DESCRIÇÃO PRECÁRIA DO IMÓVEL SERVIENTE – NECESSIDADE DE PRÉVIA RETIFICAÇÃO A FIM DE PERMITIR A CORRETA LOCALIZAÇÃO DA SERVIDÃO DO IMÓVEL SERVIENTE – PRECEDENTES DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA – RECURSO NÃO CONHECIDO.”
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida procedente – Recusa de ingresso de carta de sentença – Instituição de Servidão de Passagem – Descrição precária do imóvel serviente – Inexistência de elementos mínimos de identificação e localização – Necessidade de prévia retificação da área, em observância ao princípio da especialidade objetiva – Recurso não provido.”
Ainda no mesmo sentido foi decidido na Apelação Cível n.° 1.204-6/0, j. 20/10/2009, relatada pelo Desembargador Reis Kuntz, então Corregedor Geral da Justiça, com a seguinte ementa:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Negado registro de carta de adjudicação expedida em ação de instituição de servidão administrativa – Título que apresenta descrição precária dos imóveis em que recaiu a servidão – Ofensa ao princípio da especialidade objetiva – Recurso provido.”
No mais, não há dúvida de que se aplica ao caso em tela o §3° do artigo 225 da Lei de Registros Públicos, o qual, a exemplo do citado artigo 176, está previsto no artigo 9° do n.° 4.449/2002, e no artigo 2° do Decreto n.° 5.570/2005, que alterou o Decreto n.° 4.449/2002, pois ambos trazem previsão da necessidade de identificação do imóvel, nos termos do mesmo §3° do artigo 225 da Lei de Registros Públicos, e que assim dispõe:
“Nos autos judiciais que versam sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidas a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica– ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a 4 (quatro) módulos fiscais.”
Esta exigência legal visa atender e incrementar a especialização objetiva.
Neste mesmo sentido foi decidido na Apelação Cível n.° 0000002-95.2011.8.26.0450, julgada em 13/12/2012, cujo relator foi o então Corregedor Geral da Justiça Desembargador José Renato Nalini, ao tratar do tema em caso diverso, referente à ação de usucapião, mas que por analogia se aplica ao ora examinado: ‘(…) O georrefenciamento almeja a evolução do registro imobiliário, impondo a necessidade de certificação técnica antes do ingresso do título judicial. Jomar Juarez Amorin destaca essa importância nos seguintes termos: No plano jurídico, o georreferenciamento pode ser conceituado como técnica descritiva aplicável aos imóveis rurais, para fins cadastrais. A consequência inegável é o incremento da especialização objetiva do registro imobiliário; ou seja: com a aplicação da descrição georreferenciada se alcança um novo nível de linguagem na especialização do bem matriculado. (…) Antes de ingressar na matrícula como linguagem técnico-descritiva, o georreferenciamento deve ser precedido de ato administrativo de certificação. Assim, o memorial descritivo acompanhado de Anotação de Responsabilidade Técnica é exibido ao INCRA pelo profissional previamente credenciado, para que o órgão federal certifique principalmente a inexistência de sobreposição na linha poligonal (A retificação de registro imobiliário e o georreferenciamento ao sistema geodésico brasileiro. In: Direito imobiliário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 1134). Nestes termos, o registro da sentença deve ser precedido do ato administrativo da alçada da autarquia federal. (…)’ (DJ: 22/02/2013).
Em suma, é a matrícula que define, em toda a sua extensão, modalidades e limitações, a situação jurídica do imóvel, razão pela qual o registro da carta de sentença apresentada, mesmo nos casos de instituição de servidões administrativas, deve ser feita em observância ao principio da especialidade objetiva e às demais disposições legais e normativas, o que não se verifica no caso vertente.
O argumento de que é ônus do proprietário do imóvel promover sua retificação não serve de justificativa para afastar a exigência prevista em lei. Além do mais, embora o titular do domínio tenha como regra legitimidade para pedir a retificação da área, nada obsta que tal pretensão seja apresentada por quem demonstre interesse, como é o caso da apelante, que necessita da retificação para possibilitar o registro do título apresentado, pois, não seria razoável que ficasse à mercê da inércia de terceira pessoa quanto a tal providência.
É neste sentido que deve ser interpretada a expressão “interessado”, trazida no artigo 213, inciso l, da Lei de Registros Públicos, e que confere à recorrente legitimidade para requerer a retificação.
Isto posto, nego provimento ao recurso.
JOSÉ CARLOS GONÇALVES XAVIER DE AQUINO
CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR
(DJe de 26.01.2016 – SP)